Opinião

Desvio produtivo do consumidor no arbitramento dos danos morais in re ipsa

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4 de junho de 2023, 17h23

O CDC (Código de Defesa do Consumidor), principal diploma legal voltado à proteção dos consumidores, estabelece como um dos direitos básicos do consumidor a efetiva reparação dos prejuízos de ordem patrimonial ou moral [1].

Não são raros os casos em que, ao efetuar a aquisição de um produto ou serviço, o consumidor se depara com algum contratempo que demanda seu tempo para a resolução, muitas vezes por meio de ligações, e-mails e contato com o fornecedor. Com o ocorrer de tais situações, nasce a discussão a respeito da existência de prejuízo moral pelo dispêndio desse tempo, recurso produtivo essencial à pessoa humana.

Ao contrário do entendimento anterior do STJ (Superior Tribunal de Justiça), segundo o qual seria necessária a demonstração da existência de uma consequência fática capaz de acarretar dor e sofrimento indenizável [2]o dano moral pelo desvio produtivo vem por si só demonstrando que o tempo utilizado para a resolução de determinado contratempo é motivo ensejador da indenização.

Isso porque, na maioria das situações, por falta de uma equipe capacitada na resolução de reclamações ou problemas advindos da aquisição daquele serviço/produto, muitos fornecedores, ainda que sem intenção direta de obter vantagem indevida, acabam não apresentando uma solução espontânea, rápida e efetiva para esses problemas de consumo [3].

Tais problemas não se limitam às pequenas empresas, que por vezes não possuem pessoal capacitado para a solução de tais demandas. Mesmo em empresas de porte maior, por conta da demanda exacerbada de atendimento aos clientes, a espera para a resolução do determinado infortúnio acaba sujeitando o consumidor à perda de seu tempo útil.

Buscando remediar ou ao menos compensar essas situações, o STJ, ao aplicar a Teoria do Desvio Produtivo (TDP), entendeu que a proteção à perda do tempo útil do consumidor é latente, pois possui finalidades precípuas de sanção, inibição e reparação indireta, que permitem a aplicabilidade da teoria do desvio produtivo do consumidor para a responsabilidade civil pela perda do tempo para resolver a demanda [4].

Entende-se que despender esse tempo vital, desviando-se de atividades como trabalho, estudo e lazer, configura uma restrição antijurídica ao direito fundamental à vida e à dignidade humana [5], ocasionando dano certo, imediato e injusto, inclusive indenizável in re ipsa [6]. Isso significa dizer que a lesão é presumida diante da situação em que o consumidor foi inserido, sem a necessidade de que seja provado o prejuízo para que se configure o dever de reparar.[7]

O entendimento sobre a possibilidade do arbitramento de danos morais sob a lógica do desvio produtivo do consumidor ainda tem por justificativa o fato de o fornecedor ser o detentor do poder, com a capacidade de impor aos demais o seu ritmo, a sua dinâmica, a sua própria temporalidade [8], eis que é considerando o efetivo responsável para a resolução da demanda.

A adoção e aplicabilidade da natureza in re ipsa desse dano deverá gerar grandes repercussões nos processos judiciais contra as empresas e se pode conjecturar que, como consequência, acarretará o aumento da judicialização de casos, visando unicamente esse tipo de indenização, dada a facilidade de se configurar os elementos do desvio produtivo.

Para evitar ou minimizar o "desvio produtivo" do consumidor, as empresas necessitam da criação e utilização de boas práticas para o atendimento ao cliente, isso é, estabelecer uma atmosfera de rápida e eficaz resolução das demandas comumente chamadas de estrutura de relacionamento de pós-venda.

É certo que a criação de plataformas de contato como os Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC), a celeridade nas respostas e o estabelecimento de níveis de resolução de demandas conforme os preceitos do CDC contribuem com a minimização das chances de uma possível condenação por danos morais.

De todo modo, apesar de o tempo despendido na resolução da demanda ser visto como um descaso com o consumidor, a aplicabilidade da TDP deve ser aplicada com parcimônia. Tendo em vista que o acesso a produtos e serviços está cada vez mais simples, o desperdício de determinado tempo para a resolução de um infortúnio não pode ser sempre imputado ao fornecedor, sob pena de banalização do instituto.  

Por fim, é necessária a atenção das empresas para o estabelecimento de medidas para a resolução dos conflitos, bem como de procedimentos e rotinas para atendimento aos consumidores, vez que a eventual morosidade injustificada poderá ser critério para a aplicação de danos morais pela perda do tempo útil do consumidor.

 


[1] "Artigo 6º São direitos básicos do consumidor: […] VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos".

[2] STJ, AgInt no AResp 564529/RJ, Quarta Turma, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, j. em 04/06/2019.

[3] DESSAUNE, Marcos. Resumo sistematizado e conclusão da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor. In: DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017. p. 270-280.

[4] STJ, REsp 1737412 SE 2017/0067071-8, relatora: ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/02/2019, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/02/2019.

[5] FERNANDES, André Dias; CARVALHO, Ana Paula Vieira. A perda de tempo do consumidor nos casos de deliberada má assistência do fornecedor de produtos ou serviços defeituosos: mero aborrecimento ou dano moral indenizável? Revista de Direito do Consumidor [Recurso Eletrônico], São Paulo, nº 145, jan./fev. 2023.

[6] DESSAUNE, Marcos. Resumo sistematizado e conclusão da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor. In: DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017. p. 270-280.

[7] STJ, REsp 1899304 SP 2020/0260682-7, relator: ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 25/08/2021, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 04/10/2021.

[8]  DESSAUNE, Marcos. Resumo sistematizado e conclusão da teoria do desvio produtivo do consumidor. In: DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017. p. 26.

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