Opinião

As novas soluções consensuais no Tribunal de Contas da União

Autor

  • Odilon Cavallari

    é advogado assessor de ministro do TCU auditor federal de Controle Externo mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub).

22 de julho de 2023, 7h08

Na sessão plenária do último dia 7 de junho, o TCU (Tribunal de Contas da União homologou o primeiro acordo de solução consensual que, segundo o tribunal, representou uma economia de R$ 579 milhões para os consumidores [1][2].

Trata-se de procedimento novo regulamentado pela Corte de Contas no final de dezembro de 2022, relativamente à "solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal" e, pela primeira vez, colocado em prática [3].

Divulgação/TCU
TCU

A solicitação de solução consensual foi formulada pelo ministro de Minas e Energia junto ao TCU em face das controvérsias relativas aos Contratos de Energia de Reserva (CER) decorrentes do Procedimento de Contratação Simplificado (PCS) 01/2021, concernentes às usinas da Karpowership Brasil Energia Ltda (KPS). Referida contratação emergencial foi realizada em condições excepcionais e motivada pelo risco de desabastecimento energético decorrente da crise hídrica e drástica redução do nível dos reservatórios ocorrida de 2020 a 2021.

No entanto, o aumento do volume de água dos reservatórios das usinas hidrelétricas, em 2022, tornou o contrato extremamente oneroso, assim como todos os demais celebrados no mesmo período, com a mesma finalidade e também sob as mesmas condições excepcionais, pois passou a exigir da União que continuasse efetuando os pagamentos, ainda que não mais fosse necessária a geração de energia contratada. Daí a necessidade de revisão dos termos desses contratos.

Essa situação motivou o TCU, em dezembro de 2022, a fixar o prazo de 30 dias para que o Ministério de Minas e Energia realizasse avaliação individualizada e conclusiva dos contratos decorrentes do PCS, comparando-se as vantagens e desvantagens quanto às possibilidades de sua manutenção, rescisão ou solução negociada [4]. Foi nesse cenário que o Ministério de Minas e Energia solicitou ao tribunal a solução consensual.

A atuação do TCU como interveniente em soluções consensuais entre a administração pública e a empresa contratada enseja, no mínimo, três questões de ordem jurídica e uma quarta, de ordem prática: primeira, saber qual a natureza jurídica da solução consensual entre as partes; segunda, saber qual a natureza jurídica da atuação do TCU; terceira, saber se a Corte de Contas tem competência para tanto; quarta, saber quais as suas consequências práticas.

Quanto à primeira questão, a natureza jurídica da solução consensual é a de acordo extrajudicial, que se formaliza no mundo jurídico por meio de termo aditivo ao contrato em andamento ou por termo de rescisão amigável.

No tocante à segunda questão, relativa à natureza jurídica da atuação do TCU, é importante afastar, desde logo, qualquer equiparação com os denominados Termos de Ajustamento de Gestão (TAG), adotados por vários Tribunais de Contas Estaduais, e com os Acordos Substitutivos de Sanção (ASS).

A razão é simples: tanto os TAG quanto os ASS são soluções alternativas para o tratamento a ser dado ao autor de uma conduta ilícita, a fim de se evitar a aplicação imediata de uma sanção.

Como se vê, não é a hipótese prevista para a atuação do TCU em soluções consensuais, por, no mínimo, dois motivos: primeiro, aludidas soluções consensuais não se referem à avaliação de condutas de autores de ilícitos, mas sim a conflito de interesse entre a administração pública contratante e a empresa contratada; segundo, o TCU não é parte na solução consensual, mas apenas interveniente.

Portanto, a Corte de Contas não celebra nenhum acordo. O que o TCU faz é incentivar as partes contratantes a celebrarem um acordo. Para tanto, participa da mesa de discussões e, ao final, antecipa o seu juízo sobre a solução consensual que as partes contratantes pretendem adotar. Em outras palavras, a atuação do TCU nada mais é do que o resultado de um controle preventivo e concomitante. Preventivo em relação à celebração do acordo. Concomitante em relação às discussões sobre as condições do acordo e em relação também à formalização do acordo, na qualidade de interveniente.

Desse modo, é possível analisar a atuação do TCU sob duas perspectivas: primeira, quanto ao procedimento; segunda, quanto ao objeto. E, conforme se demonstrará, não há novidade no procedimento (controles preventivo e concomitante) nem no objeto (soluções consensuais), quando considerados isoladamente. A novidade reside na junção de um com o outro. Explica-se.

No tocante ao procedimento, os controles preventivo e concomitante são há muito tempo adotados pelo TCU, particularmente nos processos de acompanhamento das desestatizações. Nesses casos o Tribunal envida esforços para, antes da realização do leilão, analisar a documentação pertinente e prolatar uma decisão sobre o edital, exigindo, quando for o caso, as correções necessárias, de modo a não interferir no cronograma da desestatização.

Quanto ao objeto, as soluções consensuais também há muito tempo são examinadas pelo TCU. Basta lembrar dos vários acordos extrajudiciais celebrados em anos anteriores pela Administração Pública com a empresa contratada e sobre os quais o Tribunal, posteriormente, exerceu o controle que lhe compete e prolatou decisão sobre o atendimento ou não dos princípios que regem a matéria, com especial destaque para os da legalidade e da economicidade. Ou seja, o controle exercido pelo TCU sobre acordos extrajudiciais sempre existiu, mas sempre foi a posteriori.

A novidade, portanto, está na atuação preventiva e concomitante do tribunal sobre as soluções consensuais, ao incentivá-las e contribuir para a sua celebração, o que faz por meio de deliberação do seu Plenário que, após apreciar as condições propostas para o acordo, autoriza seu presidente a assinar o Termo de Autocomposição, no qual o TCU figura como interveniente.

Trata-se, a rigor, de atuação no mesmo sentido do que prevê a Resolução 125/2010 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que "Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências", e o §3º do art. 2º do Código de Processo Civil, de 2015, segundo o qual "A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial". É possível citar ainda, no mesmo sentido, a Lei da Mediação (Lei 13.140/2015) e, mais recentemente, o artigo 26 da Lindb, inserido pela Lei 13.655/2018.

Relativamente à terceira questão, ou seja, saber se a Corte de Contas tem competência para tanto, é preciso dividir a análise em três tópicos: primeiro, quanto ao procedimento; segundo, quanto ao objeto; terceiro, quanto à junção de um com o outro.

No tocante ao primeiro tópico, a competência do TCU para exercer os controles preventivo e concomitante tem respaldo no artigo 71, inciso IX, da Constituição, segundo o qual compete ao TCU "assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade". Ora, se o tribunal pode determinar a correção de ilegalidades, pode, ex ante, orientar para evitar que essas ilegalidades ocorram ou, até mesmo, adotar medidas cautelares para evitá-las de modo cogente, conforme competência reconhecida pelo STF, no MS 24.510, julgado em 2003 [5].

Cuida-se de estratégia de controle prestigiada na Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), especialmente no artigo 169 [6], e enaltecida pelo ministro Gilmar Mendes que fez a seguinte afirmação em trabalho doutrinário, posteriormente reproduzida também em votos que proferiu no STF [grifos não são do original]:

"Por outro lado, o controle externo da ação administrativa, quanto a critérios de legalidade, legitimidade e economicidade, é realizado pelo Poder Legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas. Nos anos recentes, nota-se significativo incremento da atuação das Cortes de Contas, em especial do Tribunal de Contas da União, no controle externo das atividades da Administração Pública. São duas as novas vertentes que têm contribuído para a ampliação do tradicional espectro do controle externo: o controle da eficiência da aplicação dos recursos públicos com fundamento em critérios técnico-especializados; e o controle preventivo das ações administrativas, com o acompanhamento sistemático dos programas governamentais, inclusive ao longo da sua formulação" [7].

É importante observar que a solução consensual buscada pelas partes não está condicionada à manifestação do TCU. Ou seja, não se trata do controle prévio que era exercido até 1967, mas foi abolido pela Constituição  daquele ano. Significa dizer, portanto, que as partes podem celebrar o acordo sem a interveniência do TCU. Todavia, neste caso poderá o tribunal, posteriormente, prolatar decisão contrária ao acordo.

No que concerne ao segundo tópico acerca da competência do TCU para exercer o controle externo sobre soluções consensuais, o STF já decidiu que a Corte de Contas, ao examinar um acordo extrajudicial firmado entre particulares e a administração pública, pode determinar a sua anulação, se não tiver sido homologado judicialmente [8].

Quanto ao terceiro tópico, concernente à junção dos dois anteriores, a competência do TCU para exercer controle preventivo e concomitante sobre soluções consensuais decorre naturalmente da sua competência tanto para um quanto para o outro, mas aqui com uma cautela importante: não poderá o tribunal impor às partes qualquer tipo de solução, pois, como o próprio nome diz, a solução tem de ser consensual.

Por fim, no que concerne às consequências práticas dessa nova atuação do TCU, é possível cogitar ao menos três: primeira, incremento das soluções consensuais, com redução da litigiosidade; segunda, aumento da segurança jurídica; terceira, repercussão nas arbitragens relativas a contratos públicos.

No tocante à primeira consequência prática, é provável que a nova atuação do TCU estimule a administração pública e as empresas contratadas a buscarem soluções consensuais junto ao tribunal, com a consequente redução da litigiosidade e dos custos de transação para todos os envolvidos.

Essa consequência ficou evidenciada nesse caso julgado recentemente em virtude da previsão constante do Termo de Autocomposição no sentido de suspender, durante a sua vigência, os processos administrativos da Aneel tendentes à aplicação de multa à empresa contratada, assim como as ações judiciais, com liminares deferidas, que discutem a eficácia do contrato de outorga.

Em relação à segunda consequência prática, é de se esperar que haja um significativo aumento da segurança jurídica para todos os envolvidos, tanto os agentes públicos quanto as empresas contratadas.

No que concerne aos agentes públicos responsáveis por conduzir as negociações que antecedem a solução consensual está previsto no Termo de Autocomposição que não poderão ser, posteriormente, responsabilizados pelo TCU por sua atuação no caso, exceto na hipótese de prática de ato fraudulento ou doloso.

Quanto às empresas contratadas, consta do Termo de Autocomposição que o TCU arquivará, por perda de objeto, os processos em tramitação relativos a fatos que tenham expressamente sido objeto da solução consensual.

Tanto em relação aos agentes públicos quanto no tocante às empresas privadas, trata-se de consequência prática absolutamente inevitável e obrigatória, sob pena de ofensa à vedação de comportamento contraditório (venire contra factum proprium), tratado no direito administrativo pela Teoria dos Atos Próprios, cujos principais fundamentos são o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da confiança na qualidade de face subjetiva do princípio da segurança jurídica.

A terceira consequência prática que se pode cogitar diz respeito à potencial repercussão que as soluções consensuais no TCU possam produzir nas arbitragens relativas a contratos públicos, em virtude da possibilidade de tanto a administração pública quanto as empresas contratadas optarem por provocar o Tribunal em vez de submeterem suas controvérsias ao juízo arbitral, muito mais oneroso e demorado.

Pode-se levantar a objeção de que a atuação do TCU nas soluções consensuais poderia imprimir visão excessivamente publicista ao acordo. No entanto, a mesma objeção pode ser apresentada em relação à arbitragem, mas com sinal trocado, ou seja, de ser marcada por visão excessivamente privada.

Há duas diferenças significativas entre a atuação do TCU nos acordos e a arbitragem em relação aos contratos públicos. Primeira, a atuação do TCU não é impositiva, mas apenas de contribuição para o acordo, de maneira assemelhada à do conciliador, neste ponto. Segunda, o TCU é especialista em contratos públicos, ou seja, tem a denominada "capacidade institucional", o que não necessariamente ocorre com o árbitro.

A título de conclusão, as soluções consensuais no TCU, como toda inovação, certamente comportam aperfeiçoamentos que o tempo e a experiência irão revelar, mas abrem novas possibilidades ao proporcionarem a opção de serem resolvidos conflitos de interesse a um baixo custo, em prazo curto, com resultados satisfatórios para as partes envolvidas e para a sociedade, e com alto prestígio à segurança jurídica tão almejada no direito brasileiro.

 


[1] As opiniões expressas ao longo deste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, motivo pelo qual não representam, necessariamente, o entendimento do TCU.

[2] TCU. Acórdão 1.130/2023-Plenário. Rel. min. Benjamin Zymler.

[3] TCU. Instrução Normativa 91, de 22 de dezembro de 2022.

[4] TCU. Acórdão 2.699/2022-Plenário. Rel. min. Benjamin Zymler.

[5] STF. Tribunal Pleno. Mandado de Segurança 24.510. Rel. min. Ellen Gracie. Julgado em 19.11.2003.

[6] "Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:"

[8] STF. Primeira Turma. Mandado de Segurança 24.379. Rel. min. Dias Toffoli. Julgado em 7/4/2015.

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  • é advogado, assessor de ministro do TCU, auditor federal de Controle Externo, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub).

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