Opinião

Por que não precisamos da Convenção nº 158 da OIT

Autores

  • Rosangela Rodrigues Lacerda

    é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região professora-adjunta da Universidade Federal da Bahia mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito Cers Ucsal Unifacs e das escolas judiciais do TRT da 5ª 6ª 7ª e 16ª Regiões.

  • Silvia Teixeira do Vale

    é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região mestra em Direito pela UFBA doutora pela PUC-SP pós-doutora pela Universidade de Salamanca professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito Ematra5 Cers Cejas Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª 6ª 10ª 13º e 16ª Regiões e diretora da Ematra5 (biênio 2019-2021).

4 de junho de 2023, 7h10

Após quase três décadas tramitando no Supremo Tribunal Federal, a ADI nº 1.625 finalmente teve o seu julgamento concluído. A corte decidiu que o Decreto autônomo Presidencial 2.100, de Fernando Henrique Cardoso, é inconstitucional, por não ter sido precedido de autorização do Congresso Nacional.

Embora a Carta Política de 1988 não estabeleça claramente o trâmite a ser seguido para denúncias de normas internacionais, por maioria, os ministros decidiram que se ditas normas, na forma do artigo 49, I da CRFB/88, necessitam de autorização via decreto legislativo para ingressar no ordenamento jurídico brasileiro, o mesmo procedimento deve ser observado para a devolução da norma internacional, e todo o imbróglio jurídico se iniciou quando o então presidente da República denunciou a Convenção nº 158 da OIT à Repartição Internacional do Trabalho sem prévia autorização do Congresso Nacional, tendo o seu ato autônomo ensejado o ajuizamento da ADI nº 1.625.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter acolhido o pedido de inconstitucionalidade do referido decreto, igualmente deixou claro que, por segurança jurídica serão consideradas válidas todas as despedidas imotivadas anteriores à publicação da ata de julgamento, assim como também decidiu que todas as denúncias de normas internacionais, a partir de então, devem ser precedidas de autorização do Congresso Nacional. Se o ato de ratificação é complexo para fazer ingressar norma internacional no ordenamento jurídico brasileiro, não menos complexo deve sê-lo para devolver, diante do princípio da simetria.

Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, porém, nada muda, vez que o Decreto presidencial foi considerado válido, por segurança jurídica, fazendo valer também a denúncia da Convenção nº 158 da OIT e, com isso, o Brasil permanece sem norma específica tratante sobre a necessidade de motivação das despedidas, sejam elas individuais, plúrimas ou coletivas.

Ao revés, o artigo 477-A da CLT prevê a possibilidade de os empregadores praticarem denúncias contratuais vazias, mesmo que tais sejam plúrimas ou coletivas, norma que no sentir destas articulistas esvazia por completo o artigo 7º, I da Carta Política de 1988, padecendo de total inconstitucionalidade. Isso por que o aludido artigo, ao garantir aos trabalhadores urbanos e rurais proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, já estabelece norma de alta densidade normativa, remetendo ao exercício do Estado-legislador a elaboração de lei complementar, que não poderá se distanciar do direcionamento já traçado na Lei Maior, qual seja: a proteção contra a despedida arbitrária, sendo esta entendida como a que não se funda em motivo técnico, econômico, disciplinar ou financeiro (artigos 165 e 510-D da CLT). Ou seja, algum motivo para a despedida há de ter e este deverá ser revelado, sendo certo que toda denúncia contratual vazia é alheia à Constituição da República.

Não obstante a Convenção nº 158 da OIT e a primeira parte do artigo 7º, I da CRFB, a própria Lei Maior já traz em seu texto original a necessidade de observância do devido processo legal, sendo possível se extrair da garantia fundamental aludida a necessidade de motivação dos atos punitivos, bem assim a observância do contraditório e da ampla defesa.

Nas palavras da ministra Carmen Lúcia, o devido processo legal é princípio basilar de qualquer Estado Democrático de Direito e entre nós está previsto no artigo 5º, LIV da CRFB/88, sendo um conjunto de elementos jurídicos garantidores de direitos fundamentais, como: "a) direito de ser ouvido; b) direito ao oferecimento e produção de provas; c) direito a uma decisão fundamentada" [1].

Estranho se invocar uma garantia fundamental originalmente pensada para a defesa do cidadão frente ao Estado? Pode parecer que sim, mas a doutrina civilista há décadas já vem garantindo a efetividade do devido processo legal nas relações entre particulares. Isso ocorre, principalmente, por dois motivos: 1) a referida cláusula é garantia constitucional fundamental e, como tal, é de observância obrigatória em todos os setores sociais, pois todo o aparato jusfundamental estabelecido na Constituição possui dimensão objetiva e efeito irradiante; 2) as relações privadas não podem servir de refúgio à penetração dos Direitos Fundamentais, sobretudo quando se tratam de pactuações eivadas de grande desequilíbrio entre as partes envolvidas, diante da existência de poder social, como ocorre na relação de emprego.

Apenas para citar algumas hipóteses de observância do devido processo legal pela legislação, já amadurecida e alterada por força de doutrina anterior, recorde-se que o artigo 57 do Código Civil prevê expressamente que o associado em risco de exclusão tem direito a tal garantia processual, nos termos do estatuto, consagrando a lei o que já vinha sendo feito para jurisprudência de Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil e também pela jurisprudência do Supremo Tribunal federal:

"EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. Recurso Ordinário n. 201819, 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Brasília, 11 de outubro de 2005. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 29 mai 2023."

Colhe-se, ainda, da aludida decisão, que o caráter público da atividade desenvolvida pela União Brasileira de Compositores e a dependência do vínculo associativo para o livre exercício profissional de seus sócios justificam a aplicação direta dos direitos fundamentais, máxime o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, demonstrando a Suprema Corte que quanto maior o poder privado, maior deve se a aplicação das normas jusfundamentais na relação particular.

O artigo 1.085 o Código Civil, por seu turno, estabelece o procedimento para exclusão de sócio minoritário das sociedades limitadas, dispondo expressamente que somente poderá se dar a pena capital por ato de "inegável gravidade", devidamente apurado em assembleia convocada com tal fim, desde que o estatuto respectivo haja previsto a exclusão por justa causa, sendo, em todo caso, necessária a prévia ciência do acusado em tempo hábil, para que este possa comparecer à assembleia e apresentar defesa.

Em relação às sociedades cooperativas, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (RE n. 158.215-RS) já possui julgado paradigmático, cuja relatoria coube ao ministro Marco Aurélio de Melo, decisão esta sempre apontada quando se fala em aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, como sendo a pioneira nesse sentido. Veja-se:

"DEFESA – DEVIDO PROCESSO LEGAL – INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS – EXAME – LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito – o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA – EXCLUSÃO DE ASSOCIADO – CARÁTER PUNITIVO – DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembleia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa" [2].

No que diz respeito às relações condominiais, o artigo 1.336, I do Código Civil elaborou um sistema de aplicação de penalidade de forma graduada, sendo certo que se o condômino, praticante dos atos previstos como faltas na convenção condominial, pode ser punido, de acordo com a forma posta no ferido dispositivo legal, penalidade a ser aplicada, logicamente, pelo próprio condomínio.

A Lei Civil não traz qualquer previsão acerca da possibilidade de outras sanções que não as pecuniárias já legalmente previstas, como a restrição de áreas comuns, ou até a expulsão do condômino.

No entanto, tanto a doutrina [3] quanto a jurisprudência [4] têm se inclinado sobre a necessidade de aplicação do devido processo legal — principalmente a necessidade de se apresentar uma justificativa para o ato — quando o condomínio desejar aplicar penalidades não pecuniárias, devidamente previstas na norma convencional.

O Enunciado nº 92 do Conselho da Justiça Federal enfaticamente estabelece: "as sanções do CC 1.337 não podem ser aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo".

Ora, se até as normas civis, que têm como paradigma a plena igualdade das partes, consagram o dever de motivação nas entidades privadas quando estas desejam aplicar penalidades aos seus componentes, com muito mais razão tal dever se impõe na relação de emprego, quando o empregador deseja a dispensa do empregado.

Isso ocorre porque a relação de emprego é eivada de forte poder social, sendo essa peculiaridade o principal motivo da observância dos assim denominados direitos laborais inespecíficos, como o devido processo legal e seus corolários, o dever de informação, o dever de motivação das decisões, o contraditório e a possibilidade de se defender de algo que se está sendo acusado.

 


[1] ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Devido processo legal. Revista de Informação Legislativa, ano 34, nº 136, 1997, p. 15.

[2] DJ de 07/06/1996. Disponível em: www.stf.gov.br, acessado em 29 mai 2023.

[3] Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direitos Reais. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 299-307.

[4] É o que se extrai da decisão emanada do TJ-SP: "Medida cautelar – Direito de uso do salão de festas do condomínio obstado ao condômino inadimplente -Inadmissibilidade – Imposição injustificada de restrição ao uso das áreas comuns em decorrência da inadimplência – Violação ao direito de propriedade – Discussão da dívida em regular ação de cobrança e em consignatória, ambas em trâmite – Sentença mantida – Improvida a irresignação recursal (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível Nº 0150356-03.2006.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Privado. Relator: Luiz Ambra. São Paulo, 4/7/2011. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19978391/apelacao-apl-1503560320068260000-sp-0150356-0320068260000-tjsp. Acesso em 29 mai 2023).

Autores

  • é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia, mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Cers, Ucsal, Unifacs e das escolas judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões.

  • é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região, mestra em Direito pela UFBA, doutora pela PUC-SP, pós-doutora pela Universidade de Salamanca, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Ematra5, Cers, Cejas, Ucsal e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões e diretora da Ematra5 (biênio 2019-2021).

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