Opinião

A revisão do "anexo C" ao Tratado de Itaipu e a modicidade tarifária

Autor

  • Breno Lemos

    é professor de Finanças e Macroeconomia. Foi superintendente da Secretaria Municipal de Planejamento Finanças e Orçamento de Curitiba.

29 de julho de 2023, 13h14

Recentemente, comemorou-se a quitação da dívida de US$ 63,5 bilhões atribuída ao custo de construção da Usina de Itaipu, que se autodeclarou uma empresa amortizada. Um marco significativo para um empreendimento grandioso cujo tratado que determinou sua constituição acaba de completar 50 anos. Tal documento, diga-se, é fruto da Ata do Iguaçu, celebrada dez anos mais cedo, instrumento que pacificou questões fronteiriças e o uso das águas da bacia do Paraná.

Para além das conquistas no campo soberania e das relações exteriores, coube a Itaipu o papel estratégico de suprir energia ao Brasil e ao Paraguai. Dadas as diferenças no tamanho destes países, e considerando a divisão em partes iguais, reconheceu-se a cada um deles o direito de preferência para a aquisição da energia excedente a justo preço.

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O conceito de energia utilizado como base de cálculo foi a potência instalada da usina, hoje de 14 gigawatts. As demais condições financeiras e para prestação dos serviços de eletricidade estão especificadas no Anexo C ao Tratado e em seu regulamento, que cristaliza, por sua vez, o conteúdo das Notas Reversais firmadas entre as diplomacias dos dois países.

Para 2023, o orçamento de Itaipu prevê a soma do 1) custo de serviço de eletricidade com o 2) de cessão de energia da ordem de US$ 2,8 bilhões. Conforme disposto na Resolução Homologatória nº 3.193/2023 Aneel, que estabelece a tarifa de repasse da potência contratada da usina, daquele total, US$ 2,2 bilhões deverão ser cobertos pelos consumidores brasileiros do mercado regulado, o que, após acréscimo da parcela do diferencial, de US$ 260,6 milhões, corresponde a uma tarifa média de US$ 44,40/ MWh, ou R$ 230,72/ MWh à taxa de câmbio de R$ 5,20/ US$ 1,00, conforme cálculo da Nota Técnica nº 226/2022 – SGT/Aneel. Vale dizer, os custos associados ao transporte e conexão, encargos setoriais e impostos não estão incluídos nesta rubrica.

Tendo em vista que estamos no limiar da revisão das disposições do Anexo C, emerge a seguinte questão: à parte as discussões acerca da segurança operativa, seria a atual estrutura de custos amparada pelo Tratado de Itaipu alinhada com o postulado da modicidade tarifária dos consumidores de energia elétrica brasileiros?

Para respondermos a esta pergunta, dada a sua característica de entidade sem fins lucrativos, e sem entrar no mérito de eventual indenização de ativos não depreciados, nos propusemos ao exercício de colocar os custos de Itaipu na mesma base das demais usinas amortizadas que tiveram suas concessões prorrogadas e/ou relicitadas. Para tanto, aplicamos a metodologia de cálculo para a receita anual de geração (RAG) já com as atualizações descritas na Nota Técnica nº 47/2023 – STR/Aneel. Além dos custos de transmissão, encargos setoriais, eventual retorno pela bonificação de outorga, impostos e demais ajustes – que não estão incluídos no custo mencionado para Itaipu, a RAG é constituída pelo custo de gestão dos ativos de geração (GAG) sob três dimensões: investimentos, operação e manutenção e administrativos (Custo Anual das Instalações Móveis e Imóveis – Caimi).

O GAG melhorias reflete a necessidade de investimentos em melhorias durante o período de concessão. Tendo em vista os parâmetros técnicos da usina como um todo – e não somente aquele pertencente à margem esquerda, o valor decorrente desta fonte de receita seria de R$ 708,7 milhões/ano. Já o GAG O&M é obtido por meio uma análise comparativa com outras empresas do setor de geração. Com a ressalva de que os custos de Itaipu não foram utilizados para definir a função proposta, chegou-se a uma receita anual de operação e manutenção de R$ 579,9 milhões. Por fim, o Caimi consiste nos ativos com função administrativa ou empregados indiretamente na prestação do serviço, cuja referência foi proposta em R$ 10,96/ kW. Logo, o valor encontrado para Itaipu seria de R$ 148,2 milhões/ ano.

Agregando as partes, e supondo que o pagamento dos royalties passe a seguir a mesma metodologia aplicada ao cálculo da Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos (CFURH), seria possível obter a receita anual de geração para Itaipu destinada ao Brasil equivalente a R$ 1,9 bilhão. Deste total, R$ 1,2 bilhão seria custeado pelo mercado regulado a uma tarifa média de R$ 22,30/ MWh, 90% inferior à vigente na data-base de novembro de 2022.

Desta forma, e assumindo que a parcela cedida pelo Paraguai seja adquirida via ambiente de contratação livre a R$ 88,00/MWh  de acordo com a informação mais recente divulgada pela Dcide para a energia convencional de longo prazo em seu boletim semanal, a manutenção dos termos do Anexo C ao Tratado de Itaipu oneraria anualmente em R$ 10,6 bilhões somente os consumidores cativos. Este montante é equivalente a 7,8% do valor nominal da tarifa de fornecimento (sem tributos) praticada em 2022 pelas distribuidoras localizadas na região centro-sul do país, para as quais é repassada a energia do empreendimento.

Os dados mais recentes do planejamento do setor elétrico apontam um contexto de sobras de energia de, pelo menos, uma usina de Itaipu inteira ao ano até 2026. Isto, aliado à perspectiva de manutenção dos preços de longo prazo da energia convencional nos atuais patamares, resulta numa combinação que propicia ao Brasil elevado poder de barganha neste momento de renegociação dos termos do Anexo C.

Mais do que isto, afora toda controvérsia política e metodológica subjacente aos números aqui trazidos, seria também uma oportunidade para tratarmos internamente da redistribuição do custeio de Itaipu com vistas a atender ao princípio da modicidade tarifária, na medida em que os aludidos consumidores sejam desobrigados a pagar, sozinhos, uma conta que diz respeito à soberania nacional e está desvinculada dos parâmetros financeiros e normativos vigentes no setor elétrico brasileiro, colocando fim a subsídios e realocando seu ônus de maneira justa e equitativa.

Autores

  • é professor de Finanças e Macroeconomia. Foi superintendente da Secretaria Municipal de Planejamento Finanças e Orçamento de Curitiba.

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