Opinião

Responsabilidade das big techs e proteção de direitos fundamentais

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31 de julho de 2023, 19h44

Historicamente somos tentados a tentar classificar em "eras" o mundo contemporâneo. Desde a avassaladora "Era do Consumismo" até a revolucionária "Era da Informação", passando pela recente "Era da Pós-Verdade", nossa realidade é uma fusão de termos intrigantes que ecoam em todos os cantos da sociedade. Ainda mais recentemente, há um termo que ressoa com uma força inegável e captura o espírito desse "novo" tempo: a "Era do Capitalismo de Vigilância".

Cunhada por Shoshana Zuboff, em seu livro homônimo, essa expressão revela um mundo no qual a privacidade é constantemente invadida e os seres humanos são commodities vigiadas e manipuladas para o benefício de gigantes tecnológicas [1]. Essas Big Techs lucram com nossos dados pessoais, mercantilizando até mesmo predições comportamentais dentro de um verdadeiro mercado de comportamentos futuros.

"Se algo é gratuito, o produto é você" é outra frase que mostra como nossas informações são o novo combustível refinado por essas corporações, mas é uma expressão simples que não nos mostra a totalidade de direitos que são violados nesse contexto.

A preocupação com a proteção desses dados tem se tornado, diante disso, um fenômeno globalizado (o que pode ser muito bem observado a partir, por exemplo, do Regulamento geral de Proteção de Dados – GDPR – da União Europeia). No cenário pátrio, na ordem interna, é importante frisar que mesmo antes da Lei Geral de Proteção de Dados — LGPD (Lei nº 13.709/18), o Brasil já demonstrava uma certa preocupação, ainda que embrionária, quanto à proteção de direitos dentro de um contexto de eventual tratamento de dados pessoais.

Ao longo das últimas décadas, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) já delineava algumas diretrizes para a proteção dos consumidores, garantindo a privacidade e a segurança das informações nas relações de consumo. Adicionalmente, a Lei do Cadastro Positivo (Lei nº 12.414/2011) foi responsável por regulamentar a criação e consulta de bancos de dados contendo informações sobre o histórico de crédito dos consumidores. Vale ressaltar também o papel do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), o qual reforça princípios fundamentais como a privacidade e a proteção de dados dos usuários, bem como estabelece diretrizes sobre a responsabilidade dos provedores de serviços na internet.

É fundamental destacar que o assunto está diretamente ligado aos direitos fundamentais mais essenciais, uma vez que, após a aprovação da PEC 17/2020 e com a EC 115/22, o artigo 5º da Constituição Federal foi acrescido de um novo inciso (LXXIX) que garante o direito à proteção de dados pessoais, inclusive no âmbito digital. Essa inclusão reforça ainda mais a importância da proteção da privacidade dos cidadãos em todas as esferas da vida, incluindo o ambiente online.

A preocupação normativa com a proteção de dados, nos âmbitos local, regional e global, enfrenta uma série de desafios. Mencionamos não apenas a complexidade e o ritmo acelerado da inovação tecnológica, mas também o próprio caráter globalizado de operacionalização das grandes empresas e o evidente desequilíbrio de poder entre os usuários e as empresas de tecnologia ou mesmo entre os próprios Estados nacionais e essas empresas.

Além do controle sobre nossas escolhas de consumo em um golpe crítico contra o direito à autodeterminação informativa, os algoritmos permitem a disseminação de todo tipo de conteúdo, que pode ser falso (como a promessa de curas milagrosas em tempos de pandemia), ou perigosamente verdadeiro (como tutoriais para atentados em escolas).

Seja como for, essas grandes empresas são blindadas pelo seu poder econômico e por singelos termos de uso, que parecem estar acima de qualquer legislação nacional. Elas reagem a qualquer manifestação do poder público que busque um mínimo de regulação (como são reguladas todas as atividades econômicas), taxando os Estados de censuradores e ditatoriais, ao mesmo tempo em que manipulam a opinião pública não apenas por meio de seus algoritmos, mas também por frases de efeitos em "artigos" em suas páginas iniciais, incitando um medo de uma forma digna das MegaCorps das ficções distópicas.

As Big Techs têm demonstrado relutância em relação à regulamentação estatal, comportando-se como se estivessem em um mundo separado, desvinculadas dos Estados Nacionais. Essa atitude reflete uma mentalidade que nos lembra a Declaração da Independência do Ciberespaço (de John Perry Barlow [2], escrita em 1996). No entanto, é importante reconhecer que as ações das empresas de tecnologia têm um impacto direto no mundo real e, como tal, devem estar sujeitas às regulações do mundo fático.

No Brasil, tem sido amplamente discutido o Projeto de Lei 2.630/2020, popularmente conhecido como PL das Fake News. Apesar de seu nome informal sugerir que se trata de um debate sobre notícias falsas e sua possível criminalização, o projeto tem, na verdade, o objetivo de estabelecer novos modelos de moderação de conteúdo por parte dessas grandes plataformas, tornando-as passíveis de punição caso não atuem com a necessária diligência para impedir ou mitigar os atos ilícitos em seus serviços.

Naturalmente, um projeto como esse não escaparia às mais variadas críticas. Nesse sentido, um argumento contrário ao PL destaca que ele entra em conflito com as diretrizes estabelecidas pelo Marco Civil da Internet. Isso acontece porque a legislação anterior (em seu artigo 19) determina que as empresas não são responsáveis pelo conteúdo criado e compartilhado por terceiros.

Entretanto, essa isenção de responsabilidade tem sido objeto de críticas desde a concepção da lei de 2014, resultando em ações judiciais pendentes na Suprema Corte que questionam a constitucionalidade de alguns de seus pontos, incluindo o artigo 19 mencionado anteriormente.

No atual cenário em que vivemos, é fundamental que as Big Techs sejam responsabilizadas por suas práticas e que sejam estabelecidas regulações adequadas para controlar seu poder e proteger os direitos dos usuários. A privacidade, a segurança e a transparência devem ser valores fundamentais nessas relações, e os Estados Nacionais têm o dever de garantir isso.

É evidente que essa regulação não possa ser feita de qualquer maneira, as leis e regulamentos devem ser atualizados para acompanhar o ritmo acelerado da tecnologia, de modo a equilibrar o desenvolvimento econômico e a proteção dos interesses individuais e coletivos.

É imperativo que a atuação dessas empresas não atropele valores constitucionalmente relevantes, sendo preciso romper com a ideia de que as Big Techs estão acima da lei, desfrutando de uma imunidade que lhes permite agir sem restrições. A concentração de poder nas mãos dessas empresas não deve ser ignorada, pois ela influencia diretamente a dinâmica social, política e econômica. Os Estados devem assumir a responsabilidade de estabelecer regras claras, fiscalizar e aplicar sanções quando necessário, garantindo que o poder dessas gigantes seja controlado e que sejam prestadas contas por suas ações.

Na "Era do Capitalismo de Vigilância" é urgente que os governos atuem em prol do interesse público, assegurando que a tecnologia seja utilizada em benefício da sociedade como um todo. Somente por meio de uma regulamentação eficaz e de um diálogo construtivo entre governos, sociedade civil e empresas de tecnologia poderemos moldar um futuro mais equitativo e um meio ambiente virtual saudável.

 


[1] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

[2] VENTURINI, Jamila; CAPPI, Juliano. Encontro 1: Declaração de Independência do Ciberespaço. In: Ciclo de Leituras Comentadas, 2018. Disponível em: https://www.nic.br/publicacao/uma-declaracao-de-independencia-do-ciberespaco/. Acesso em: 17, jul. 2023.

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