Opinião

Quando considerar terceirizações na administração como despesa com pessoal

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18 de julho de 2023, 19h36

Devem ser contabilizadas como despesas com pessoal [1] todo tipo de terceirização na administração pública? Convênios com organizações sociais? Contratos de gestão na saúde? Contratos de estágio? Consultorias? Programa Mais Médicos? Como se posicionam o STF e o TCU?

Aqui, apresentamos soluções para garantir maior segurança jurídica no tema. Agradeço as valiosas contribuições ao texto de Fernando Facury Scaff, colunista desta ConJur e professor titular de Direito Financeiro da USP (Universidade de São Paulo).

O debate gira em torno do artigo 18, §1º, da LRF [2], que previu três requisitos cumulativos para que uma contratação seja considerada para o cálculo do teto de despesas com pessoal: i) relação jurídica deve decorrer de contrato de terceirização; ii) essa terceirização deve ter como objeto principal o fornecimento de mão de obra, e; iii) a contratação deve implicar na substituição de servidores e empregados públicos.

Primeiro requisito: contrato de terceirização
O termo contrato de terceirização [3] é uma expressão ampla e abarca os diferentes instrumentos firmados pela administração que impliquem em gastos de recursos públicos e que disciplinem a execução por particulares de atividades de interesse do Estado [4].

Abrange, além de contratos administrativos firmados com empresas, os convênios e as diferentes formas parcerias com entidades sem fins lucrativos que acarretem dispêndio de verbas estatais para a execução de atividades de interesse público, embora, como será visto a seguir, esse requisito não seja suficiente, por si só, para se caracterizar o contrato como despesa com pessoal.

Segundo requisito: fornecimento de mão de obra
A terceirização deve ter como objeto principal o fornecimento de mão de obra. Ou seja, a relação jurídica é marcada, exclusiva ou preponderantemente, pela disponibilização, em prol da administração, de trabalhadores vinculados à contratada.

Essa exigência afasta a incidência do artigo 18, §1º, da LRF, em situações em que a terceirização é caracterizada por aquisições de produtos ou por prestação de serviços sem disponibilização de forma contínua de mão de obra. São os chamados contratos de empreitada [5], em que, embora também entendidos como espécie de terceirização, são destinados à obtenção de determinado resultado (obra, serviço ou fornecimento de bens) e não ao aumento da força de trabalho em favor da administração.

Como exemplos, contratos para a reforma de uma escola ou para serviços de manutenção de equipamentos hospitalares. Os empregados da empresa contratada não permanecem à disposição da administração e não é a mão de obra que caracteriza o objeto contratual, mas a entrega do resultado (finalização da obra e conserto dos equipamentos). Não são despesas com pessoal.

Um bom parâmetro para a caracterização das terceirizações para fornecimento de mão de obra encontra-se na Nova Lei de Licitações e Contratos. São as atividades em que: a) os empregados do contratado ficam à disposição nas dependências da administração para a prestação dos serviços; b) a contratada não compartilha os recursos humanos e materiais disponíveis de uma contratação para execução simultânea de outros contratos; c) a administração exerce a fiscalização quanto à distribuição, controle e supervisão dos recursos humanos alocados pela contratante [6].

Terceiro requisito: substituição de servidores e empregados públicos
É o requisito o que gera mais dúvidas no âmbito da administração. Depende da correta interpretação sobre o que significa "substituição de servidores e empregados públicos".

O STF restringiu as possibilidades de regulamentação estadual ou municipal sobre a matéria. Foi o que ocorreu no recente julgamento da ADI nº 5.598, proposta em face da Lei nº 5.695/2016 (LDO 2017) do Distrito Federal. A norma distrital especificava as hipóteses de terceirização de serviços que não caracterizariam a “substituição de servidores e empregados públicos”, embora tais hipóteses, inclusive, estivessem de acordo com aquelas previstas na LDO da União.

Por isso, a posição mais segura a ser adotada por estados e municípios é a observância dos critérios fixados pela Secretaria do Tesouro Nacional — STN. Isso porque esse órgão, atualmente, tem a competência de editar normas gerais para consolidação das contas públicas [7].

O tema está disciplinado Manual de Demonstrativos Fiscais [8], elaborado pela STN. O documento elenca duas hipóteses alternativas de terceirizações que caracterizam a "substituição de servidores e empregados públicos": (1) atividades empregadas na atividade-fim da instituição ou do órgão ou (2) atividades inerentes a categorias funcionais abrangidas pelo respectivo plano de cargos e salários do quadro de pessoal.

Para que seja aplicável a primeira hipótese, é necessário verificar, caso a caso, a finalidade institucional do órgão ou entidade contratante. Serviço de limpeza, por exemplo, será atividade-meio em repartições com trabalhos administrativos, como uma Secretaria Estadual da Fazenda. No entanto, em se tratando de serviço prestado em hospital público, com a coleta de lixo hospitalar e a limpeza de equipamentos, será atividade de saúde pública e integrante da atividade-fim do hospital. Do mesmo modo, serviço de segurança e vigilância pode se caracterizar como atividade-meio na Secretaria Estadual de Educação, mas como atividade-fim na Secretaria Estadual de Segurança Pública, quando, por exemplo, servir de apoio à guarda de unidades prisionais.

A segunda hipótese prevista no manual de terceirização com "substituição de servidores e empregados públicos" é quando a atividade está inserida nas funções legalmente atribuídas a carreiras do quadro de pessoal do órgão ou entidade contratante.

Assim, havendo cargo ou emprego público com atribuições legais que abrangem o objeto da contratação, a terceirização deve ser computada como despesas com pessoal, independentemente de se tratar de atividade-fim ou atividade-meio do órgão ou entidade.

Registre-se que o manual não diferencia se há ou não vagas disponíveis para serem providas para o respectivo cargo ou emprego público. Assim, mesmo que o quadro da carreira encontre-se completo, sem vagas a serem preenchidas, a terceirização se enquadrará no artigo 18, §1º, da LRF.

Analisando situações específicas
Compreendidos os critérios gerais, cumpre realizar esclarecimentos sobre algumas situações específicas que podem gerar dúvidas quanto à incidência do artigo 18, §1º, da LRF, especialmente quanto ao requisito de promover a "substituição de servidores e empregados públicos".

Primeiro, esclareça-se que as regras acima também se aplicam em casos de terceirizações por meio de contratações de pessoas físicas, empresas individuais ou cooperativas, desde que identificado um dos critérios fixados pela STN para caracterizar a "substituição de servidores e empregados públicos" (isto é, serviço inserido atividade-fim do contratante ou abrangido nas competências de carreiras do quadro funcional).

Tal situação é bastante comum em unidades de saúde de municípios de médio e pequeno porte, que não contam com servidores suficientes na área da saúde. Assim, são realizadas contratações de profissionais terceirizados de saúde (especialmente, de médicos), tanto diretamente, por meio da pessoa física, como indiretamente, através de empresas individuais ou cooperativas. Contratações inseridas na atividade-fim do órgão contratante e, ao mesmo tempo, relacionadas a atividades abrangidas nas funções de carreiras do quadro de pessoal do ente. Por isso, devem ser consideradas para o teto de despesas com pessoal.

Por outro lado, no que se refere à contratação de serviços de consultoria, regra geral, não se enquadra como despesas com pessoal [9]. No entanto, cabe ao gestor instruir o processo de contratação com demonstração de que o serviço não pode ser prestado a partir da atuação do quadro de pessoal da própria instituição (por exemplo, por causa da complexidade e especificidade das soluções pretendidas). Caso não haja essa comprovação, haverá desvirtuamento da natureza da consultoria e os serviços devem ser computados na despesa com pessoal.

O Manual da STN afasta a aplicabilidade do artigo 18, §1º, da LRF, expressamente, para atividades que "não caracterizem relação direta de emprego como, por exemplo, estagiários" [10]. A relação de emprego, dentre os outros requisitos, pressupõe a alteridade, isto é, os frutos da prestação dos serviços são auferidos pelo contratante.

Com isso, não são consideradas despesas com pessoal atividades com foco na aprendizagem e no aperfeiçoamento profissional, como os programas de estágio [11], residência jurídica e de estágio de pós-graduação [12]. O mesmo raciocínio se aplica aos profissionais do Programa Mais Médicos [13].

Outra situação mais complexa é a caracterização ou não dos convênios e outros instrumentos de parcerias firmados com entidades sem fins lucrativos — especialmente, os contratos de gestão [14] — como terceirização de mão de obra "com substituição de cargos e empregos públicos", para fins de contabilização como despesa com pessoal.

Ao analisar o tema, o TCU, em 2016, chegou a apontar que essa relação jurídica não seria caracterizada sequer como hipótese de terceirização, porque não visaria a suprir a necessidade de mão de obra da Administração, mas a alcançar de metas e resultados por meio de atividades de comum interesse entre as partes [15].

No entanto, em 2019, após pedido de esclarecimento da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o TCU voltou atrás e especificou que "a parcela do pagamento referente à remuneração do pessoal que exerce a atividade fim do ente público nas organizações sociais deve ser incluída no total apurado para verificação dos limites de gastos com pessoal estipulados na Lei de Responsabilidade Fiscal" [16].

A decisão do TCU foi genérica e precisa ser interpretada a luz das diferentes situações disciplinadas sobre o tema pelo Manual da STN. Nele, a abordagem do assunto é dividida em duas situações.

Na primeira, o Estado realiza repasses a organizações sociais que prestam serviços de forma independente do planejamento e das decisões estatais. O recurso público recebido representa um apoio financeiro, mas não uma contrapartida estatal para a execução de atividades a mando da administração.

É o caso de subvenções repassadas para entidade filantrópica que fornece alimentação para pessoas em situação de rua. Embora exerça atividade de interesse social, a entidade atua de forma autônoma e sem substituir a ação estatal. Nessas hipóteses, não há "substituição de servidores e empregados públicos", de modo que os repasses públicos não se enquadram como despesa com pessoal.

Por outro lado, na segunda situação prevista pelo manual, a organização social atua como uma longa manus da ação estatal. O Estado vale-se da entidade privada para executar serviço que, legalmente, lhe é atribuído. A organização social recebe recursos para executar atividades na forma definida pelo Estado e, em muitos casos, utiliza as estruturas e sedes administrativas do próprio poder público.

É o que ocorre na execução de serviços por tais entidades em postos de saúde ou hospitais públicos. Em tais casos, há a "substituição de servidores e empregados públicos" e, por isso, as despesas devem ser contabilizadas para o cálculo do teto de gastos com pessoal.

De todo modo, cabe a administração identificar qual parcela do pagamento ou repasse se refere ao custeio da mão de obra terceirizadas, destacando-a das parcelas destinadas as outras finalidades (compra de insumos, despesas administrativas, tributos etc.).

Imagine-se, assim, que um município celebra com organização social contrato de gestão para execução de serviços de saúde em uma maternidade municipal. Suponha-se que o repasse mensal é de R$ 10 milhões, sendo R$ 6 milhões para custeio de recursos humanos (médicos, enfermeiros etc.) e R$ 4 milhões para o restante das despesas, como insumos médico-hospitalares e despesas administrativas (água, luz etc.). Nesse exemplo, na contabilidade do município, apenas deve ser registrada como despesa com pessoal a parcela de R$ 6 milhões, referente à mão de obra para a execução da atividade.

Nas situações em que, por qualquer razão, a administração não tenha condições de realizar uma aferição segura sobre essa parcela do repasse que se destina especificamente ao custeio da mão de obra, é recomendável que, adotando o princípio da prudência contábil, seja computado o valor global pago ou transferido à entidade privada como despesa com pessoal.

Por fim, em caso de dúvidas em situações concretas, a administração deve invocar sua respectiva consultoria jurídica para avaliar sobre a caracterização ou não da terceirização como despesa com pessoal, de acordo com os parâmetros acima apontados. Até mesmo porque a cautela do gestor de considerar as orientações da consultoria jurídica poderá evidenciar sua boa-fé e a ausência de erro grosseiro, elementos que contribuem para o afastamento de eventual responsabilização por órgãos de controle [17].

 


[1] De acordo com a LRF, as chamadas “despesas com pessoal” podem ser definidas como o somatório de todos os gastos do ente da federação com remuneração, proventos de aposentadoria, encargos sociais e contribuições do pessoal ativo, inativo e pensionista. Essa concepção compreende as despesas relacionadas aos mais diversos vínculos de trabalho com a Administração: cargos efetivos, comissionados, contratações temporárias por excepcional interesse público etc. Também abarca os valores pagos a empregados de empresas estatais dependentes, isto é, que necessitam, para seu funcionamento, de repasses financeiros da Administração Direta[1]. Não abrangem, no entanto, as verbas de natureza indenizatória (Arts. 18 a 23 da LRF).

[2] Art. 18, §1º, da LRF: “Os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como ‘Outras Despesas de Pessoal’”

[3] A Lei 13.467/2017, uma das leis aprovadas com a reforma trabalhista, colocou o tema da terceirização em evidência, de modo que a Suprema Corte foi provocada a avaliar, em diferentes oportunidades, a constitucionalidade desse modelo de relação jurídica. No julgamento da ADPF 324, de relatoria do Ministro Luiz Fux, julgado em agosto de 2018, definiu o STF que é “lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada”. No mesmo sentido, na mesma sessão de julgamento, ao apreciar o RE 958.252, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, concluiu que é “ lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

[5] Sobre a diferença entre a terceirização por empreitada e a terceirização para fornecimento de mão de obra, ver: ZYMLER, Benjamin. Contratação indireta de mão-de-obra versus terceirização, Revista do TCU, n. 75, 1998, p. 37-56.

[6] Art. 6º, XVI, da Lei nº 14.133/2021.

[7] Art. 50, §2º, da LRF.

[9] Devem ser classificadas no grupo de natureza da despesa “Outras Despesas Correntes”, no elemento de despesa “35 – Serviços de Consultorias”, compreendidas como “despesas orçamentárias decorrentes de contratos com pessoas físicas ou jurídicas, prestadoras de serviços nas áreas de consultorias técnicas ou auditorias financeiras ou jurídicas, ou assemelhadas” (Anexo II da Portaria Interministerial nº 163, de 4 de maio de 2001).

[10] Secretaria do Tesouro Nacional – STN. 14ª edição do Manual de Demonstrativos Fiscais. Brasília: STN, 2023, p. 453.

[11] Art. 1º da Lei nº 11.788/2008.

[12] Programas de residência jurídica e estágio de especialização foram considerados como constitucionais pelo STF (ADI 6693, Tribunal Pleno, Rel. Ministra Rosa Weber, julgado em 27/09/2021).

[13] Segundo a Lei nº 12.871/2013, a União é responsável pelo pagamento das bolsas destinadas aos profissionais médicos a ele vinculados. O programa tem a finalidade de promover um aperfeiçoamento profissional supervisionado na atenção primária em regiões prioritárias com déficit de médicos. A própria Lei afasta a caracterização do vínculo de emprego (art. 17). Portanto, não há que se falar em despesas com pessoal. Em relação a despesas com ajudas de custos com instalação e deslocamento ou, ainda, indenização por atuação em área de difícil fixação, são despesas de caráter indenizatório e, também por esse motivo, excluídas do conceito de despesas com pessoal.

[14] Cuja natureza jurídica, segundo decidiu o STF, não é de contrato, mas de convênio (STF. ADI nº 1.923, Tribunal Pleno, Relator. Min. Ayres Britto, Relator para Acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 16/04/2015).

[15] Com base nisso, naquela oportunidade, ao interpretar o art. 18, §1º, da LRF, concluiu que, “se a norma restringe os casos de contabilização dos gastos com terceirização, com maior razão conclui-se que as despesas com contratação de organizações sociais não devem ser computadas para finalidade do art. 19 da LRF” (TCU. Acórdão 2.444/2016 – Plenário, de relatoria do Min. Bruno Dantas).

[16] Acórdão 1.187/2019 – Plenário, de relatoria do Min. Bruno Dantas.

[17] A consideração, de forma fundamentada, de parecer da consultoria jurídica é elemento utilizado pelo TCU para avaliar a responsabilidade de gestores públicos, especialmente quando à caracterização de erro grosseiro ou culpa grave (TCU. Acórdão nº 1.264/2019, de relatoria do Min. Augusto Nardes).

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