Opinião

Regularização do passivo tributário de empresas em recuperação judicial

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31 de julho de 2023, 6h41

Desde o início da vigência da Lei nº 11.101/2005 — Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF) —, tomaram lugar tensões entre fisco, devedor em recuperação judicial e demais credores. O debate, longe de cessar, conta com um novo capítulo: ante à reforma do instituto da transação tributária, questiona-se se foram (enfim) oferecidos, ao devedor, os meios materiais para reestruturar seu passivo tributário — conclusão que, caso acolhida, tende a arrefecer a construção jurisprudencial de que a exigência de regularidade fiscal do agente em recuperação judicial poderia ser dispensada (em prol da preservação da empresa).

O legislador pátrio conferiu importantes proteções ao crédito tributário no contexto de processos de reestruturação: além de o crédito não se sujeitar aos efeitos do plano de recuperação judicial (não pode ser alvo de deságios, períodos de carência, parcelamentos etc.) e de as execuções fiscais em curso não serem suspensas em razão do processamento do procedimento recuperatório, ainda é imposto ao devedor endereçar o passivo tributário (e.g., quitar, parcelar, transacionar) como requisito à homologação do plano de recuperação judicial. Dito de outro modo, o processo de recuperação judicial não serve ao fim de reestruturar dívidas de natureza tributária; mais do que isso: a possibilidade de reestruturar qualquer passivo no contexto de uma recuperação judicial fica condicionada, em tese, a uma prévia "equalização" do passivo tributário.

No entanto, quanto à exigência de regularidade fiscal para fins de homologação do plano de recuperação judicial, logo tomou corpo na jurisprudência pátria o entendimento de que referida exigência poderia ser excepcionada. Contrastando-se o dever (apresentação de certidões negativas de débitos tributários) e os meios para alcançá-los, prevaleceu a posição jurisprudencial no sentido de que a apresentação de certidões negativas de débitos tributários poderia ser dispensada ante à importância da preservação da empresa, seja porque, em um primeiro momento, o ordenamento jurídico não oferecia ao devedor quaisquer meios para reestruturar seu passivo tributário [1], seja porque, na sequência, entendeu-se que os meios ofertados (i.e., parcelamento) eram materialmente inaptos a possibilitar uma efetiva reestruturação [2].

Fica clara a tensão que se coloca a ser solucionada pelos tribunais. Quão mais difícil reestruturar o passivo tributário, maior a tolerância do julgador quanto à possibilidade de excepcionar a exigência de certidões de regularidade fiscal quando da homologação do plano de recuperação judicial; como consequência, quão maior a disponibilidade de meios materialmente adequados para reestruturar o passivo tributário, maior o rigor da jurisprudência acerca da efetiva necessidade de regularização do passivo tributário como requisito à homologação do plano.

O posicionamento dos tribunais pátrios, contudo, pode estar frente a uma iminente guinada [3]. Se anteriormente não era oferecido ao devedor muito mais do que a possibilidade de eventualmente aderir a um parcelamento a fim de quitar suas dívidas tributárias, desde 2019 o cenário assume novos contornos, ante a edição de medida provisória disciplinando, pela primeira vez, a transação tributária em âmbito federal. Ainda mais recentemente, em 2022, o instituto da transação tributária foi reformado, tornando-o significativamente mais atraente ao devedor.

A transação tributária é disciplinada pela Lei nº 13.988/2020, com as modificações inseridas pela Lei nº 14.375/2022, bem como pela Portaria RFB nº 208/2022 e pela Portaria PGFN nº 6.757/2022. Embora o exame legislativo logo demonstre a existência de duas grandes modalidades de transação — por iniciativa individual do contribuinte ("transação individual") ou por adesão do contribuinte ("transação no contencioso") —, é a "transação individual" a modalidade de maior interesse por parte do devedor em recuperação judicial, pois se trata da modalidade mais abrangente (é dizer, as demais modalidades têm escopo mais restritivo, é mais limitado o rol de devedor que a elas podem aderir).

Em linhas gerais, o ordenamento pátrio confere à transação tributária individual os seguintes contornos: (1) possibilidade de concessão de desconto nas multas, juros e encargos legais (mas não sobre o principal), até o limite de 65% do valor total dos créditos; (2) parcelamento em até 120 prestações mensais; e (3) possibilidade de abatimento do crédito tributário com os saldos de prejuízo fiscal e de base negativa da contribuição social sobre o lucro. Cumpre ter presente que esse é o escopo "máximo" da transação individual: é possível que a autoridade tributária não ofereça ao devedor esses exatos patamares. Ainda, destaca-se que os potenciais benefícios são ainda mais expressivos no caso de pessoas naturais, microempresas ou empresas de pequeno porte: o parcelamento pode abarcar até 145 parcelas mensais, ao passo que o desconto total dos créditos pode chegar a 70%.

Ora, de um lado, fica claro que o instituto é muito superior aos meios antes à disposição do devedor em recuperação judicial — que consistiam, em essência, em meros parcelamentos. De outro lado, não se cogita que o instituto da transação tributária disciplinado pela Lei 13.988/2020 simplesmente faça terra arrasada da jurisprudência pátria até então existente (admitindo exceções à regularidade tributária do devedor), pois, para ficar na superfície, desde já destaca-se que a transação em comento tem por objeto os tributos federais ­— cabendo a cada estado e a cada município da federação disciplinar sua própria transação (por vezes completamente inexistente até aqui).

De toda sorte, a recepção do instituto da transação tributária não é uniforme junto às cortes detidas sobre a matéria recuperacional. É dizer, no atual momento jurisprudencial parece prevalecer o exame casuístico quanto à exigência de apresentação de certidões negativas de débitos tributários, em oposição à sedimentação de um entendimento definitivo a ser aplicado universalmente. O momentum da trilha jurisprudencial, contudo, parece favorecer o maior rigor sobre o devedor, impondo-lhe, no mais das vezes, seja a efetiva equalização de seu passivo tributário, seja — ao menos — a demonstração de que adota medidas em prol de sua equalização.

O Tribunal de Justiça de São Paulo certamente é o tribunal que lidera a posição de maior rigor sobre o devedor. São abundantes os julgados rejeitando a homologação do plano de recuperação judicial de devedores que não são capazes de apresentar certidões negativas de débitos tributários, como exemplificado a seguir:

"Insurgência contra as decisões que homologaram o plano de recuperação judicial da agravada e aditivos, sem a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal. Inadmissibilidade. Aprovação do PRJ pela Assembleia Geral de Credores ocorrida após a vigência da Lei nº 14.112/20. Relativização da exigência de apresentação das referidas certidões tinha fundamento, à época, na inexistência de disciplina legal para o parcelamento dos débitos fiscais pelas empresas em soerguimento, não mais se justificando, desta forma, a mitigação da regra contida no art. 57 da Lei de Regência. Concessão do prazo de 120 dias para a agravada providenciar a liquidação ou o parcelamento das dívidas fiscais, por meio de transação tributária, a fim de equalizar o seu passivo fiscal, com a apresentação das certidões pertinentes." (TJ-SP, AI 2068176-94.2023.8.26.0000, j. em 6/7/2023)

"Pedido de reversão da homologação do plano de recuperação judicial, em razão da dispensa das certidões de regularidade fiscal. Decisão de homologação do PRJ proferida após a vigência da Lei nº 14.112/20. Relativização da exigência de apresentação das referidas certidões tinha fundamento, à época, na inexistência de disciplina legal para o parcelamento dos débitos fiscais pelas empresas em soerguimento, não mais se justificando, desta forma, a mitigação da regra contida no art. 57 da Lei de Regência. A Recuperanda não pode, de forma oblíqua, sob o manto de uma decisão judicial, buscar a suspensão da exigibilidade do crédito fiscal, ao argumento de que foi determinado o encerramento da recuperação judicial. Concessão do prazo de 90 dias para a agravada providenciar a liquidação ou o parcelamento das dívidas fiscais, por meio de transação tributária, a fim de equalizar o seu passivo fiscal, com a apresentação das certidões pertinentes, como condição da manutenção da decisão homologatória." (TJ-SP, AI 2016524-72.2022.8.26.0000, j. em 23/4/2023)

Aliás, em 29 de novembro de 2022, a Seção do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo aprovou dois enunciados relevantíssimos sobre a matéria:

"Enunciado XIX – Após a vigência da Lei n. 14.112/2020, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência."

"Enunciado XX – A exigência de apresentação das certidões negativas de débitos tributários é passível de exame de ofício, independentemente da parte recorrente."

Seja como for, a posição adotada pelo TJ-SP não encontra — ao menos por ora — reciprocidade no Superior Tribunal de Justiça, já que este vem mantendo a linha de entendimento anterior à reforma legislativa, ou seja, manter a dispensa da providência do artigo 57 da LREF:

"PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONCESSÃO. REGULARIDADE FISCAL. COMPROVAÇÃO. DESNECESSIDADE. DECISÃO MANTIDA. 1. A decisão monocrática que dá provimento ao recurso especial, com base em jurisprudência consolidada desta Corte, encontra previsão nos arts. 932, IV, do CPC/2015 e 255, § 4º, II, do RISTJ, não havendo falar, pois, em nulidade por ofensa à nova sistemática do Código de Processo Civil. Ademais, a interposição do agravo interno, e seu consequente julgamento pelo órgão colegiado, sana eventual nulidade. 2. Consoante jurisprudência pacífica do STJ, a 'apresentação das certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para a concessão da recuperação judicial da empresa devedora, em virtude da incompatibilidade da exigência com a relevância da função social da empresa e o princípio que objetiva sua preservação' (AgInt no REsp n. 1.998.612/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 19/9/2022, DJe de 21/9/2022). 3. Agravo interno a que se nega provimento." (STJ, AgInt no AREsp 1.807.733/GO, j. em 28/11/2022)

Com isso, o tema da regularidade fiscal do devedor em recuperação judicial é um ponto ainda nebuloso na jurisprudência pátria. E como de praxe, na seara da insolvência empresarial não há respostas simples.

Não há dúvidas de que a jurisprudência seguirá desempenhando o papel de protagonista que sempre ocupou na seara recuperacional. Ante tamanha turbulência advinda de uma inovação legislativa possivelmente disruptiva — o tempo dirá —, quiçá seja possível cogitar que, em prestígio à cautela, a composição de interesses entre fisco e contribuinte ainda não deva tomar lugar a partir do mero contraste de textos normativos, mas sim a partir das particularidades do caso concreto, de modo a se alcançar o melhor equilíbrio entre os princípios da preservação da empresa e da remoção da empresa inviável do mercado.

 


[1] "O parcelamento tributário é direito da empresa em recuperação judicial que conduz a situação de regularidade fiscal, de modo que eventual descumprimento do que dispõe o art. 57 da LRF só pode ser atribuído, ao menos imediatamente e por ora, à ausência de legislação específica que discipline o parcelamento em sede de recuperação judicial, não constituindo ônus do contribuinte, enquanto se fizer inerte o legislador, a apresentação de certidões de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a recuperação." STJ, REsp nº 1.187.404/MT, Corte Especial, rel. min. Luis Felipe Salomão, j. em 19/6/2013.

[2] "Consoante já percebido pela Corte Especial do STJ, a persistir a interpretação literal do art. 57 da LFRE, inviabilizar-se-ia toda e qualquer recuperação judicial." STJ, Recurso Especial nº 1.864.625/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 23.06.2020

[3] "A ideia de um Fisco como um agente que contribui com a preservação da empresa, mas cujos direitos também devem ser observados por todos os envolvidos no processo, foi um dos grandes vetores da reforma de 2020. Por isso, poderes e direitos precisam ser interpretados na medida das concessões e dos benefícios outorgados – fazendo crer que os próximos anos, no âmbito do direito concursal, crédito tributário e exigência de CND para a reestruturação de empresas serão tempos interessantes, tempos nos quais a jurisprudência terá de se ajustar ao texto da LREF ou mesmo ajustar a LREF à realidade da vida empresarial do País, como ocorreu desde o início da vigência da Lei." SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. – 4. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Almedina, 2023, p. 841.

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