Segunda Leitura

Declaração e reconhecimento da imparcialidade do juiz

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de junho de 2023, 8h00

Na noite do dia 29 passado, assistindo à entrevista do deputado Deltan Dallagnol no programa Roda Viva, em meio a perguntas surpreendentemente genéricas e inexpressivas, eis que o jornalista de O Globo formula uma questão de interesse: se o entrevistado, declarando-se uma pessoa politicamente de direita, não se considerava suspeito para processar um político de esquerda.

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Excluindo qualquer análise político-partidária da indagação, o fato é que ela é de grande interesse e merece ser comentada. Todavia, o farei sobre a atividade do juiz, que é onde ela mais se mostra necessária. O agente do Ministério Público, é parte. Sua atuação, portanto, regra geral é parcial, pois seu objetivo é vencer a ação.

O magistrado francês Antoine Garapon, com a sua habitual maestria, mostra a diferença entre os dois atores jurídicos ao afirmar: … a imagem do juiz do tribunal é mais serena. Só intervém quando isso lhe é solicitado e deve situar-se entre as partes, "acima da confusão", ao contrário do procurador, que desce à arena [1].

Do juiz, mais do que de todos, espera-se imparcialidade. Bem por isso, em todas as épocas a preocupação com a imparcialidade de quem julga se fez presente. Na Bíblia, no Deuteronômio, está: Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade [2]. Entre as recomendações muçulmanas aos juízes, consta que o juiz deve manter estrita imparcialidade perante as partes, tanto em público (em audiência) como em todas as outras circunstâncias [3].

Em tempos mais recentes, a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) reconheceu no seu artigo 19 o direito de todos a um julgamento imparcial. Na mesma linha, o artigo 8º, inciso I, da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.

Se assim é, cumpre lembrar que imparcial é aquele Que julga justamente; que não expressa preferência nem escolhe um dos lados em uma discussão; equitativo, justo. Ou, complementando: Que age com justiça e dignidade sem pensar em suas próprias convicções [4].

Se esses são conceitos do que é ser imparcial e se do juiz se espera, mais do que tudo, que decida afastado do interesse das partes, cumpre lembrarmos como e quando pode ocorrer a imparcialidade do juiz. Vejamos alguns exemplos que podem suscitar dúvidas:

a) Será imparcial o juiz que mantém amizade próxima com uma das partes, inclusive viajando juntos?

b) O desembargador oriundo da classe dos advogados, será parcial ao julgar ação em que se discute matéria do interesse da sua profissão de origem?

c) Será imparcial o juiz que se manifesta nas redes sociais favoravelmente a respeito de determinado político, e depois recebe ação em que ele está envolvido?

d) O juiz portador de deficiência física é parcial ao julgar ação envolvendo direito a tratamento pelo SUS, inclusive com remédios de alto valor, na qual o autor sofre do mesmo mal?

e) O fato de o juiz ser de cor negra, retira a sua isenção quando a ação judicial que lhe é submetida envolver o direito a cotas?

f) que, após atuar por anos em setor especializado do meio ambiente, consumidor ou direitos indígenas, ingressar em um Tribunal e julgar tais causas?

g) A juíza que participa de comissão de defesa dos direitos da mulher, será isenta de parcialidade ao atuar em uma Vara de Família?

h) O juiz que pertence à maçonaria ou a outra sociedade assemelhada pode ser considerado imparcial em processo no qual figure algum membro da sua loja?

i) Um juiz homossexual terá liberdade para decidir ação em que se discuta, em caráter coletivo ou individual, direitos de seus iguais?

j) A amizade de infância retira do magistrado sua esperada condição de imparcialidade?

k) Em julgamento de pessoa oriunda de estado distante, com outra forma de agir e expressar-se, corre-se o risco de o juiz agir com prevenção, perdendo a imparcialidade?

l) Será imparcial o juiz de um município que tenha um grande projeto econômico, com o apoio da população e da mídia local a exercer forte pressão, mas que coloca em risco ou causa danos ao meio ambiente?

Estas e outras tantas hipóteses podem suceder tanto nas pequenas comarcas como nas grandes capitais, com a única diferença de que naquelas a situação é mais visível e pode suscitar mais comentários.

Inevitavelmente, quem julga traz consigo toda a sua vida, suas experiências, ensinamentos recebidos, dificuldades, alegrias e tristezas. Portanto, neutralidade absoluta é uma ilusão, simplesmente inexiste. Eugenio Zaffaroni é taxativo ao negá-la, afirmando que não existe neutralidade ideológica, salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém e menos ainda de um juiz [5].

Mas, estará o juiz inevitavelmente envolvido emocionalmente, a ponto de tender a acolher a tese da parte com quem se identifica? A resposta é sim. Conscientemente ou inconscientemente. Se esta for a conclusão, é preciso pensar em como enfrentá-la.

Alguém mais radical poderia sugerir o uso de um robô com elevado nível de inteligência artificial. Sem afetos ou desafetos, preconceitos e discriminações, interesses legítimos ou ilegítimos, aquele sofisticado aparelho daria a solução de forma rápida e de acordo com a lei.

Todavia, esta não seria a solução. A insensibilidade da inteligência artificial diante de fatos da vida inevitavelmente a levará a concluir sem qualquer atenção às peculiaridades do ser humano, aos fatores sociais e às circunstâncias da ocorrência.

Na verdade, temos que nos valer de homens e mulheres com todas as virtudes e fraquezas próprias do ser humano. Porém, com uma vantagem, que é a de poder alertá-los para a importância de perseguir a meta da imparcialidade e prepará-los para que resistam às tentações que surgirão ao longo da carreira.

Isto, em última análise, estará intimamente vinculado à ética judicial, tema que por si só não atrai as pessoas, porque traz a ideia de algo quimérico e distante. No entanto, a conduta ética não se resume aos ideais dos filósofos gregos da antiguidade, mas sim está ligada à rotina diária dos magistrados.

A preocupação com o tema motivou iniciativa da Organização das Nações Unidas, através do Grupo de Integridade Judicial do Escritório contra Drogas e Crimes. Disto resultou estudo denominado "Princípios de Bangalore de Conduta Judicial", no Brasil editado pelo Conselho da Justiça Federal [6] Em nenhum local será encontrado texto tão primoroso, direto e feito por quem conhece a matéria na teoria e na prática. Os "Princípios…" resultaram na criação de Códigos de Conduta ao redor do mundo, inclusive no Brasil pelo CNJ [7].

O Valor 2 dos "Princípios…" trata da imparcialidade e como ela pode ser afetada. Com realismo, chama a atenção para diversas hipóteses em que podem surgir indícios de parcialidade e os problemas que isto pode gerar. Por exemplo, prejulgamento exteriorizado por declarações, manifestações verbais ou físicas (v.g., a simples expressão facial do juiz), conduta em audiência, conflito de interesses (e.g., juiz julgar ação que, indiretamente, o beneficiará), declarações impróprias na mídia, correspondência com litigantes e outras tantas que possam gerar perda de confiança no órgão julgador e apreensão do acusado.

Por outro lado, o estudo aponta também motivos irrelevantes:

89. A religião, etnia ou nacionalidade, gênero, idade, classe, intenções ou orientação sexual do juiz não devem, como tais, usualmente ser consideradas uma base relevante de uma objeção. Nem, ordinariamente, pode uma objeção ser solidamente embasada na vida social, educacional, em serviço ou empregos anteriores, associação social, esportiva ou de caridade, ou ainda, em prévias decisões ou declarações extracurriculares do juiz. Todavia, estas observações gerais dependem das circunstâncias de cada caso e do caso decidido pelo juiz [8].

De todo o exposto, é possível concluir que aqueles exemplos colocados ao início, letras "a" a "l", não são necessariamente casos de imparcialidade, ainda que suscitem dúvidas em determinadas situações. Mas, como magistrados são de carne e osso e, portanto, sujeitos a errar, cumpre alertá-los para tais situações. Alguns nem percebem que estão cometendo erro ao tomar certa atitude, seja porque nunca pensaram nisto ou porque ninguém os alertou.

No atual estágio das relações entre o Judiciário e a sociedade brasileira, o que se tem a fazer é minorar o problema, capacitar os magistrados nos cursos das Escolas da Magistratura, com distribuição dos Princípios de Bangalore para leitura e discussão.

Em suma, é preciso que ao assumir a magistratura, seja por concurso ou nomeação para os tribunais de segunda instância ou superiores, o magistrado se conscientize de seu relevante papel e que, a partir da posse, tem um compromisso enorme com as partes envolvidas em cada caso e com o Brasil. Abstraindo-se da sua origem ou condição (v.g., foi vítima de roubo e vai julgar caso semelhante), deve afastar-se do seu passado e perseguir a imparcialidade como fim máximo de sua missão. De resto, jamais procurar agradar em decisões judiciais quem quer que seja, inclusive a quem o ajudou a ser nomeado.

Finalmente, ética judicial não deve ser apenas ensinada, mas também cobrada, cabendo aos magistrados que ocupam as posições de maior relevância dar o exemplo de retidão e boa conduta.

 


[1] GARAPON, Antoine Bem Julgar. Ensaio sobre o ritual Judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 98.

[2] Bíblia Sagrada. Deuteronômio, 16, 19.

[3] BATISTA, Octacílio de Paula. Ética do magistrado à luz do direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 82.

[4] Dicionário on line de português, Disponível em: https://www.dicio.com.br/imparcial/. Acesso em 2 jun. 2023.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 92.

[6] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Brasília: 2008.

[7] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3450. Acesso em 2 jun. 2023.

[8] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Brasília: 2008, p. 80.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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