Opinião

Lei 14.596/23 e as "antigas" regras que limitavam dedutibilidade dos royalties

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19 de julho de 2023, 10h31

Em 14/6/2023, a Medida Provisória nº 1.152/2022 foi convertida na Lei 14.596/23, confirmando uma alteração substancial na metodologia de aplicação das regras de preços de transferência no Brasil.

O novo regramento foi elogiado por alguns setores da economia, já que representa um alinhamento com o padrão normativo defendido e difundido mundo afora pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por outro lado, também foi alvo de críticas, por supostamente trazer standards mais subjetivos para aplicação do princípio do arm's length, distanciando-se da tradição brasileira prevista na Lei nº 9.430/1996.

De todo modo, a nova legislação trouxe uma curiosa resolução para uma disputa interpretativa que se arrasta desde a edição da Lei nº 3.470/1958. Em seu artigo 46, incisos I a V, a Lei nº 14.596/2023 extinguiu a limitação percentual à dedutibilidade de despesas a título de pagamento de royalties da base de apuração do IRPJ e CSL. Com isso, foi revogado um regramento que gerava controvérsias em relação à sua aplicação, ou não, às transações entre residentes no Brasil (especialmente na circunstância envolvendo partes não relacionadas).

Até 1958, os royalties eram tributados no Brasil somente no momento de sua remessa para o exterior. Essa circunstância permitiu aos grupos transnacionais estipularem alíquotas de royalties altas entre as controladoras e suas subsidiárias. Esse cenário resultou em despesas posteriormente dedutíveis em sua integralidade, acarretando a erosão da base tributária no Brasil.

Nesse contexto, iniciou-se um movimento legislativo para estabelecer normas específicas para controlar a dedutibilidade dos royalties pagos, que culminou na edição da Lei nº 3.470/1958. A partir de então, vários diplomas normativos foram editados para tratar de aspectos tributários relativos ao pagamento de royalties, tais como, a Lei nº 4.131/1962, o Decreto-Lei nº 1.730/1979 e a Lei nº 8.383/1991.

A Lei nº 3.470/1958 foi o primeiro normativo que introduziu a limitação de dedutibilidade do pagamento e royalties pelo uso de patentes de invenção e de marcas de indústria ou comércio. A referida legislação, em seu artigo 74, apresentava uma regra geral de limitação de dedutibilidade para fins de determinação do lucro real, com limitação do percentual de dedutibilidade previsto em Portaria do Ministério da Fazenda, mas limitado ao teto de 5% da receita bruta do produto fabricado ou vendido:

"Artigo 74. Para os fins da determinação do lucro real das pessoas jurídicas como o define a legislação do imposto de renda, somente poderão ser deduzidas do lucro bruto a soma das quantias devidas a título de “royalties” pela exploração de marcas de indústria e de comércio de patentes de invenção, por assistência técnica, científica, administrativa ou semelhantes até o limite máximo de 5% da receita bruta do produto fabricado ou vendido.

§1º Serão estabelecidos e revistos periodicamente mediante ato do Ministro da Fazenda, os coeficientes percentuais admitidos para as deduções que trata este artigo, considerados os tipos de produção ou atividades, reunidos em grupos segundo o grau de essencialidade".

Posteriormente, foi editada a Lei nº 4.131/1962, cujo artigo 12 regulou integralmente a temática, sem representar uma significativa inovação em relação às disposições já estabelecidas no artigo 74 da Lei 3.470/58.

Contudo, em seu artigo 14, a Lei nº 4.131/1962 vedou a possibilidade de realização de remessas a título de royalties 1) entre filial ou subsidiária de empresa estabelecida no Brasil e sua matriz com sede no exterior ou 2) quando a maioria do capital da empresa no Brasil pertença aos titulares do recebimento dos royalties no estrangeiro.

Dessa forma, é possível compreender que o objetivo inicial da limitação à dedutibilidade de royalties, tanto na legislação de 1958 quanto na de 1962, era o de coibir os abusos dos contribuintes (empresas controladas por não residentes) na dedução de tais montantes.

Não por outra razão, a Exposição de Motivos da Lei nº 4.131/1962 foi expressa ao indicar que o objetivo das limitações à dedutibilidade fiscal de despesas de royalties era restringir e controlar a remessa de valores por empresas brasileiras a partes relacionadas no exterior. Confira-se:

"(…) Também é de admitir-se que a lei veda o pagamento de royalties por parte de filiais ou subsidiárias, estabelecidas no Brasil, em favor da matriz no estrangeiro, e, em termos mais gerais, da empresa aqui sediada cujo controle de capital pertença a empresa ou grupo financeiro no exterior, proprietário da patente ou marca de indústria, etc. A fiscalização dos contratos referentes a royalties e marcas de indústria, bem como dos relativos à assistência técnica, deve ser reforçada por disposições legais e por eficiência prática para que tanto a Divisão do Imposto sobre a Renda como os órgãos competentes da Sumoc exerçam o maior controle sobre as quantias transferidas sob estes títulos".

Assim, percebe-se que o objetivo da limitação à dedutibilidade de royalties, desde sua criação, era o de 1) coibir abusos que vinham sendo praticados no pagamento de royalties por sociedades do mesmo grupo econômico e 2) onerar as transferências de tecnologias tidas como não essenciais para o país, para que as empresas interessadas no mercado brasileiro tivessem que se estabelecer no país.

Na prática, além da sua função arrecadatória e fiscal, a limitação funcionava como importante instrumento extrafiscal e de controle cambial. A controvérsia que se verificou por anos foi a seguinte: no caso de pagamentos entre partes residentes no Brasil (especialmente quando não relacionadas), a imposição dos limites percentuais à dedutibilidade atende à finalidade extrafiscal da legislação?

Ao justificar a revogação dos limites à dedutibilidade, a Exposição de Motivos da MP 1.152 traz uma resposta aos questionamentos acima: os limites à dedutibilidade até então vigentes no Brasil foram consequência da política fiscal governamental da década de 1950. O objetivo dessa legislação, agora revogada, teria sido servir de meio para fomentar o desenvolvimento tecnológico de empresas brasileiras:

"A proposta revoga as limitações hoje existentes para dedutibilidade dos pagamentos de royalties e serviços para beneficiários no exterior ou no País, que remonta à política fiscal brasileira traçada na década de 1950. As limitações introduzidas foram editadas num contexto de controle de capital da política cambial. […]. Assim, entende-se que a inauguração do novo sistema de preços de transferência oferece as condições necessárias para que o regime atual de limitação de dedução dos pagamentos de royalties e serviços seja revisto".

Portanto, nada mais coerente que, quando da alteração das regras de preço de transferência, a integralidade do regramento que impunha limites à dedutibilidade de pagamento de royalties fosse extinta. Afinal, essas limitações compunham o pacote de medidas antielisivas, com a especial característica extrafiscal de evitar que as despesas com royalties fossem instrumento de remuneração de investidores no exterior, em substituição aos dividendos.

Nesse sentido, ao harmonizar o sistema, a Exposição de Motivos da MP 1.152 demonstra que o conjunto de regras que limita a dedutibilidade dos royalties deveria ser aplicado exclusivamente a operações transfronteiriças, e não a operações envolvendo partes nacionais, especialmente na circunstância de não serem relacionadas.

Dessa forma, a dedutibilidade do pagamento de royalties em operações realizadas no Brasil deveria submeter-se apenas à regra geral prevista no artigo 47 da Lei nº 4.506/1964 (replicado no artigo 311 do RIR) desde antes mesmo da revogação dessas normas. Em outras palavras, o único requisito para dedutibilidade dessas despesas é que fossem necessárias à manutenção da atividade da empresa.

Assim, a Lei nº 14.596/2023 e a Exposição de Motivos da MP que lhe deu origem corroboram o fato de que, desde a Lei nº 3.470/1958, os limites à dedutibilidade visaram desestimular a remuneração das controladoras do exterior mediante royalties e, inexistindo esse pressuposto fático, não haveria motivos para limitar a dedutibilidade de royalties em transações entre partes residentes no Brasil, especialmente na hipótese de serem não relacionadas.

Essa discussão é especialmente relevante, por exemplo, no mercado de sementes, em que os produtores realizam pagamentos de royalties por patentes de invenção e cultivares a players que detêm a propriedade intelectual relacionada à produção desses bens. Nesse mercado, houve autuações nas situações em que os produtores deduziram a integralidade dos royalties pagos, visto que, no entendimento das Autoridades Fiscais, tais valores estariam sujeitos aos limites previstos na Portaria 436/58.

O Congresso Nacional aprovara recentemente um Projeto de Lei (PL 947/22) que buscava reconhecer, para esse mercado, que os royalties pagos a partes não relacionadas seriam integralmente dedutíveis, mas o presidente da República vetou a promulgação dessa Lei, sob o argumento de que ela supostamente não cumpria a lei de diretrizes orçamentárias.

Entendemos que esse projeto de lei viria, apenas, para reconhecer que as regras que limitam a dedutibilidade de royalties só seriam aplicáveis às operações transfronteiriças, jamais podendo ser aplicadas quando envolvessem sociedades residentes no Brasil sem nenhum relacionamento societário. Afinal, não existiria, nessa situação, a circunstância que justificou a sua criação: a existência de abuso em transações transfronteiriças entre partes relacionadas.

Se a Lei nº 14.596/2023 encerrou a discussão para o futuro, definitivamente lançou uma nova luz sobre o passado, impactando também as discussões administrativas e judiciais ainda em curso.

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