Opinião

Do que precisa o Judiciário para julgar com perspectiva de gênero?

Autor

  • Fernando César Costa Xavier

    é professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR) professor doutor Nível II da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiário pós-doutoral no Instituto e Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências em Ecaterimburgo.

28 de julho de 2023, 9h16

Ao entrar em vigor, em fins de março deste ano, a Resolução 492 do Conselho Nacional de Justiça [1] — que estabelece as diretrizes para a adoção de perspectiva de gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário brasileiro — empolgou muitos profissionais de diversas carreiras jurídicas e, principalmente, a parcela da sociedade interessada no enfrentamento institucional de desigualdades de gênero e correlatas.

A iniciativa do CNJ de adotar uma resolução assim, com vistas a mobilizar todos os órgãos do Poder Judiciário em torno dessa missão igualitária, é louvável, mas ousada. No melhor dos cenários, os tribunais e juízes estão a par do compromisso e agora se põem em marcha acelerada em busca de estratégias para a implementação das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

Em Roraima, entre os dias 10 e 14 de julho passados, o Tribunal de Justiça estadual promoveu para seus magistrados, magistradas, servidores, servidoras, estagiárias e estagiários um curso de formação intitulado de "Julgamento com Perspectiva de Gênero", que foi ministrado por juízas de outros estados com experiência profissional no tema.

Imagino que, nos outros estados, a preparação para o cumprimento das diretrizes pelos Tribunais de Justiça seguirá na mesma linha, isto é, focando em cursos de formação inicial e continuada sobre direitos humanos, gênero, raça e etnia, a serem ofertados pelas escolas da magistratura de cada tribunal. A Justiça Federal, a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral provavelmente focarão esses cursos. E isso não surpreende, porque há amparo normativo: a oferta de cursos de formação está destacada como estratégia implementadora já no artigo 2º da Resolução 492.

Refletindo sobre isso, eu diria que essa estratégia, que tende a ser exclusiva ou prevalente, não tem como ser considerada a melhor. Em primeiro lugar, o texto do protocolo (aprovado pelo grupo de trabalho constituído pelo CNJ) sequer fala em cursos de formação, embora ele próprio não proponha nada de revolucionário, como o requer uma política de enfrentamento da desigualdade de gênero pela via do Judiciário, além de um "guia" para magistradas e magistrados sobre como lidar com processos, partes e provas que envolvam temáticas de gênero.

Intuitivamente, considero que essa abordagem está aquém da complexidade do problema, e, por conta disso, acredito, com pesar, que a Resolução 492 do Conselho Nacional de Justiça tende a se tornar, parafraseando Lassalle, "mero arquivo de PDF". E por quê?

É um entendimento hoje disseminado que uma forma de suplantar desigualdades de gênero e correlatas é dando voz, se possível "empoderando", os sujeitos historicamente discriminados. A ideia de um curso de formação, em que membros do Judiciário falam para seus pares, ainda que as formadoras sejam mulheres e tenham larga experiência prática ou acadêmica no assunto, não implica sensibilização, mas, tão somente, formação. Implicaria sensibilização, isto sim, se essas juízas fossem elas próprias vítimas de violência de gênero, de violência obstétrica, stalking, pornografia da vingança, postulantes de medidas protetivas de urgência ou de autorização de aborto legal etc. [2], que tivessem tido alguma experiência traumática ou desagradável em um processo judicial. Porém, neste caso, elas estariam no lugar de fala daquelas a quem mais importa o julgamento com perspectiva de gênero, a mulher enquanto parte com interesse processual, e não no lugar de fala (privilegiado, sim) de juízas.

É claro que muitos considerarão que, de vez que julgar (sentenciar, votar) é um ato técnico, a melhor maneira de se implementar a proposta de um "julgamento" com perspectiva de gênero seria com compartilhamento de experiências técnico-profissionais entre juízes, privilegiando-se experiências de mulheres juízas.

Mas esse compartilhamento de experiências, se visto de um ponto de vista estritamente técnico, é irrelevante, porque formular uma decisão (uma sentença, um voto) é algo que os juízes conhecem igualmente. Então fica patente que a relevância recai sobre os aspectos substantivos. Isso, no entanto, tem mais a ver com aspectos pessoais, como a capacidade de ter empatia, de se indignar frente a desigualdade, de procurar vencer preconceitos, do que de aprender e eventualmente discutir conceitos legais e acadêmicos.

E, segundo penso, a forma mais eficaz de promover esses aspectos pessoais é, como disse antes, dando voz à parte vulnerabilizada, que é, paradoxalmente, invisibilizada. Isso significaria ouvir não apenas a vítima da violência doméstica, mas entidades que a acolheram, movimentos de mulheres etc. Esses vozes costumam ser poderosos instrumentos de mudanças.

Juízas ou juízes com essas qualidades pessoais ainda assim deveriam ser preteridos? Se lido com atenção, o Protocolo do CNJ muito corretamente dá importância não apenas ao gênero, mas também a outros marcadores sociais, como raça, classe, escolaridade, etnia, deficiência e idade. E como o Judiciário brasileiro ainda têm baixa ou baixíssima representatividade de grupos étnico-raciais como pretos e indígenas, ou de pessoas com deficiência, e como sequer se pode imaginar juízes com baixa escolaridade ou de classe economicamente desfavorecida, o mais seguro é que o protagonismo para a concretização do julgamento com perspectiva de gênero recaia sobre as mulheres que, como partes, poderiam relatar abertamente (talvez por meio de depoimentos gravados, com acompanhamento especializado), as adversidades vivenciadas, ou não, no sistema de justiça.

O caráter vívido desses relatos, ao menos potencialmente, seria capaz de enfatizar, às juízas e juízes que se dispusessem a assisti-los, o grau de responsabilidade, além do que eles possam supor saber ter, dos julgamentos que eles proferem, muitas vezes decidindo sobre tópicos importantes da agenda social.

O caso de Maria da Penha deveria ser inspirador neste momento. Lembremos que ela finalmente passou a ser visível ao Poder Judiciário, e com ela a sua causa que até hoje reverbera, no momento em que ela foi finalmente ouvida; ouvida de verdade, e não apenas processualmente, em audiência.

E o fato de que, em todo caso, a Resolução 492 do Conselho Nacional de Justiça não fala de compartilhamento às juízas e juízes de relatos das vítimas, autoras ou rés em feitos sobre gênero? Quanto a isso, não é difícil concluir que o espírito da resolução não impediria, mas ao contrário apoiaria a ideia de se ouvir as próprias partes para, a partir do relato delas, refletir sobre o que seja o julgamento com perspectiva de gênero de que fala o protocolo e os cursos de formação.

 


[1] A Resolução, nos seus próprios termos, "Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ nº 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário". Ver: https://atos.cnj.jus.br/files/original144414202303206418713e177b3.pdf 

[2] Esses temas todos aparecem listados no Parte III, item 3, "a" e "b", do Protocolo. Ver: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf

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