Opinião

Advogados no Brasil e em Portugal: o que o fim do acordo de reciprocidade significa?

Autores

  • André Gambier Campos

    é docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP) pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Governo Federal (Ipea) mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

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  • Roberto Di Benedetto

    é reitor da Universidade Positivo (UP) e docente e pesquisador do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP). Bacharel e mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Doutor em sociologia pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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14 de julho de 2023, 6h33

No final dos anos 2000, a Ordem dos Advogados Portugueses (OAP) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) chegaram a um acordo de reciprocidade, pelo qual seria facilitada a atuação profissional de advogados no Brasil e em Portugal.

Por um lado, o acordo de reciprocidade foi consolidado pela Lei nº 145/2015 (Estatuto da Ordem dos Advogados Portugueses), que previa que advogados registrados na OAB poderiam se matricular na OAP com trâmites simplificados, sendo dispensados de aprovação em exame de conhecimento (Prova de Agregação da OAP) e de realização de estágio profissional, entre outros requisitos mais.

Por outro lado, o acordo de reciprocidade também foi consolidado pelo Provimento nº 129/2008, elaborado com base na Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), que dispunha que advogados vinculados à OAP poderiam se inscrever na OAB com procedimentos facilitados, sendo exonerados de validação de diploma acadêmico, de aprovação em exame de conhecimento (Exame Nacional da OAB) e de outros requisitos.

Ou seja, com o acordo de reciprocidade, advogados de um país teriam possibilidades ampliadas de atuar no outro, o que abria amplas e diversificadas oportunidades profissionais aos indivíduos interessados.

Ocorre que, em 4 de julho de 2023, a OAP decidiu pelo rompimento de tal acordo. Apesar das negociações em andamento com a OAB, que visavam o aprimoramento da reciprocidade, a ordem portuguesa optou pelo rompimento unilateral, alegando uma série de razões.

Entre tais razões, estiveram as diferenças entre os ordenamentos jurídicos de ambos os países, as discrepâncias entre as práticas observadas na atuação dos advogados portugueses e brasileiros, as diferenças nas plataformas e nos procedimentos digitais utilizados nos órgãos de Justiça de cada país etc.

O que esse rompimento do acordo de reciprocidade significa para os advogados brasileiros e portugueses? Provavelmente, significa coisas muito distintas, que ficam mais claras quando é analisada a estrutura dos mercados advocatícios de Brasil e Portugal.

O objetivo deste artigo é justamente descrever as linhas gerais da estrutura desses mercados. E, dessa forma, evidenciar que, provavelmente, o acordo de reciprocidade era mais relevante para os advogados brasileiros do que para os portugueses.

A metodologia de pesquisa utilizada neste artigo é de natureza quantitativa, procurando aplicar técnicas estatísticas descritivas a bases de dados que se referem à inserção dos advogados nos mercados brasileiro e português.

No caso brasileiro, há uma maior abundância de bases de dados de natureza oficial (oriundas do Ministério da Educação, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Já no caso português, as bases de dados são um pouco mais restritas (provenientes da Diretoria-Geral do Ensino Superior, da Direção-Geral da Política de Justiça e de estudos de grupos de consultorias especializadas em remuneração). Mas, mesmo com limitações, tais bases permitem realizar uma série de análises comparativas [1].

A formação de advogados no Brasil e em Portugal
A respeito da formação jurídica no Brasil, no ano de 2021, o Ministério da Educação registrava 1,8 mil cursos de Direito em atividade, que juntos ofertavam 347,6 mil vagas anuais (MEC, 2021).

Esses breves números permitem uma comparação com a formação jurídica em Portugal. Segundo informações da Diretoria-Geral do Ensino Superior, em 2021, o país contava com apenas 17 cursos de Direito, que ofertavam somente 3,3 mil vagas (DGESP, 2021).

Ou seja, o Brasil ofertava cem vezes mais vagas no curso superior de Direito do que Portugal, já mostrando as grandes diferenças entre os sistemas de formação jurídica de ambos os países [2].

O mercado advocatício no Brasil e em Portugal
Em 2021, Brasil e Portugal eram mercados advocatícios com escalas bastante distintas. Considerando as informações da Ordem dos Advogados do Brasil e da Direção-Geral da Política de Justiça de Portugal, nota-se que havia 1,234 milhão de advogados em atuação no primeiro país (OAB, 2021), contra 37,9 mil no segundo (DGPJP, 2021).

No caso brasileiro, a quase totalidade desse número era de advogados, propriamente ditos. Já no caso português, 10,4% eram estagiários  ponto inicial na profissão advocatícia por lá. Em outras palavras, no que se refere aos indivíduos trabalhando como advogados, o mercado no Brasil era 36,4 vezes superior ao de Portugal.

Uma informação interessante refere-se à nacionalidade dos advogados em atuação em Portugal. Dos advogados neste país, excluídos os estagiários, 9,8% eram estrangeiros (ou 3,3 mil indivíduos) (DGPJP, 2021). Isso não quer dizer que eram apenas advogados brasileiros, até porque Portugal integra a União Europeia [3]. E os cidadãos dos países que integram essa união também podem se inscrever e atuar no sistema de justiça português. De todo modo, há informações de que os brasileiros eram a ampla maioria desses advogados estrangeiros em atuação em Portugal [4].

A remuneração de advogados no Brasil e em Portugal
Para a compreensão da estrutura de qualquer mercado advocatício, a análise da remuneração dos profissionais é um aspecto-chave. A observação dos níveis de remuneração, bem como dos padrões de dispersão desta última, são aspectos relevantes para compreender como se organizam os mercados brasileiro e português.

É certo que uma série de cuidados devem ser tomados para viabilizar a comparação da remuneração de advogados em ambos os países. Afinal, estão em jogo unidades monetárias distintas, cestas de consumo de bens e serviços diferenciadas, patamares de preços diversos, níveis e tipos de tributação variados, modos de pagamento de remuneração bastante díspares (remuneração fixa ou variável, básica ou sob a forma de bonificação eventual etc.) e assim por diante.

De maneira a padronizar as informações de remuneração e torná-las comparáveis para os advogados brasileiros e portugueses, algumas escolhas metodológicas foram realizadas, sendo que os seus detalhes específicos podem ser verificados em Campos e Benedetto (2021).

Levando em conta todas essas escolhas, que padronizam as informações de remuneração e as tornam comparáveis para advogados brasileiros e portugueses, um primeiro aspecto a ser notado é o valor médio da remuneração bruta anual dos advogados no Brasil em 2020: R$ 85,55 mil (aproximadamente R$ 7,13 mil por mês) (IBGE, 2020).

Em que pese tal valor ser relativamente elevado, em um país onde o padrão mínimo de remuneração do trabalho em geral era de apenas R$ 1,05 mil por mês), o que impressiona na estrutura do mercado advocatício é a extrema desigualdade de valores de remuneração.

Havia uma elevada concentração de profissionais da advocacia no entorno dos R$ 85,55 mil anuais, mas havia também vários profissionais recebendo valores muito mais elevados que esses (vários recebendo, habitualmente, mais de R$ 1 milhão anuais) (IBGE, 2020).

O valor médio da remuneração bruta anual dos advogados em Portugal era de € 38,06 mil no ano de 2019 (algo como € 3,17 mil mensais) (MPG, 2019) [5]. Novamente, considerando que o padrão mínimo vigente no país nesse mesmo ano era de € 600, nota-se que o nível remuneratório médio dos advogados era bastante razoável.

Mas o que chama a atenção na estrutura do mercado advocatício português, tal como no brasileiro, é a intensa desigualdade de valores de remuneração. Desigualdade por regiões do país e, também, por tipo de inserção profissional dos advogados. Se os estagiários (ponto inicial da carreira) recebiam € 4,20 mil por ano na segunda maior praça advocatícia portuguesa (região do Porto), havia profissionais vinculados a grandes empresas/consultorias que recebiam € 104,00 mil anuais na maior praça de advocacia de Portugal (área de Lisboa) (MPG, 2019).

Por fim, fazendo uso do instrumental comparativo disponibilizado pelo World Bank Group (o "dólar-paridade-de-poder-de-compra"  $PPC), que permite a verificação dos níveis reais de remuneração prevalentes em cada país (WBG, 2020), percebe-se um fenômeno que talvez explique algo mencionado no início deste artigo: o amplo interesse de advogados brasileiros em trabalhar em Portugal, recorrendo inclusive ao acordo internacional de reciprocidade formalizado no final dos anos 2000.

O fenômeno é explicitado quando se constata que a média de remuneração bruta anual dos advogados portugueses era 1,7 vez superior à dos advogados brasileiros ($PPC 61,39 mil contra $PPC 35,64 mil). Apenas recordando, cada unidade monetária $PPC reflete a capacidade de aquisição de uma cesta bastante aproximada de bens e serviços no Brasil e em Portugal (WBG, 2020). Ou seja, na média, os profissionais portugueses conseguiam obter, com seu trabalho advocatício, um padrão de vida (estritamente mensurado em termos de consumo de bens e serviços) 1,7 vez superior, quando comparados com os profissionais brasileiros.

Considerações finais
Aparentemente, há um amplo interesse de advogados brasileiros em trabalhar em Portugal. Interesse que era viabilizado, em boa medida, pelo acordo de reciprocidade firmado ao final dos anos 2000 entre a OAP e a OAB  e, recentemente, encerrado pela OAP.

A dúvida a este respeito é: há elementos empíricos e/ou fáticos que fundamentem esse interesse? Neste artigo, procurou-se realizar a discussão de alguns desses elementos. Em particular, daqueles que se referem ao processo de formação de advogados e de sua inserção no mercado.

Em linhas gerais, Brasil e Portugal contam com sistemas muito distintos para a formação de profissionais jurídicos. Ao menos em termos de números absolutos, o Brasil oferta cem vezes mais vagas no curso superior de Direito do que Portugal (347,6 mil contra 3,3 mil vagas).

Ademais, Brasil e Portugal possuem mercados advocatícios com escalas muito diferentes. Há 1,234 milhão de advogados em atuação no primeiro país, contra 33,9 mil no segundo (uma razão de 36,4 vezes entre ambos os números).

Dessa maneira, talvez caiba a pergunta: o que atrai o interesse de advogados brasileiros em um mercado bastante restrito, numericamente falando, como o português? Um dos elementos empíricos que responde por isso é a remuneração. Levando em conta os diferenciais de custo de vida entre os países, por meio do dólar-paridade-de-poder-de-compra ($PPC), esse elemento se torna mais claro.

Na média, os profissionais portugueses conseguem obter, com seu trabalho advocatício, um padrão de vida (mensurado em consumo de bens e serviços) 1,7 vez superior, quando comparados com os profissionais brasileiros. Ou seja, com cargas de trabalho aproximadamente equivalentes, os profissionais portugueses conseguem alcançar uma remuneração quase duas vezes maior que os brasileiros [6].

Em alguma medida, isso talvez ajude a explicar o amplo interesse de advogados brasileiros em trabalhar em Portugal  aparentemente, muito maior que o inverso, de advogados portugueses desejando trabalhar no Brasil.

Por conta disso, retorna-se à assertiva inicial deste artigo: a de que o acordo de reciprocidade firmado entre a OAP e a OAB, e recém-rompido pela OAP, era mais relevante para os advogados brasileiros do que para os portugueses. Os primeiros pareciam ter mais a ganhar emigrando para Portugal do que os segundos emigrando para o Brasil.

 


Referências

BENEDETTO, R. D.; CAMPOS, A. G. Advogados no Brasil e em Portugal: As realidades enfrentadas pelos profissionais jurídicos no mercado laboral. Curitiba / Brasília: PPGD-UP / IPEA, 2021 (mimeo).

BRASIL. Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm>. Acesso em: 15/06/2021.

CAMPOS, A. G.; BENEDETTO, R. D. Mercado de Trabalho Jurídico no Brasil: Qual é a Situação Atual? Brasília: IPEA, 2021. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=38940>. Acesso em: 12/12/2021.

DGESP. Ensino Superior em números. Lisboa: Diretoria-Geral do Ensino Superior de Portugal, 2021. Disponível em: <https://www.dges.gov.pt/pt/pagina/ensino-superior-em-numeros?plid=371>. Acesso em: 07/03/2021.

DGPJP. Estatísticas da Justiça. Lisboa: Direção-Geral da Política de Justiça de Portugal, 2021. Disponível em: <https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt/Paginas/ProfissionaisJustica.aspx>. Acesso em: 25/03/2021.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=microdados>. Acesso em: 21/02/2021.

MEC. Sistema E-MEC. Brasília: Ministério da Educação do Brasil, 2021. Disponível em: <https://emec.mec.gov.br>. Acesso em: 07/03/2021.

MPG. Estudo de Remuneração — Portugal  Tax & Legal. Lisbon: Michael Page Group, 2019. Disponível em: <https://www.michaelpage.pt/sites/michaelpage.pt/files/tax_legal_2020.pdf>. Acesso em: 25/02/2021.

OAB. Quadro da Advocacia. Brasília: Ordem dos Advogados do Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>. Acesso em: 25/02/2021.

PORTUGAL. Lei nº 145/2015 (Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal). Disponível em: <https://portal.oa.pt/cidadaos/o-que-e-a-ordem/estatuto-da-ordem-dos-advogados>. Acesso em: 15/06/2021.

WBG. PPP – Conversion Factor – Private Consumption. Washington D.C.: World Bank Group, 2020. Disponível em: <https://data.worldbank.org/indicator/PA.NUS.PRVT.PP>. Acesso em: 18/04/2021.

 


[1] Para mais detalhes da metodologia de pesquisa utilizada neste artigo, ver Benedetto e Campos (2021).

[2] Mencione-se apenas que o discente egresso de um curso jurídico em Portugal, com duração regular de 4 anos, recebe o grau de licenciado. No Brasil, tal egresso recebe o grau de bacharel, após um curso com duração regular de cinco anos.

[3] Além de outros coletivos de cooperação internacional aos quais Portugal pertence.

[4] A este respeito, verificar as informações nos seguintes links: <https://tinyurl.com/4y9xtjzy>, <https://tinyurl.com/2f59mwtx>, bem como: <https://tinyurl.com/kjcymv8k>. Acesso em: 06/07/2023.

[5] Valor médio do rendimento anual bruto dos advogados, sem qualquer tipo de bônus incluído, com ponderação por cada localidade (Lisboa e Porto) e por tipo de advogado (estagiário e advogado) (MPG, 2019).

[6] Seja como for, vale a ressalva: os advogados, tanto do Brasil quanto de Portugal, defrontam-se com um aspecto comum, que é a acentuada desigualdade de remunerações, que marca claramente tanto o mercado advocatício brasileiro quanto o português.

Autores

  • é reitor da Universidade Positivo (UP) e docente e pesquisador do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP). Bacharel e mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Doutor em sociologia pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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