Opinião

Limites da competência do juiz das garantias

Autor

  • Guilherme Henrique Gonçalves

    é professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) graduado pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) pesquisador do núcleo de pesquisas Sistema Criminal e Controle Social (SCCS/UFPR/PPGD) e do Núcleo de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Contemporâneos (NEDPP/UFRGS/Capes) e coordenador do Grupo de Estudos Massimo Pavarini (ICPC).

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12 de julho de 2023, 16h16

Com o início do julgamento de mérito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, reacendeu-se o debate em torno da regulamentação do juiz das garantias oferecida pela Lei nº 13.964/19.

Em linhas gerais, nos artigo 3º-B, inciso XIV e artigo 3º-C, caput, do Código de Processo Penal [1], a lei inaugurou uma nova divisão de competências no processo penal. E o fez com o objetivo de assegurar a vigência do princípio dispositivo, que unifica o sistema processual acusatório [2], de modo que agora o CPP passou a prever que um magistrado será o responsável por controlar a legalidade da investigação processual; e outro será competente para instruir o processo e realizar o julgamento de mérito do caso penal.

Essa divisão de competência pode ser claramente observada nas diferentes fases do processo. Tomando como parâmetro o procedimento comum ordinário, é possível observar três momentos nos julgamentos em primeiro grau: uma fase de investigação preliminar; outra, postulatória, de oferecimento, de recebimento da denúncia e de resposta à acusação; e uma terceira, de instrução e julgamento de mérito [3]. Segundo o modelo estabelecido pela nova legislação, haverá um juiz com competência para a primeira e segunda fases, e outro competente para a terceira.

A despeito da clareza do procedimento, no julgamento das ADIs levantaram-se objeções quanto aos limites da competência do juiz das garantias.

Ao longo do extenso voto, o ministro Luiz Fux — relator das ADIs — dedicou horas a fio para examinar a inconstitucionalidade desta nova divisão de competências. Em várias passagens, destacou a atecnia do legislador ao definir o juiz das garantias. Nestas ocasiões, qualificou de "erro legístico" o fato de que a competência deste juízo cessaria no momento do artigo 399, do CPP.

Em linhas gerais, esse artigo estabelece que com o recebimento da denúncia, o juiz designará dia e hora para a realização de audiências instrutórias, ordenando a intimação do acusado, do seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. Ele foi concebido pelo legislador reformador como o ponto de encerramento da fase postulatória, daí porque é o limite da atuação do juiz das garantias no processo, demarcando o início da jurisdição do juiz da instrução.

Para o ministro Fux, no entanto, uma postura técnica do legislador faria com que a competência do juiz das garantias cessasse em momento anterior, vale dizer, na etapa em que se recebe a denúncia, nos termos do artigo 396, do CPP. Desse modo, propôs o ministro a realização de interpretação conforme à constituição nos seguintes termos: "a primeira providência é mudar esse artigo 399, pelo 396, que é o que cuida do recebimento da denúncia".

Segundo se infere da visão do ministro, uma legística adequada estabeleceria ao juiz da instrução competências ainda relacionadas à fase postulatória, já que ele deveria apreciar a resposta à acusação; seja para ratificar o recebimento da acusação, seja para absolver sumariamente o réu; seja para realizar a desclassificação antecipada da imputação; ou para rejeitar o recebimento da denúncia, nos termos do artigo 397, CPP; além de efetivamente instruir o processo.

Esse raciocínio, no entanto, parece-me equivocado. Pretendo demonstrá-lo a partir de três sortes de argumentos.

Em primeiro lugar, enquanto juízo precipuamente destinado ao controle de legalidade da atividade investigativa, a criação do juiz das garantias teve por objetivo preservar a originalidade cognitiva do juiz da instrução processual [4], resguardando a sua imparcialidade para julgar definitivamente o caso penal [5]. Para alcançar este desiderato, o legislador optou por tornar impedido o juízo que tomar contato com a investigação preliminar, impedindo-o de funcionar no julgamento de mérito do processo.

Se isso é assim, como parece ser, não faria sentido reservar ao juiz da instrução o dever de examinar a resposta à acusação. Essa medida exigiria que o juiz tenha contato com todos os elementos de informação colhidos na investigação. Afinal, não haveria meios para apreciar uma absolvição sumária (artigo 397, CPP) ventilada pela defesa sem fazer remissão ao que foi produzido na investigação preliminar.

Em segundo lugar, a fase de recebimento da acusação não se encerra no artigo 396, do CPP, como fez crer a argumentação do ministro [6]. Segundo a sistemática atual, nada impede que o juiz reconsidere a decisão que recebeu a denúncia, por exemplo, para rejeitá-la por faltar uma condição para o exercício da ação — a justa causa, por exemplo — constada após a argumentação defensiva na resposta à acusação. Essa reapreciação ainda faz parte da fase postulatória do processo. Atribuir ao juiz da instrução a competência para examinar essas questões seria o mesmo que esvaziar a originalidade cognitiva que deu origem ao sistema de juiz das garantias.

A fase instrutória não se inicia com o artigo 397, do CPP; tampouco se encerra com o artigo 396. Muito menos pode servir como limite da competência o artigo 398, do CPP, que demarcava o início da instrução processual, já que ele foi revogado pela Lei 11.719/08. Logo, não haveria outro dispositivo, senão o artigo 399, do CPP, a fazer cessar a competência do juiz das garantias. Não há nenhum erro legístico a apontar, senão o contrário [7].

Aliás, essa crítica do ministro Luiz Fux não deixa de causar estranheza. Isso porque, no julgamento do Agravo Regimental na Ação Penal 630, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a fase instrutória do processo penal só se inicia após a apreciação das teses levantadas na resposta à acusação. Essa conclusão consta já na ementa do julgado [8]. Embora tenha sido o ministro Ricardo Lewandowski o relator, o ministro Fux votou acompanhou integralmente o voto.

Em terceiro e último lugar, se a competência do juiz das garantias diz respeito ao momento prévio à efetiva instauração do processo penal, simplesmente não faz sentido encerrá-la antes da finalização da etapa preliminar — ou postulatória — da persecução penal. Ressalvadas pouquíssimas exceções, antes do artigo 399, do CPP, não há instrução processual a ser feita. Segundo a nova sistemática, a competência do juiz da instrução passa a ser revisora das decisões proferidas pelo juiz das garantias.

Ademais, se é certo que os autos da investigação preliminar deverão permanecer acautelados na secretaria do juiz das garantias — consoante o artigo 3º-C, § 3º, do CPP —, a cognição do juiz da instrução ficará limitada ao que foi produzido em contraditório [9]. Desse modo, este juiz não teria meios para proferir qualquer decisão relacionada à fase postulatória.

A meu juízo, uma adequada interpretação conforme à Constituição estabeleceria que a leitura dos artigos 3º-B, inciso XIV, e 3º-C, caput, do CPP apenas admite que compete ao juiz das garantias decidir sobre a resposta à acusação; devendo os autos seguirem ao juiz da instrução para designação da audiência, nos termos do artigo 399, do CPP.

Enfim, não há dúvidas de que uma reforma tão profunda quanto a oferecida pela Lei nº 13.964/19 venha a acender tantas polêmicas. Muito mais do que instituir novos institutos de direito processual penal, a reforma tornou (mais) claras as diferentes concepções políticas a respeito do processo penal. Sabe-se, porém, que no campo da política não há nenhum argumento com poder de convencimento absoluto. Aliás, como disse Tomás S. Vives Antón, "me atreveria a dizer que, frequentemente, nestes temas nada convence menos do que um bom argumento" [10].

 


[1] Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

(…)

XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código.

Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In Revista da Faculdade de Direito UFPR, pp. 163-198, Curitiba, ano 30, n.º 30, 1998. p. 165-167.

[3] Sobre o tema REBOUÇAS. Sérgio. Curso de direito processual penal. 2ª ed. Belo Horizonte: D'Plácido, 2022, v. 2. p. 333 e ss.

[4] Assim, BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 9ª ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. p. 175-178; referindo-se à potencialidade de afetação da imparcialidade do juiz da instrução, REBOUÇAS. Sérgio. Curso de direito processual penalOp. Cit. p. 251 e ss.; GIACOMOLE, Nereu. A fase preliminar do processo penal. 2ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 76-83; LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 142 e ss.; LEBRE, Marcelo. Pacote anticrime: anotações sobre os impactos penais e processuais. Curitiba: Aprovare, 2020p. 139. DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao pacote anticrime. Lei 13.964/2019. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 91; próximo a isso, PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao código de processo penal e sua jurisprudência. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2021. p. 45 e ss.; QUEIROZ, Paulo. Direito processual penal – introdução. Salvador: JusPoDIVM, 2022. p. 185 e ss. Cético quanto ao ponto, mas reconhecendo-o: CUNHA, Rogério Sanches. Pacote anticrime – Lei 13.964/19Op. Cit. p. 70.

[5] É bem verdade que esta originalidade cognitiva não está bem colocada nos termos da Lei 13.964/19, sobretudo porque impõe ao juiz da instrução a consulta ao caderno investigativo ao revisar as medidas cautelares decididas pelo juiz das garantias, uma vez finda a sua competência. Vide art. 3ºC, § 2º, do CPP.

[6] Concordando com este equivocado argumento: CUNHA, Rogério Sanches. Pacote anticrime – Lei 13.964/19: Comentários às alterações no CP, CPP e LEP, Salvador: JusPODIVM, 2020. p. 91.

[7] "O artigo 399 é o ato praticado pelo juiz após a resposta do acusado em que o juiz, refutando as teses da resposta à acusação, recebe a denúncia e designa audiência de instrução, debates e julgamento". DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao pacote anticrime... Op. Cit. p 89.

[8] PROCESSUAL PENAL. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA EM MOMENTO ANTERIOR À DIPLOMAÇÃO COMO DEPUTADO FEDERAL. CITAÇÃO NOS MOLDES DOS ARTS. 396 E 397 DO CPP. DEFESA APRESENTADA NO JUÍZO MONOCRÁTICO. REMESSA DOS AUTOS AO STF. NECESSÁRIO EXAME DA POSSIBILIDADE DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA DO ART. 397 DO CPP ANTERIORMENTE AO INÍCIO DA INSTRUÇÃO. I – Recebida a denúncia antes de o réu ter sido diplomado como Deputado Federal, apresentada a defesa escrita, é de ser examinada a possibilidade de absolvição sumária, segundo a previsão do art. 397 do Código de Processo Penal, mesmo que o rito, por terem os autos sido remetidos ao Supremo Tribunal Federal, passe a ser o da Lei 8.038/90. II – Na hipótese, tendo constado no mandado citatório menção expressa à sistemática dos arts. 396 e 397, ambos do Código de Processo Penal, não seria razoável exigir que o réu, ao invés de ofertar defesa escrita, apenas noticiasse ao Juízo monocrático sua novel situação de parlamentar e requeresse a remessa dos autos à Corte Suprema. III – Entendimento diverso colocaria em risco o direito à ampla defesa, ante a supressão da possibilidade de o acusado livrar-se do processo penal antes da instrução, o que é conferido tanto pelo art. 397 do CPP, quanto pelo art. 4º da Lei 8.038/90, este último aplicável às ações penais originárias. IV – Rejeitado o agravo regimental interposto pelo Ministério Público que pugnava pelo imediato início da instrução, com a oitiva das testemunhas arroladas pela acusação. V – Remessa dos autos à Procuradoria Geral da República para manifestar-se acerca da defesa escrita do réu. (AP 630 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2011)

[9] DEZEM, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao pacote anticrime... Op. Cit. p. 91.

[10] VIVES ANTÓN, Tomás S. Sobre la imparcialidad del juez y la dirección de la investigación oficial del delito. In Pensar la libertad. Últimas reflexiones sobre el Derecho y la Justicia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2019. p. 64.

Autores

  • é professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC) e em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), graduado pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), pesquisador do núcleo de pesquisas Sistema Criminal e Controle Social (SCCS/UFPR/PPGD) e do Núcleo de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Contemporâneos (NEDPP/UFRGS/Capes) e coordenador do Grupo de Estudos Massimo Pavarini (ICPC).

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