Opinião

(In)comunicabilidade dos frutos da exploração econômica de obras artísticas

Autores

  • Pedro Bittencourt

    é sócio do escritório Malta Advogados e mestrando e bacharel em Direito pela UnB (Universidade de Brasília).

  • Maria Eduarda Amaral

    é advogada especializada em Direito Digital graduada em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara pós-graduada em propriedade intelectual e especialista em gestão jurídica e proteção de dados pessoais pelo Ibmec-BH.

11 de julho de 2023, 15h10

Sabe-se que a exploração dos direitos autorais sobre as obras do intelecto constitui importante fonte de renda para os artistas, bem como para suas gerações futuras. Por isso, é necessário compreender como se opera a meação dos direitos autorais e seus frutos — isto é, como é feita a divisão desses em caso de divórcio ou falecimento nos regimentos de comunhão parcial, comunhão universal e separação final dos aquestos.

Esta publicação tratará sobre a possível meação dos frutos gerados pelos direitos autorais e quais aspectos devem ser considerados para verificar se há direito à meação ou não, e em que medida esse direito pode ser exercido.

Os direitos autorais referem-se aos direitos morais e patrimoniais que autores de obras intelectuais possuem em relação à sua criação, sendo vastas as obras consideradas criações do espírito, como textos de obras literárias, artísticas ou científicas; as obras coreográficas; as composições musicais, tenham ou não letra; as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; dentre diversas outras previstas na Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais).

O direitos autorais morais são os considerados de personalidade, sendo inalienáveis e irrenunciáveis, dentre os quais se incluem o direito de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; o de ter seu nome, pseudônimo indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; de conservar a obra inédita; de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; todos previstos no artigo 24 da Lei de Direitos Autorais.

Já os direitos autorais patrimoniais referem-se à dimensão de utilização, fruição e disposição da obra intelectual. Assim, estão inclusos os direitos para autorizar a reprodução, a edição, a adaptação, distribuição, utilização, seja de forma onerosa ou gratuita, conforme dispõe o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais. Nesse âmbito, está inserida também a possibilidade de exploração econômica da obra, que é uma das formas de fruição dos direitos.

A distinção é relevante porque interfere na definição sobre a existência do direito de meação dos direitos autorais. A regra aplicada será diferente em cada uma dessas esferas [1].

Quanto aos direitos autorais morais, é inegável que esses não serão objeto de meação entre cônjuges, já que a lei expressamente prevê que se referem a direitos "inalienáveis e irrenunciáveis". Além disso, por sua natureza jurídica — um direito de personalidade — não podem ser transmitidos a outrem.

Lado outro, os direitos autorais patrimoniais não possuem vedação à alienação ou renúncia.

Em relação à meação, a Lei de Direitos Autorais, em seu artigo 39, prevê que "Os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário".

Com base nessa disposição, fica evidente que, em regra, os direitos patrimoniais não se comunicam. No entanto, é possível que os cônjuges tornem os direitos patrimoniais comunicáveis por comum acordo em pacto antenupcial. Além disso, como regra geral, serão objeto de meação "os rendimentos resultantes de sua exploração (dos direitos patrimoniais)".

É necessário analisar o que pode ser considerado "rendimentos de sua exploração" e qual período de recebimento de rendimentos seria considerado em caso de meação.

Rendimentos de sua exploração e período de comunhão

Ao tratar sobre os direitos autorais no contexto da meação entre cônjuges, Rolf Madaleno considera que os rendimentos da exploração dos direitos patrimoniais são precisamente os frutos gerados pelos direitos patrimoniais:

Primeiramente, hão de se diferenciar direitos patrimoniais e direitos morais de autor. Referem-se os primeiros à exploração econômica da obra, aos negócios jurídicos a ela relativos, enquanto os direitos morais são os direitos de personalidade do autor, elencados no rol do artigo 24 da Lei 9.610/1998, dessa forma, serão comunicáveis os frutos auferidos durante o matrimônio, mas seriam incomunicáveis os direitos patrimoniais do autor, salvo disposição diversa por contrato antenupcial [2].

A título de exemplo, são frutos os valores pagos em remuneração a contratos de cessão de direitos autorais; os valores pagos ao artista por plataformas de streaming conforme a reprodução da obra; os valores recebidos para veiculação com exclusividade de imagens; dentre outros.

Otávio Afonso divide as possibilidades de exploração dos direitos patrimoniais em três categorias:

1) Direitos de reprodução: do todo ou de parte de uma obra em forma material,­ tangível ou intangível,­ que compreende a edição,­ a reprodução mecânica  de uma gravação sonora ou de uma obra audiovisual,­ a reprodução reprográfica etc.

2) Direitos de comunicação pública: da obra em forma não material,­ a espectadores,­ por meio da exposição,­ da representação ou execuções públicas,­ da radiodifusão,­ da distribuição por redes de cabo etc.

3) Direitos de transformação: que consiste na faculdade do autor explorar sua obra autorizando a criação de obras derivadas dela como adaptações,­ traduções,­ revisões,­ compilações,­ antologias etc [3].

Assim, há diversas formas de exploração dos direitos patrimoniais capazes de gerar rendimentos ao autor, que, por lei, são comunicáveis. Ressalva-se que é sempre possível que os cônjuges regulem a comunicação dos bens em pactos antenupciais conforme sua vontade, desde que em observância aos limites legais.

Quanto ao período em que há direito à meação, entende-se que haverá o direito à meação em relação somente aos frutos percebidos durante a constância do casamento. Assim, extinta a comunhão, os frutos deixarão de ser comunicáveis, mesmo que a obra e, portanto, os direitos patrimoniais referentes a ela tenham se originado na constância do casamento.

É possível pensar o instituto em analogia à meação dos frutos de bens imóveis particulares. Explica-se. Nos regimes da comunhão parcial e universal de bens, é certo que os bens imóveis particulares [4] não podem ser objeto de meação quando do fim do vínculo. No entanto, todos os frutos gerados por esses bens durante a constância do casamento, como os aluguéis, são comunicáveis e devem ser partilhados.

Da mesma forma, os direitos patrimoniais autorais são particulares e não poderiam ser partilhados na meação. No entanto, os frutos por eles gerados durante a constância da comunhão deverão ser objeto de partilha na hipótese de regimes de comunhão parcial, comunhão universal e participação final nos aquestos.

Ressalva quanto ao regime de comunhão parcial de bens

É preciso ressalvar que, mesmo com a previsão legal de que os rendimentos da exploração comportam comunicabilidade, há decisões judiciais que consideram os rendimentos dos direitos autorais patrimoniais incomunicáveis no regime da comunhão parcial de bens, em razão da exclusão dos frutos do trabalho individual da comunhão pelo artigo 1.659, VI, do Código Civil [5].

No caso abaixo, em que foi julgada a meação dos frutos dos trabalhos autorais do cantor José Rico, da dupla José Rico e Milionário, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu não haver direito à meação do cônjuge em relação aos frutos das obras do cantor, por serem frutos do trabalho e, portanto, incomunicáveis, pela previsão do artigo 1.659, VI, do Código Civil. Vejamos:

"Assim, a alegação de verossimilhança acaba comprometida, na medida em que, em princípio, não podem ser partilhadas as verbas oriundas de direito autoral porque frutos civis do trabalho, pelo que incomunicáveis mesmo no regime da comunhão de bens, tanto outrora (CC, artigo 263, XIII) como atualmente (CC, artigo 1.659, VI)". (TJSP – Agravo de Instrumento 2123065-08.2017.8.26.0000; relator (a): Vito Guglielmi; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Americana  1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 06/12/2017; Data de Registro: 06/12/2017).

Em julgado mais antigo do mesmo tribunal e sobre a mesma temática, foi definido que há direito à meação dos frutos recebidos até a morte (por já terem incorporado o patrimônio do de cujus) e não há direito à meação dos que vierem a ser recebidos após a morte por serem frutos provenientes exclusivamente do trabalho:

"De modo que, sendo tais direitos provenientes do trabalho exclusivo do de cujus e não se tratando, pois, de bens adquiridos onerosamente no curso da união estável (artigo 1.790 do C.C.), devem ser atribuídos exclusivamente aos filhos do de cujus; de sorte que correta a decisão ao entender incabível conferir a meação à ex-companheira.

Ademais, insubsistente a tese da agravante de que tais direitos foram adquiridos a título oneroso haja vista a forma de contratação com a editora das obras, porquanto, para o deslinde da questão, o que importa saber é a origem de tais direitos, e esta, de forma inconteste, provém do trabalho individual do falecido.

Entretanto, no que tange ao outro pedido, de meação dos direitos devidos até a abertura da sucessão, a decisão está a merecer parcial reforma.

É que, como bem observou a agravante, abraçando a melhor doutrina e jurisprudência para o caso, uma vez já tendo ingressado a remuneração dos aludidos direitos no patrimônio do falecido, deve-se entender que o dinheiro passou a fazer parte do patrimônio comum.

Assim, reportando-se ao escólio de Carlos Roberto Gonçalves citado na minuta recursal: "Deve-se entender, na hipótese, que não se comunica somente o direito aos aludidos proventos. Recebida a remuneração, o dinheiro ingressa no patrimônio comum" (Direito Civil Brasileiro, volume VI, Ed. Saraiva, 2005,p. 417). Por tal razão, impositiva a parcial reforma do decisum, apenas para reconhecer o direito da agravante à meação de tais direitos, no indigitado período". (TJSP – Agravo de Instrumento 9037799-46.2008.8.26.0000; relator (a): Percival Nogueira; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas – 2. VARA FAMÍLIA; Data do Julgamento: 12/03/2009; Data de Registro: 26/03/2009).

Assim, verifica-se que há casos apreciados no âmbito judicial em que ficou entendido que não há direito à meação dos frutos dos direitos patrimoniais no regime da comunhão parcial de bens, em razão da aplicação do artigo 1.659, VI, do Código Civil.

Conclusões
Em suma, é possível afirmar que, em regra, os rendimentos, ou seja, frutos da exploração econômica dos direitos patrimoniais autorais são objeto de meação.

Em caso de eventual dissolução do vínculo conjugal, haverá direito à divisão apenas dos bens recebidos durante a constância do casamento, não havendo que se falar no direito ao recebimento dos frutos das obras criadas durante o casamento, após o divórcio ou falecimento.

Ainda, no caso da comunhão parcial de bens, há precedentes judiciais em que não foi reconhecido o direito à meação dos frutos, em razão de se enquadrar no conceito de "proventos do trabalho" previsto no artigo 1.659, VI, do Código Civil que elenca os bens excluídos da comunhão.

Como visto, o regramento dos direitos autorais no Brasil é notoriamente minucioso e há especificidades relevantes a se considerar no tema da meação dos direitos autorais.

Nesse contexto, torna-se cada vez mais importante a elaboração de um planejamento patrimonial e sucessório que contemple as disposições de vontade do artista quanto aos frutos dos seus direitos autorais patrimoniais.

Os cônjuges que desejarem regular a eventual partilha dos frutos dos direitos patrimoniais autorais poderão estipular o acordo em pacto antenupcial, valendo-se do permissivo legal sobre o assunto. Além dessa, há outras formas de regular a exploração de artísticas em vida que não caberiam neste único artigo, como a cessão gratuita ou onerosa dos direitos autorais patrimoniais.

Ressalte-se a importância de contar com profissionais qualificados para a elaboração técnica e precisa do instrumento que regulará o pacto antenupcial, bem como dos outros utilizados no planejamento patrimonial e sucessório, de modo a evitar eventual anulação de seus termos e posterior perda de seus efeitos caso o instrumento não esteja conformado à lei.

 


[1] Os direitos autorais abrigam duas diferentes prerrogativas, sendo uma de natureza moral e a outra sob o prisma patrimonial. O caráter de inalienabilidade e de irrenunciabilidade conferido pelo artigo 27 da Lei Autoral (Lei 9.610/1998), atribui somente ao autor o direito moral de determinar o destino e uso de sua obra. O direito moral de autor é intrínseco à sua personalidade e este vínculo não é passível de transferência a terceiros, e com isto conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer deformação ou mutilação que possa prejudicar sua criação. Ao lado dos direitos morais sobre a criação vingam os direitos patrimoniais que permitem ao autor explorar economicamente sua obra, de modo a dela obter proveito pecuniário. O artigo 39 da Lei 9.610/1998 determina que, salvo pacto antenupcial em contrário, não se comunicam os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração. (MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. São Paulo: Grupo GEN, 2021.)

[2] MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. São Paulo: Grupo GEN, 2021.

[3] AFONSO, Otávio. Direito Autoral: Conceitos Essenciais. Barueri/SP: Editora Manole, 2009.

[4] Os bens imóveis podem ser particulares nos regimes da comunhão parcial e da participação final nos aquestos quando adquiridos antes da constância do casamento; quando recebidos a título gratuito por doação ou herança; ou quando gravados com cláusula de inalienabilidade ou incomunicabilidade (artigo 1.659, I e II, e artigo 1.674, I e II, do Código Civil). No regime da comunhão universal de bens, por sua vez, os bens imóveis podem ser particulares quando recebidos com gravame de inalienabilidade ou incomunicabilidade (artigo 1.668, I e IV, do Código Civil).

[5] Artigo 1.659. Excluem-se da comunhão: (…) VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

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