Opinião

Reviravolta jurisprudencial: nova abordagem da base do ISSQN na construção

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14 de junho de 2023, 19h39

A base de cálculo pode ser compreendia como a grandeza econômica que advém dos fatos jurídicos sujeitos aos tributos. Contudo, a grandeza efetiva dos acontecimentos e os fatos não são mensuráveis em sua integralidade, o que mostra a necessidade de delimitar a base de cálculo, compatível com sua natureza.

No caso do ISSQN, a base de cálculo deverá se amoldar ao preço do serviço, que será a contraprestação estabelecida em troca de uma obrigação de fazer. O que muitas vezes era confundido com ingressos financeiros, isto é, nem todo ingresso de valores oriundo do negócio jurídico se enquadrará na base de cálculo deste tributo municipal.

Existem alguns valores que ingressam no caixa do prestador do serviço que, embora se originem do mesmo negócio jurídico, não fazem parte da hipótese de incidência do ISSQN. A sua base de cálculo, como todo o tributo, deve estar delimitada pelo princípio da legalidade, na medida em que precisa estar definido por lei municipal (artigo 97 CTN), sendo que esta previsão deve estar em consonância com as normas gerais do tributo (artigo 146, III CF/88).

A previsão legal da base de cálculo do ISSQN está no artigo 7° da Lei Complementar nº 116/03, onde estabelece o critério do preço do serviço. Em serviços simples não há maiores dificuldades da sua identificação, como por exemplo, após a prestação de serviços de representação comercial, o tributo incide sobre o preço acordado. Entretanto, a dificuldade se concentra nos casos em que os serviços são acompanhados de utilização de materiais e instrumentos, ainda mais, diante do fato de que nem todo ingresso pode ser considerado receita direta da prestação de serviço.

A doutrina costuma diferenciar o preço da prestação (base de cálculo do ISSQN) com o preço do serviço, sendo que o conceito deste último engloba, além do valor da prestação, valores gastos com a prestação [1]. Essa diferenciação é de suma importância em serviços em que haja a aplicação de materiais e instrumentos, na medida em que há uma dificuldade maior para se identificar a real base de cálculo do tributo. No que se refere à incidência tributária da prestação de serviços de construção civil possui expressa previsão na lista de serviços da Lei Complementar 116/2003, conforme item 7.02, interferindo na delimitação da base de cálculo do tributo.

Observe-se que o dispositivo legal acima citado é expresso em afirmar que haverá a incidência de ISSQN sobre o valor integral da prestação do serviço, ressalvando o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador do serviço fora do local da obra. Para isso, é necessário realizar uma interpretação conjunta dos dispositivos da LC 116/2003 para se ter uma conclusão lógica e coerente. Seria temerário obter sínteses parciais, com base em dispositivos legais isolados, o que leva a necessidade de averiguar alguns desdobramentos desta discussão.

Durante alguns anos o Superior Tribunal de Justiça tinha o posicionamento sacramento no sentido de que na prestação de serviço de construção civil ocorria a incidência do ISSQN sobre o valor global do serviço, sem autorização de dedução de materiais, exceto quanto a previsão da parte final do item 7.02 [2].  Isto porque na construção civil existe uma obrigação de uma atividade fim, qual seja: a prestação de serviço direcionado a entrega de uma obra.  Este entendimento leva a conclusão de que o conceito de prestação de serviço independe se o prestador utilizou ou aplicou materiais para consecução de seu objetivo. Em outras palavras, não desnatura o contrato, se o dentista usou anestésico e se o engenheiro teve que adquirir uma trena.

A incorporação de bens na obra fez com que tais materiais perdessem suas qualidades de origem, transformando-se em elementos da construção, isto é, o tomador do serviço não contratou o recebimento destes materiais, mas simplesmente eles foram transformados em insumos e foram adicionados à obra.

Cabe ainda mencionar a respeito da súmula nº 167 do Superior Tribunal de Justiça, o qual prevê o entendimento de que o fornecimento de concreto para construção civil, preparado no trajeto até a obra, sujeita-se somente ao ISS. Neste caso, conforme explica Andrei Pitten Velloso, "os materiais empregados na prestação de serviços são, com frequência, elementos imprescindíveis à sua conclusão, não se qualificando necessariamente como mercadorias, por não serem bens destinados ao comércio" [3].

No que tange as obras de construção civil, é importante esclarecer que a conclusão dos contratos firmados por empreitada não há a transferência, à contratante, de parte do empreendimento executado ou dos materiais individualmente empregados, mas sim, a entrega da obra como um todo. Tanto é assim, que nos termos do artigo 610 do Código Civil, o contrato de empreitada pode advir somente da contribuição do trabalho do empreiteiro ou, também, com o emprego de materiais. Em ambas as situações o contrato de empreitada se caracterizaria como obrigação de fazer, sendo que o material empregado se transformou em insumo da obra.

De forma contrária a este posicionamento, o Supremo Tribunal Federal, através de um voto monocrático da ministra Ellen Gracie, no Recurso Extraordinário nº 603497, julgou pela possibilidade da dedução de materiais da base de cálculo da prestação de serviços da construção civil [4]. Após esta manifestação pela Suprema Corte, o STJ alterou seu entendimento relativo à definição da base de cálculo do ISSQN na construção civil, passando a aceitar a possibilidade da dedução dos materiais. Na mesma situação jurídica, este Tribunal afastou a incidência do ISS sobre as subempreitadas e definiu que os materiais que poderiam ser deduzidos seriam aqueles empregados na obra [5].

Na leitura de Aires F. Barreto, o fato da lei complementar não permitir a inclusão dos materiais equivale a dizer que materiais não integram a base de cálculo do ISSQN, isto em razão da não cumulatividade do imposto. Entende este autor que o veto ocorrido no inciso II do §2° da LC 116/2003 é inconstitucional, pois a não dedução das subempreitadas afrontaria a própria estrutura constitucional do imposto [6].

Uma interpretação literal levaria a conclusão de que a única exceção cabível prevista na lista de serviços ocorre quando o prestador do serviço alia essa atividade à de industrial ou comerciante, alienando mercadorias. Neste caso, teria, ao menos em tese,  duas obrigações que se cumprem: "dar" e "fazer", isto é, junto com a prestação do serviço existiram mercadorias produzidas por ele e vendidas ao tomador do serviço [7]. Por outro lado, existe a corrente doutrinária que defende que não poderia haver limitação da dedução dos materiais fornecidos pelo prestador, haja vista a redação do artigo 7º da LC nº 116/2007 utilizar o termo "material fornecido" e não o termo "produzido".

Esta discussão se originou em 2010, quando a discussão chegou ao STF através do RE 603.497. Relatora da matéria, a ministra Ellen Gracie (atualmente aposentada) deu provimento ao recurso para restabelecer a sentença e permitir à empresa recorrente deduzir da base de cálculo os valores dos materiais usados para concretagem. Essa decisão monocrática durou por mais de uma década, em que os contribuintes utilizaram esta tese para deduzir todo tipo de material utilizado ou empregado definitivamente na obra. Inclusive, em diversas oportunidades, os julgamentos do Supremo sinalizaram que a interpretação do STJ estava superada.

Ocorre que, no julgamento definitivo do RE 603497, agora com a relatoria da ministra Rosa Weber, houve uma reviravolta, em que se delegou ao STJ a delimitação dos materiais que seriam deduzimos, por ser matéria infraconstitucional. Em outras palavras, o Supremo defendeu que não caberia a Suprema Corte revisar a o entendimento do STJ, mas apenas verificar se, ao acolhê-la, aquela Corte não incorreu em ofensa à Carta da República. E, no caso em tela, compreenderam os ministros que não houve ofensa à Carta Magna. E como tese de repercussão geral, a ministra relatora Rosa Weber sugeriu a tese nos seguintes termos: "O artigo 9º, § 2º, do DL nº 406/1968 foi recepcionado pela ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988".

Na sequência, o STJ, em março de 2023, aproveitou-se do julgamento do RE  603.497 e, voltou a aplicar a tese restritiva para dedução dos materiais da base de cálculo do ISSQN na construção civil:

"….
O Supremo Tribunal Federal, ao proferir o primeiro julgamento do RE 603.497/MG (Tema 247 do STF), em 31/08/2010 (DJ 16/09/2010), decidiu reformar acórdão do STJ com fundamento no entendimento do Pretório Excelso sobre a "possibilidade de dedução da base de cálculo do ISS dos materiais empregados na construção civil."

A partir desse momento, esta Corte Superior, buscando alinhar a sua jurisprudência à referida decisão da Suprema Corte, começou a decidir naquele mesmo sentido, como se observa, a título de exemplo, no AgRg nos EAREsp nº 113.482/SC, relatora ministra Diva Malerbi (desembargadora Convocada TRF 3ª Região), Primeira Seção, julgado em 27/2/2013, DJe de 12/3/2013.

"Entretanto, mais recentemente, em 03/07/2020 (publicação da ata de julgamento em 13/07/2020), nos mesmos autos do RE 603.497/MG, o STF deu parcial provimento a agravo interno para, reafirmando a tese de recepção do artigo 9º, §2º, do DL nº 406/1968 pela Constituição de 1988, assentar que a aplicação dessa tese naquele caso concreto não ensejou reforma do acórdão do STJ, ficando evidenciada, no referido julgamento, a intenção do Pretório Excelso de preservar a orientação jurisprudencial que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou no âmbito infraconstitucional acerca da impossibilidade de dedução dos materiais empregados da base de cálculo do ISS incidente sobre serviço de construção civil.
Diante desse último pronunciamento da Suprema Corte no julgamento do seu Tema 247, há de voltar a ser prestigiada a vetusta jurisprudência do STJ sobre o tema."
(REsp nº 1.916.376/RS, relator ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, julgado em 14/3/2023, DJe de 18/4/2023).

Observe-se que, expressamente, o relator, ministro Gurgel de Faria, restabeleceu o entendimento anterior desta Corte Jurisdicional acerca da restrição da possibilidade de dedução de materiais somente para os casos de materiais produzidos pelo prestador de serviço e que tenha sido objeto de tributação do ICMS:

"O prestador de serviço de construção civil é, via de regra, contribuinte tão somente do ISS, de modo que, ainda que ele mesmo produza os materiais empregados fora do local da obra, esses materiais não estarão sujeitos ao recolhimento do ICMS e, portanto, não poderão ser abatidos da base de cálculo do ISS.
Entretanto, caso o prestador do serviço de construção civil também seja contribuinte do ICMS, os materiais necessários à construção por ele produzidos fora do local da obra e destacadamente comercializados em paralelo com o tomador, porquanto passíveis de tributação pelo imposto estadual, poderão ser subtraídos da base de cálculo do ISS."

A partir deste novo cenário, percebe-se que o STJ (1ª e 2ª Turmas [8]), no âmbito de sua atribuição constitucional, retomou o entendimento de ser possível a dedução dos materiais, desde que ele seja produzido pelo prestador do serviço e por ele destacadamente comercializado com a incidência do ICMS.

Sob este ponto de vista, este entendimento possui coerência no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que as empresas de construção civil, quando adquirem bens necessários ao desenvolvimento de sua atividade-fim, não estão sujeitas ao ICMS. É a tese aprovada em recursos repetitivos: "As empresas de construção civil não estão obrigadas a pagar ICMS sobre mercadorias adquiridas como insumos em operações interestaduais" [9].

O que nos parece que, a partir do retorno da jurisprudência do STJ à teoria restritiva, não se permitirá a dedução dos materiais adquiridos pelo prestador de serviço de terceiros, ainda que tenha recolhido o ICMS de forma destacada. Posição tormentosa, uma vez que não haveria uma razoabilidade em não se permitir a dedução dos materiais adquiridos de terceiros, sob pena de configuração de bitributação (ICMS/ISSQN).

De qualquer forma, neste momento, caberá aos Municípios adaptarem suas legislações locais com base nesta nova interpretação jurisprudencial, uma vez que representará em incremento de receitas de forma legítima. Contudo, ainda caberá um amadurecimento jurisprudencial sobre os temas elencados, o que se espera é a seriedade do Judiciário, principalmente a fim de delimitar definitivamente este assunto, tendo em vista a incerteza sobre os materiais adquiridos de terceiros pelo prestador de serviço com destaque de ICMS, o que, a nosso ver, poderá apresentar divergência quanto ao tema.

 


[1] Cf. BAPTISTA, Marcelo Caron. A norma tributária do Imposto sobre Serviços (ISS) ênfase no consequente normativo. In. SANTI, Eurico Diniz de. Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1048

[2] STJ  AgRg no REsp 1002693/RS — ministro CASTRO MEIRA  Data do Julgamento  25/03/2008 — Data da Publicação/Fonte DJ 07.04.2008

[3]    VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição Tributária Comentada. São Paulo: Atlas, 2007, p. 311

[4] (RE 603497, relator(a): ministra ELLEN GRACIE, julgado em 18/08/2010, publicado em DJe-172 DIVULG 15/09/2010 PUBLIC 16/09/2010)

[5] AgRg no AgRg no AI nº 1.410.608, 1ª Turma, relator ministro Benedito Gonçalves, julgado em 18/10/2011, publicado no DJe de 21/10/2011).

[6]    Cf. BARRETO, Aires F. Curso de Direito Tributário Municipal., p. 410/412

[7] Cf. MELO, José Eduardo Soares de. Aspectos teóricos e práticos do ISS. São Paulo: Dialética, 2000, p. 60.

[8] AgInt no AREsp n. 1.892.536/RJ, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 19/10/2021, DJe de 25/10/2021.

REsp 1.916.376-RS, relator ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 14/3/2023.

[9] Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. (REsp nº 1.135.489/AL, relator ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 9/12/2009, DJe de 1/2/2010).

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