Opinião

É preciso descentralizar a negociação de tokens de renda fixa

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico autor de dois livros sobre criptoativos pela editora Tirant (um deles constante da bibliografia selecionada pelo Superior Tribunal de Justiça sobre criptomoedas) sócio-fundador do Lopes e Zorzo advogados escritório especializado em web3 e professor de programação aplicada à criação de smart contracts em nível de pós-graduação na Faculdade Unyleya e na EA Banking School.

    View all posts

13 de julho de 2023, 18h17

No ultimo dia 5 de julho, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) emitiu um ofício direcionado aos "prestadores de serviço envolvidos na atividade de tokenização" ("exchanges" ou "tokenizadoras"), consultores de crédito, estruturadores e cedentes de direitos creditórios”.

Trata-se de um documento sem força de lei, mas que manifesta o entendimento da autarquia sobre assuntos de sua competência.

A primeira questão jurídica que se extrai do ofício é que a mera utilização de tokens para representação de bens ou direitos é neutra em relação à criação de impactos regulatórios, isto é, não tem o condão de flexibilizar ou restringir a aplicabilidade das normas vigentes:

Ainda, esta área técnica entende que a "tokenização" de certificados de recebíveis não se diferencia, na prática, da "tokenização" de um contrato de cessão. Não há prejuízo, ou impactos negativos na eficiência, ao se "tokenizar" certificados ou contratos de cessão sendo que os certificados de recebíveis se materializam por meio do termo de securitização e a cessão por meio de outro instrumento jurídico [1]. (grifo nosso)

E isso porque conforme bem destacado no ofício: "'tokenização' é um processo de representar digitalmente um ativo ou a propriedade de um ativo" [2], o que significa que a análise jurídica não deve se guiar pela forma de representação do direito, mas pela "essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares" [3].

Com efeito, conforme afirmado por Agustín Carstens, General Manager do BIS (Bank for International Settlements), organização internacional responsável pela supervisão bancária, a máxima observada na regulação do sistema financeiro é a seguinte: "same risks, same regulation":

"O que define um campo de jogo nivelado neste contexto? Quando bancos e fintechs disputam os mesmos clientes com serviços semelhantes e assumindo riscos semelhantes, eles devem ser regulados de maneira semelhante: 'mesmo risco, mesma regulamentação' [4]."

Logo, se por um lado, é verdade que a mera representação de bens ou direitos por meio de tokens não elimina os riscos que fundamentam a regulação, por outro, o modo como esses tokens são negociados pode sim provocar impactos disruptivos no atual paradigma regulatório.

Por exemplo, no âmbito de alguns protocolos de finanças descentralizadas, o processo de captação e transferência de recursos é feito de forma direta entre superavitários e deficitários, isto é, sem que exista algo como uma instituição custodiante.

O objetivo é a criação de um ambiente totalmente automatizado por programas de computador conhecidos como smart contracts, capazes de substituir, ao menos em tese, os funcionários das instituições financeiras.

Apenas a título de exemplo, em um desses protocolos conhecidos como Compound Finance, todo o gerenciamento do risco de crédito é feito por um smartcontract chamado de Comptroler [5], cujas regras de funcionamento são públicas e podem ser auditadas, bastando que o interessado acesse o respectivo repositório do github [6].

Mas, se por um lado, essas especificidades dos protocolos DeFi podem ter impactos regulatórios favoráveis ao mercado, por outro, seguindo a máxima "same risks, same regulation", a questão é saber se esses protocolos são efetivamente descentralizados.

Na União Europeia, por exemplo, conforme explica Carolina Veas, apenas serviços envolvendo criptoativos que "sejam parcialmente descentralizados estão sujeitos ao regulamento MiCA, enquanto serviços totalmente descentralizados fornecidos sem intermediários estão excluídos de seu escopo":

"O Conselho da União Europeia adotou recentemente um regulamento sobre Mercados de Criptoativos (MiCA) que se aplica a criptoativos, seus emissores e provedores de serviços, e abrange uma gama de serviços que não são abordados no regulamento financeiro europeu.
No entanto, para serviços financeiros baseados em blockchain desenvolvidos de maneira altamente automatizada com o mínimo ou nenhum intermediário (comumente conhecido como Finanças Descentralizadas ou DeFi), determinar se o regulamento MiCA cobre esses serviços não é uma tarefa simples. Esta questão desafia particularmente a prestação de serviços de troca de criptoativos ou a operação de plataformas de negociação para criptoativos (conhecidas como trocas descentralizadas ou DEX). Apenas serviços criptográficos parcialmente descentralizados estão sujeitos ao regulamento MiCA, enquanto serviços totalmente descentralizados fornecidos sem intermediários estão excluídos de seu escopo." [7]

Ou seja, já podemos verificar que se a tecnologia for utilizada de forma correta, isto é, para real eliminação dos intermediários, e não apenas como instrumento de marketing, então os riscos diminuem e, por conseguinte, as pressões regulatórias também.

Superada essa questão de que a tokenização, de per si, poderia trazer benefícios regulatórios, o que está em jogo agora é saber como mensurar o grau de descentralização necessário para a existência de benefícios regulatórios. Haveria algum critério para saber se um determinado projeto de tokenização seria efetivamente descentralizado, que pudesse ser aplicado pelas autoridades de modo a evitar os rigores da lei?

Nesse sentido, Carolina Veas questiona:

Mas quantos players e quanto controle cada um deve ter para que um serviço seja totalmente descentralizado? Deve haver uma relação entre nós validadores, propriedade, transações ou outros fatores para avaliar a descentralização (por exemplo, o coeficiente de Nakamoto) [8]?

O coeficiente de Nakamoto, mencionado por Carolina, foi proposto em 2017 por Balaji S. Srinivasan e consiste em uma "medida quantitativa da descentralização de um sistema, motivada pelo conhecido coeficiente de Gini e pela curva de Lorenz" [9].

Independentemente da existência de um critério formal de descentralização como o coeficiente de Nakamoto, o fato jurídico é que uma vez demonstrada diminuição dos riscos, a interpretação da autarquia deverá mudar.

Nesse sentido, ainda que em tom crítico, Daniel Maeda, superintendente de supervisão de investidores institucionais da CVM, recentemente afirmou:

"As pessoas vendem certas estruturações e tecnologias com o mesmo discurso libertário do Bitcoin, que não tem ninguém por trás. Apesar do discurso, quando você mergulha naquilo percebe que tem sim um agente central, um empreendedor alinhado com o sucesso daquela emissão. Não enxergo DeFi como por conceito isento de responsabilidades" [10].

No entanto, reforçando a máxima de que "mesmos riscos mesma regulação", a questão não está em saber se há ou não alguém por trás de dado protocolo, mas se o protocolo é capaz de efetivamente eliminar os riscos que servem de justificativa para a regulação.

Ou seja, conforme afirmado pela advogada Alessandra Rossi Martins:

"Caso o agente privado não concorde, ele pode levar um projeto para o sandbox da CVM e mostrar dentro do ambiente de testes como seu modelo pode ser mais eficiente" [11].

Ou seja, mais do que buscar conversas com o regulador, dado a existência de captação de recursos do público em andamento, que poderá ser interpretada como ofertas irregulares de valores mobiliários, cabe agora às tokenizadoras a comprovação pública de que seus produtos de renda fixa não estão sendo ofertados de modo dissonante aos parâmetros estabelecidos na Lei.

 

 


[1] Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ofício-Circular nº 6/2023/CVM/SSE. São Paulo, 05 de julho de 2023. p.4

[2] Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ofício-Circular nº 6/2023/CVM/SSE. São Paulo, 05 de julho de 2023. p.3

[3] Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ofício-Circular nº 6/2023/CVM/SSE. São Paulo, 05 de julho de 2023. p.6

[4] Carstens, A. (2018). A level playing field in banking: Keynote address by Mr Agustín Carstens, General Manager of the BIS, at the Institute of International Finance Board of Directors dinner, Zurich, 21 January 2018. "What defines a level playing field in this context? When banks and fintech firms vie for the same customers with similar services and by taking similar risks, they should be similarly regulated: "same risk, same regulation". Disponível em: https://www.bis.org/speeches/sp180130.htm acesso em 05/07/2023.

[5] Cf. Compound Finance. Comptroller. Disponível em: https://docs.compound.finance/v2/comptroller/ . Acesso em: 06/07/2023.

[6] Compound Finance. (2023). Repositório do Compound Finance. https://github.com/compound-finance/compound-protocol/blob/master/contracts/Comptroller.sol

[7] The European Union Council has recently adopted a regulation on Markets in Crypto-Assets (MiCA) that applies to crypto-assets, their issuers and service providers, and covers a range of services that are not addressed in the European financial regulation.

However, for blockchain-based financial services developed in a highly automated manner with minimal or no intermediaries (commonly known as Decentralised Finance or DeFi) determining whether the MiCA regulation covers these services is not a straightforward task. This issue particularly challenges the provision of crypto-asset exchange services or the operation of trading platforms for crypto-assets (known as decentralised exchanges or DEX).

Only partially decentralised crypto services are subject to the MiCA regulation while fully decentralised services provided without intermediaries are excluded from its scope. VEAS, Carolina. DeFi and MiCA: How much decentralisation is enough?

Disponível em: https://cms.law/en/int/publication/legal-experts-on-markets-in-crypto-assets-mica-regulation/defi-and-mica-how-much-decentralisation-is-enough . Acesso em 06/07/2023

 

[8] But how many players and how much control must each have for a service to be fully decentralised? Should there be a ratio between validator nodes, ownership, transactions or other factors to assess decentralisation (e.g. the Nakamoto coefficient)? VEAS, Carolina. DeFi and MiCA: How much decentralisation is enough? Disponível em: https://cms.law/en/int/publication/legal-experts-on-markets-in-crypto-assets-mica-regulation/defi-and-mica-how-much-decentralisation-is-enough . Acesso em 06/07/2023

 

[9] Cf. Balaji S. Srinivasan. Quantifying Decentralization. We must be able to measure blockchain decentralization before we can improve it. Disponível em: https://news.earn.com/quantifying-decentralization-e39db233c28e Acesso em 06/07/2023.

[10] Caio Gusson. Cointelegraph Brasil. CVM não descarta enquadrar DeFi como valor mobiliário mas afirma que não será 'tão dura' como a SEC. Disponível em: https://br.cointelegraph.com/news/cvm-does-not-rule-out-framing-defi-as-a-security-but-says-it-will-not-be-as-tough-as-the-sec Acesso em: 06/07/2023.

[11] Valor Econômico. Ricardo Bomfim. Mais clareza ou retrocesso? Setor cripto debate novo ofício da CVM. Disponível em:

https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2023/07/06/mais-clareza-ou-retrocesso-setor-cripto-debate-novo-oficio-da-cvm.ghtml acesso em 06/07/2023.

 

Autores

  • é advogado, cofundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, autor de dois livros sobre criptoativos pela editora Tirant (um deles constante da bibliografia selecionada pelo Superior Tribunal de Justiça sobre criptomoedas), sócio-fundador do Lopes e Zorzo advogados, escritório especializado em web3, e professor de programação aplicada à criação de smart contracts em nível de pós-graduação na Faculdade Unyleya e na EA Banking School.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!