Opinião

Concessão de radiodifusão a partido político

Autor

  • Amauri Saad

    é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Master of Laws pela University of Toronto. Advogado e parecerista.

16 de julho de 2023, 13h24

Na enorme confusão que se tornou o direito público brasileiro nos últimos anos — em parte por culpa de nossos tribunais superiores, em parte por culpa de correntes doutrinárias pouco rigorosas intelectualmente, entre as quais destaca-se o neoconstitucionalismo, que se tornaram dominantes —, existe, no ar, uma sensação de que tudo é possível, de que toda pretensão jurídica, por mais exótica e infundada que seja, pode se transformar em direito. O único requisito é que conte, no final, com decisão judicial que lhe confira o necessário verniz jurídico.

Recentemente, uma dessas pretensões ganhou o noticiário. Trata-se do pedido formulado pelo Partido dos Trabalhadores ao Ministério das Comunicações, para que lhe seja concedido um canal de televisão aberta. O partido, em seu requerimento, sustenta que "um canal de comunicação próprio possibilitaria o cumprimento de um dever constitucional, legal e estatutário, oportunizando uma participação política para além do simples ato de votar, adotando-se uma verdadeira pedagogia de participação político-partidária" [1].

Apesar de o partido sustentar não haver nenhum impedimento legal ao seu pedido, uma análise, ainda que breve, da disciplina constitucional e infraconstitucional sobre o assunto, aponta para o oposto. 

É certo que existe a crença, sobretudo entre o público leigo, de que as concessões de radiodifusão são outorgadas com ampla discricionariedade por parte do Poder Executivo. Todavia, esta crença não encontra amparo no direito brasileiro, em especial após o advento da Constituição de 1988. Primeiro, porque a exigência de licitação para concessões de serviço público, estabelecida pelo artigo 175, compreende também os serviços de radiodifusão. Portanto, descarta-se, de antemão, a outorga que não seja antecedida de procedimento licitatório.  

Segundo, porque a Constituição dedica um capítulo específico à comunicação social (artigos 220 a 224), área em que estão inseridas as concessões, permissões e autorizações de radiodifusão sonora e de sons e imagens, estabelecendo que tanto as outorgas quanto as suas renovações se darão por ato do Poder Executivo, sujeito, como condição de seu aperfeiçoamento e eficácia, à aprovação do Congresso Nacional (com quórum de dois quintos, em votação nominal, quando se tratar de indeferimento da renovação).

Se o Executivo conceder um canal de televisão aberta a quem quer que seja, isto só produzirá efeitos, por expressa determinação constitucional, após a aprovação do Poder Legislativo. De outro lado, antes do término do prazo das concessões, permissões e autorizações em vigor, estas só poderão ser encerradas por decisão judicial (todas as referências, neste parágrafo, são ao artigo 223).

Essas duas travas constitucionais — obrigatoriedade de licitação e necessidade de anuência do Poder Legislativo — impedem que o Poder Executivo conceda, livremente, um canal de televisão a um partido político.

E não é só. A Constituição estabelece que a "propriedade de empresa (…) de radiodifusão é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País", sendo certo que "pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas (…) de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação", devendo as "alterações de controle societário" de tais empresas ser comunicadas ao Congresso (artigo 222, caput, §§1º e 5º).

Como se sabe, os partidos políticos são pessoas jurídicas de natureza associativa sem fins lucrativos, ou seja, pela sua própria natureza não são, nem podem ser, empresas. Não possuem sócios ou acionistas. Neles não há "alterações de controle societário", nem "capital total", nem "capital votante", porque sua estrutura jurídica simplesmente não comporta tais figuras. Um partido político não é um empreendimento econômico. Só isto bastaria para infirmar qualquer pretensão sequer de participação nas licitações para novas concessões, quanto mais de outorga direta da atividade.

No plano infraconstitucional, o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei Federal nº 4.117, de 27.08.1962) pressupõe, como o faz a Constituição, que os serviços de radiodifusão serão outorgados a pessoas jurídicas empresárias. A única exceção, que na verdade confirma a regra, é a da exploração direta dos serviços: o artigo 34, §2º, determina que as pessoas jurídicas de direito público interno e as universidades públicas (que equipara às primeiras) terão preferência para a outorga de novas concessões.

Exceções, como se sabe, interpretam-se restritivamente: partidos políticos não são equivalentes, nem por aproximação, a entidades estatais. Tanto isto é assim que o Código Brasileiro de Telecomunicações caminha no sentido de traçar uma linha distintiva entre as atividades das concessionárias e permissionárias de radiodifusão, de um lado, e a política, de outro. Primeiro, ao estabelecer que "[n]ão poderá exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial" (artigo 38, parágrafo único). Segundo, ao prever que tais entidades deverão fornecer declaração de que nenhum dos seus dirigentes ou sócios foram condenados por ilícitos que importem em inelegibilidade (artigo 38, "j").

Indo além, há que se mencionar a disciplina do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795, de 31.10.1963), que regulamenta o Código Brasileiro de Telecomunicações. Ao dispor sobre as licitações para a outorga de concessões e permissões de radiodifusão, o Regulamento exige, entre os documentos de habilitação, cópia dos atos constitutivos que explicitem, entre os objetivos sociais da empresa, "a execução de serviços de radiodifusão e, para as sociedades por ações, na cópia da ata da assembleia geral que elegeu a diretoria e a relação de acionistas da qual conste a quantidade, o valor e o tipo de ações de cada sócio" (artigo 15, §1º, II). Requer, também, as declarações (que, por óbvio, devem corresponder à realidade) de que a pessoa jurídica "possui recursos financeiros para o empreendimento pleiteado" e "nenhum dos sócios ou dirigentes participa do quadro societário ou diretivo de outras pessoas jurídicas executantes do mesmo tipo de serviço de radiodifusão na localidade em que a concessão ou a permissão é pretendida, nem de outras pessoas jurídicas executantes de serviço de radiodifusão em Municípios diversos" (artigo 15, §2º, I e II).

Outra exigência de habilitação do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão é a declaração de que "nenhum dos dirigentes está no exercício de mandato eletivo que lhes assegure imunidade parlamentar ou de cargos ou funções dos quais decorra foro especial", e "nenhum dos sócios ou dirigentes da pessoa jurídica foi condenado em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, pela prática dos ilícitos referidos no artigo 1º, caput, inciso I, alíneas 'b' a 'q' da Lei Complementar nº 64, de 18.05.1990" (artigo 15, §2º, III e IX).

Ainda que se desconsiderasse a incompatibilidade dos partidos políticos com a outorga dos serviços de radiodifusão, é virtualmente impossível encontrar um partido político no Brasil que não tenha entre os seus dirigentes ocupantes de cargos eletivos. No caso do PT, a sua presidente, por exemplo, é deputada federal, e o seu "presidente de honra" é presidente da Tepública. Igualmente, na realidade brasileira, dificilmente se encontrará um partido que não tenha dirigentes condenados por ilícitos eleitorais (e o PT, desnecessário dizer, não foge a esse cenário). Por mais essa ordem de razões, impõe-se a conclusão de inviabilidade jurídica da concessão de um canal de televisão a tal partido.

O assunto, entretanto, deve ser ainda analisado sob a ótica do direito eleitoral. A Lei dos Partidos Políticos (Lei Federal nº 9.096, de 19.09.1995) proíbe que partidos políticos recebam, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, "contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie", procedente de "entes públicos e pessoas jurídicas de qualquer natureza", ressalvadas as dotações do Fundo Partidário e as do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (artigo 31).

A questão, diante dessa vedação ampla, é saber se a concessão de um canal de televisão representa uma "contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro". A resposta é, sem dúvida, positiva. O STF já decidiu que o "direito à exploração das ondas de radiofrequência é concedido aos particulares, porém a posse desse recurso, de caráter imaterial, pertence ao domínio público" (STF, Pleno, RE 1070522, relator ministro Luiz Fux, j. 18.03.2021). Portanto, ao conceder a um partido político a exploração das ondas de radiofrequência, o Estado estará permitindo que essa agremiação se utilize desse bem público e aufira receitas, provenientes de publicidade, sem se mencionar o benefício intangível, mas também estimável em dinheiro, da divulgação de suas ideias e plataforma partidária na programação.

Por último, para quem não se convence com facilmente com regras, pode-se fazer uma discussão de princípios. Os princípios constitucionais (artigo 37, caput) da impessoalidade e da moralidade são atendidos quando um agente público (no caso, o presidente da república) concede ao seu próprio partido político uma benesse estatal exclusivamente com base na camaradagem política e na afinidade ideológica, com o objetivo declarado de ampliar sua base eleitoral? É preciso um esforço descomunal de argumentação para responder positivamente a tal pergunta.

O "ineditismo" da solicitação de uma concessão de televisão pelo Partido dos Trabalhadores não se deve à falta de imaginação dos partidos políticos brasileiros, que nunca cogitaram de semelhante pedido: há coisas que jamais foram tentadas porque são notadamente impossíveis. Antes, ao contrário de hoje, tinha-se o bom senso de reconhecer uma má-ideia. Para que a pretensão de um partido político de obter a concessão de um canal de televisão fosse minimamente viável, era preciso que o feixe de normas constitucionais e infraconstitucionais, acima referido, não existisse, ou que pelo menos se procurasse, pelos meios democráticos, promover a sua revogação, por normas de igual hierarquia. Como não é o que ocorre, o que se tem é mais um exotismo à procura de juízes que lhes deem guarida.

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