Opinião

Tarifa de esgotamento sanitário diante da ausência do tratamento dos efluentes

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12 de julho de 2023, 18h24

Como bem sabem os profissionais que militam no setor de saneamento básico, durante muitos anos foi controversa a cobrança de tarifa de esgotamento sanitário quando a prestadora do serviço público não executava a etapa correspondente ao tratamento do esgoto.

O pomo da discórdia estava na legitimidade e também na legalidade de se cobrar por serviço público que deixava de executar etapa extremamente importante, voltada para assegurar a destinação final adequada.    

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Diante desse contexto, firmaram-se três posições: 1) a impossibilidade de qualquer cobrança de tarifa, 2) a cobrança de tarifa proporcional e 3) a cobrança integral da tarifa.

O julgamento do AgInt no REsp 1.970.758, em 2013, parecia ter posto fim à longa discussão. Naquele precedente, submetido à sistemática do artigo 543-C do CPC (recursos repetitivos), o STJ fixou o entendimento pela cobrança da tarifa integral, desde que outras etapas inerentes ao esgotamento fossem disponibilizadas aos usuários, como se vê no seguinte enunciado:

"Tema 565: A legislação que rege a matéria dá suporte para a cobrança da tarifa de esgoto mesmo ausente o tratamento final dos dejetos, principalmente porque não estabelece que o serviço público de esgotamento sanitário somente existirá quando todas as etapas forem efetivadas, tampouco proíbe a cobrança da tarifa pela prestação de uma só ou de algumas dessas atividades."

Para esta decisão, a Corte Superior considerou especialmente as previsões contidas no artigo 3º da Lei Federal nº 11.445/2007 e no artigo 9º do Decreto nº 7.217/2010.

O dispositivo legal, ao definir o esgotamento sanitário, emparelhou o conjunto de atividades que compõem o serviço na sua integralidade, quais sejam:  coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários.

Já o dispositivo regulamentar soa mais relevante para o caso julgado, por estabelecer que os serviços públicos de esgotamento sanitário são constituídos por uma ou mais das seguintes atividades: 1) coleta, inclusive ligação predial, dos esgotos sanitários; 2) transporte dos esgotos sanitários; 3) tratamento dos esgotos sanitários; e 4) disposição final dos esgotos sanitários e dos lodos originários da operação de unidades de tratamento coletivas ou individuais, inclusive fossas sépticas. Ou seja, o Decreto não considera existente o serviço apenas se todas as etapas forem prestadas; com isso, dá margem para o entendimento de que a tarifa possa incidir a partir da prestação de uma dessas atividades.

Ocorre que, em 2019, a 2ª Turma do STJ desenhou uma vereda para o assunto, a qual, se existia, estava encoberta. No REsp 1.801.205/RJ já se formulava a síntese desse ponto de vista no sentido de que o Tema 565 não permitiria a cobrança de tarifa por esgoto não coletado ou despejado in natura. Tal compreensão foi sedimentada na referida Turma por sucessivos Acórdãos, tendo se tornado mais conhecida com o julgamento do AgInt no REsp 1.970.758, em 2022.

Esta posição passou a ser acompanhada por alguns julgamentos proferidos em Cortes Estaduais, bem como proporcionou à Procuradoria da República o pedido de revisão do Tema 565, de modo a restar expressa, naquela redação, o impedimento frisado no AgInt no REsp 1.970.758.

A finalidade desta análise não é adentrar no cerne da discussão sobre a cobrança de tarifa de esgotamento sanitário em todos os casos em que o esgoto é lançado in natura.

A intenção é, sim, expor que o Acórdão do AgInt no REsp 1.970.758 deixou de levar em consideração uma premissa fática e outra jurídica, as quais, em nosso entender, seriam capazes de modificar completamente o veredito. Afigura-se oportuno tratar da questão, pois, em muitos outros casos, o mesmo contexto estará presente, e o melhor julgamento dependerá sempre da correta apuração dos fatos existentes e da reflexão sobre os direitos e deveres que deles decorrem.

O mencionado Recurso Especial teve em vista a Apelação Cível nº 0047338-73.2016.8.19.0205, que submeteu, ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro lide relacionada à cobrança de tarifa por serviços de esgotamento sanitário prestados na Cidade do Rio de Janeiro. A 17ª Câmara Cível do TJ-RJ, convém frisar, já havia proferido o entendimento pela impossibilidade de cobrança da tarifa diante da ausência de tratamento do esgoto, posição essa mantida pela Corte Superior.

A leitura atenta do laudo pericial colhido na fase de provas revela que a edificação que originou a cobrança de tarifa possuía as seguintes características:

— disponibilidade de serviço de captação e transporte de esgoto no logradouro por intermédio da rede pluvial (separador unitário);
— a rede de esgotamento interno do imóvel convergia para uma fossa-filtro localizada dentro do imóvel e seguia para a interligação com a galeria de águas pluviais (GAP) existente no logradouro;
— a Concessionária não prestava o serviço de tratamento do esgoto lançado na rede de captação das águas pluviais (GAP), que tinha como destino os córregos e rios da região.

Do rol acima, importa esclarecer especialmente o seguinte: a fossa-filtro que o perito constatou existir dentro do terreno particular é dispositivo voltado para promover o tratamento primário do esgoto. A perícia inclusive reconheceu tratar-se de solução adequada para a hipótese de não haver tratamento pela rede pública. 

Não consta dos autos a origem da implantação daquele equipamento, mas provavelmente a medida foi adotada pelo construtor para atender ao que dispunham  e ainda dispõem  as regras incidentes para aquela unidade imobiliária, as quais são comuns em várias cidades brasileiras: a edificação a ser construída em logradouro não atendido por rede própria de esgotamento sanitário deve ser equipada com dispositivo apto a tratar o esgoto que será gerado pelo uso do imóvel.

No município do Rio de Janeiro estas regras estão fixadas pelo o artigo 488, parágrafo único da Lei Orgânica Municipal, o artigo 4º, caput e parágrafo único da Lei Municipal nº 1.631/90 e/ou mesmo o artigo 8º do Decreto Estadual nº 553/76.

Como restou consignado no laudo pericial, a concessionária-ré não executava a fase de tratamento do esgoto gerado pelo autor da ação, mas daí não cabia inferir necessariamente que os efluentes transportados pela galeria de águas pluviais fossem despejados sem tratamento algum. Convém mencionar que o laudo pericial apresenta certa dubiedade, mas não ficou consignado que a fossa-filtro estivesse inoperante ou apresentasse falhas graves.

Note-se ainda que, se ocorresse a captação de efluentes não tratados pelas galerias de águas pluviais, por inoperância ou ineficiência daquele dispositivo, haveria então de se apurar a quem competia o dever de assegurar seu bom funcionamento e, em última análise, quem detinha a responsabilidade pelo tratamento dos efluentes.

Esse exame não foi empreendido no acórdão do TJ-RJ, que partiu da compreensão de que o esgoto não era minimamente tratado  vale remarcar que isso pode ter sido um erro de fato – para concluir automaticamente se tratar de descumprimento de obrigação da concessionária e, mais que isso, da prática de ilícito ambiental pela empresa.

O veredito contém uma premissa jurídica imprópria: a imputação da responsabilidade pelo tratamento dos efluentes não há de ser feita automaticamente à prestadora do serviço de esgotamento sanitário.

É certo que o tratamento do esgoto, a princípio, integra o serviço público de esgotamento sanitário, como preceitua o artigo 3-B, III da Lei Federal nº 11.445/2007. Não se pode ignorar, porém, que o artigo 5º da mesma Lei permite excluir, do rol de abrangência do serviço público, as ações e serviços de saneamento básico de responsabilidade privada.

Na realidade, assiste à legislação do titular dos serviços de saneamento básico atribuir, para o gerador de demanda que não pode ou não deve ser atendida pelo serviço público, a responsabilidade de prover o atendimento fora da rede pública (integral ou parcialmente).

Em geral, quando o preceito é lembrado vem à tona a figura do grande demandante, lembrando-se frequentemente do caso mais corriqueiro: a coleta e destinação final dos resíduos sólidos de estabelecimentos comerciais de maior porte (supermercados etc) ou daqueles que produzem resíduos especiais (hospitais etc). Nada impede que a regra se aplique ao gerador de esgoto de pequena escala, como, por exemplo, para o responsável por edificação situada em área que não é atendida pela rede pública com tratamento.

A opção individual de utilizar imóvel nessas condições traz à tona a figura da poluição e do dano à saúde pública, legitimando a fixação de exigências legais que mitiguem ou eliminem o risco. Trata-se aqui de hipótese situada dentro da concepção clássica do poder de polícia, que no caso encontra a figura do poluidor-pagador, bastante difundida no Direito Ambiental. Diante desses encontros, nosso ordenamento jurídico não raro produz o seguinte comando: ao agente causador da poluição cumpre arcar, sempre que possível, com as medidas necessárias para evitar, mitigar ou compensar o (risco de) dano ambiental decorrente de sua conduta.  

Por tudo isso, a depender da legislação do titular do serviço de esgotamento sanitário, o ônus não só da implantação do dispositivo de tratamento dos efluentes, mas também da sua operação e manutenção pode ser atribuído ao particular, com apoio no artigo 5º da Lei Federal nº 11.445/2007. Considera-se legítimo que isso ocorra quando o esgoto é produzido a partir de edificação que alguém resolveu construir e/ou utilizar em área não servida por rede coletora com tratamento.

A legislação carioca, por exemplo, é assertiva quanto ao dever de o construtor implantar o dispositivo de tratamento nas áreas que não são servidas por esgoto tratado, mas não é meridianamente clara quanto a quem compete o dever de operar e manter a fossa-filtro situados nos imóveis privados. Ainda assim, parece coerente que o ônus da operação e da manutenção também recaia sobre quem optou por disponibilizar ou utilizar o imóvel situado fora da rede de tratamento, dando-se mais ampla vazão ao princípio do poluidor-pagador.

Não se perca de vista que a tarefa de manter em boas condições a fossa-filtro exige o ingresso rotineiro em propriedade particular, razão pela qual, se for atribuída a responsabilidade à operadora do serviço púbico, haverá certa complexidade operacional e grande risco de insucesso, na medida em que seus agentes dependerão da vontade e da disponibilidade de cada morador para que a conservação se concretize satisfatoriamente por meio de visitas periódicas.

Voltando ao caso judicial em exame, é oportuno esclarecer ainda que a utilização da galeria de águas pluviais pela Concessionária-Ré era  e ainda é  permitida por contrato de interdependência firmado com o município do Rio de Janeiro, o qual disciplina o uso provisório daquelas galerias como sistema unitário. O instrumento contratual contempla o transporte de efluentes sanitários com adequado tratamento pela rede de drenagem pluvial, enquanto não for implantado o separador absoluto, que vem a ser o conjunto de condutos, instalações e equipamentos destinados a coletar, transportar, condicionar e encaminhar exclusivamente esgoto sanitário (artigo 3º, XVIII).

"— solução provisória resulta na utilização do sistema de drenagem para transporte do esgoto e é claramente amparada pelo artigo 45, §3º da Lei federal nº 11.445/2007. Afinado com a progressividade e gradatividade da ampliação dos serviços, tal preceito estabelece as obrigatoriedades quanto à fixação de metas progressivas para a substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto e quanto ao tratamento dos esgotos coletados em períodos de estiagem, enquanto durar a transição. Por sinal, o citado Contrato de Interdependência para uso das galerias de águas pluviais impõe à Concessionária o dever de promover a limpeza e fazer a manutenção ordinária dos ramais utilizados."

Em suma, nas lides que tratam da cobrança de tarifa em situações nas quais a operadora não executa o tratamento dos efluentes é necessário não se perder de vista que, em certas ocasiões, a lei estabelece o dever de a edificação conter dispositivo para tratar o esgoto. Existe portanto a possibilidade de o esgoto ser tratado antes de chegar ao sistema utilizado como rede coletora, e essa questão precisa ser bem avaliada pelos julgadores.

Em outras palavras, o fato de a operadora do esgotamento sanitário não promover o tratamento dos efluentes sanitários não significa que necessariamente o esgoto não seja tratado. Dita tarefa pode ser atribuída ao usuário dos serviços de coleta, transporte e de destinação final (ou a terceiro).

E aqui advém o ponto central que se pretendeu expor neste artigo: se o tratamento dos efluentes restar atribuído ao usuário da rede coletora (ou a terceiro, por exemplo, o proprietário ou o construtor), não há a menor razão para desonerá-lo do pagamento da tarifa do esgotamento sanitário; o ônus de tratar o esgoto, nesses casos, surge como condição legal para permitir a opção do indivíduo de utilizar imóvel situado em logradouro público que não é atendido por rede de esgoto tratado. Não há nada aí que legitime a isenção da tarifa de esgotamento sanitário, quando lhe são prestados os serviços de coleta, transporte e destinação final.

Ao contrário, essa solução constituiria verdadeiro privilégio e consequentemente propiciaria tratamento anti-isonômico perante os demais usuários, configurando uma espécie de subsídio a reduzir o custo da moradia com a oferta gratuita de serviço público. Vale acrescentar que, por isso mesmo, a não incidência da tarifa de esgoto serviria como incentivo à ocupação de áreas não servidas pela rede coletora, representando um contrassenso ao bom desenvolvimento urbano e à proteção ambiental.

E mais, seria contrário à busca da modicidade tarifária  por reduzir indevidamente o número de pagantes  e/ou à universalização do serviço  por dificultar a viabilidade econômico-financeira da operação ao diminuir o retorno pelos investimentos realizados e a devida remuneração pelos custos operacionais.

Frise-se, ainda no contexto de a responsabilidade pelo tratamento ser atribuída ao particular, a tarifa de esgotamento deverá ser cobrada mesmo na hipótese de ter se verificado que, de fato, o efluente seja despejado in natura nas galerias de águas pluviais. Não haveria aí ilícito praticado pela prestadora de serviço e seria inconcebível beneficiar o próprio infrator (poluidor) com a isenção tarifária.

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