Opinião

Repassando a limpo o conteúdo do chamado PL das Fake News

Autores

  • Jéssica Guedes Santos

    é mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB) pesquisadora do Legal Grounds Institute e do Lawgorithm e advogada.

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  • Marina Giovanetti Lili Lucena

    é doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre e graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pesquisadora no Legal Grounds Institute e no grupo Empresa Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp UFJF).

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10 de julho de 2023, 6h06

Em agosto de 2021, publicamos artigo nesta ConJu tratando sobre o Projeto de Lei nº 2.630/2020 [1], na versão aprovada pelo Senado. Naquela época, o PL tinha iniciado a tramitação no Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados que foi instituído exclusivamente para tratar sobre o assunto, com a coordenação da deputada Bruna Furlan e com a relatoria do deputado Orlando Silva.

Em dezembro de 2021, o GT finalizou os seus trabalhos e entregou o substitutivo com proposta de mudança substancial ao PL 2.630/2020 [2]. Depois disso, a discussão ficou parada até março deste ano. Alguns motivos parecem ter motivado o Congresso Nacional a se debruçar com maior afinco sobre o PL 2.630 em 2023.

Pode-se mencionar, por exemplo, a ocorrência dos atos antidemocráticos em Brasília em 8 de janeiro, que suscitaram discussão sobre o papel das redes sociais na organização e divulgação dos atos. Outro possível motivo foram os violentos ataques em escolas que ocorreram neste ano no país. Como reação, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) publicou a Portaria 351 de 2023 [3], buscando prevenir que conteúdos ilícitos fossem disseminados em plataformas de redes sociais.

O Judiciário também parece tentar atuar sobre o tema da responsabilidade das plataformas online. O artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI), está em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal) [4]. Tal artigo estipula a obrigatoriedade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para que ocorra a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Já houve realização de audiência pública, mas o STF ainda não proferiu a decisão final.

Cogitou-se, em certo momento, até mesmo a elaboração de medida provisória do governo sobre a regulação das plataformas. Essa questão teve grande repercussão e também impulsionou o retorno das discussões para a Câmara dos Deputados [5]. Outra mudança de contexto que pode ter auxiliado o andamento do PL 2.630 em 2023 foi o fato da Europa já possuir duas importantes leis sobre as plataformas digitais, o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA).

Assim, em 27 de abril, foi apresentada uma nova versão do relatório incorporando os debates realizados desde 2021 e os anseios dos agentes participantes da redação do texto [6]. Contudo, após uma sucessão de eventos que envolvem a "queda de braço" entre sociedade civil, big tech, legisladores e lobby, o texto foi retirado de pauta em 2 de maio, e, até o momento, não tem previsão de retorno.

No entanto, diante da possibilidade de a votação ser retomada nos próximos meses, o objetivo desse texto é atualizar o(a) leitor(a) com a apresentação das principais novas disposições que estão presentes na última versão do PL 2.630/2020. Até mesmo porque, apesar do nome "PL das Fake News" ter se popularizado, o texto do PL atual vai muito além de desinformação, tratando sobre regulação das plataformas e mecanismos para aprimorar sua transparência e responsabilização, de modo amplo.

Inicialmente, é preciso ressaltar que o texto acrescenta as ferramentas de busca ao seu escopo, como o substitutivo de 2021 já tinha sugerido. Já estavam englobados as redes sociais e os serviços de mensageria instantânea (que, no PL originário, eram chamados de serviços de mensageria privada), assim como os provedores ofertantes de conteúdo sob demanda no que for relativo aos direitos do autor e direitos conexos. A aplicação da lei é condicionada ao número de usuários que a plataforma tem no Brasil, que deve ser superior a dez milhões.

O PL equipara essas pessoas jurídicas (redes sociais; ferramentas de busca; provedores de mensageria instantânea e provedores de aplicações ofertantes de conteúdo sob demanda) aos meios de comunicação social para fins da Lei Complementar nº 64 de 1990, ou seja, para investigação sobre uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade para benefício de candidato ou de partido político.

O PL também estabelece o que está excluído do seu escopo de aplicação. São apontados de maneira expressa o comércio eletrônico, a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz, enciclopédia online sem fins lucrativos, repositórios científicos e educativos, plataformas de software aberto, ferramentas de busca e disponibilização dos dados obtidos do poder público e plataformas de jogos e apostas online.

O PL adiciona o capítulo da responsabilidade dos provedores para indicar a responsabilidade solidária nas situações de (1) reparação dos danos por conteúdos gerados por terceiros que foram distribuídos pela publicidade da plataforma e (2) danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento das obrigações de dever de cuidado.

Essa versão do PL inova ao indicar a obrigação de análise e atenuação de riscos sistêmicos, que consiste na necessidade de identificar, analisar e avaliar os riscos advindos da concepção ou funcionamento dos serviços e dos sistemas relacionados. Nesse sentido, o PL brasileiro parece demonstrar a sua inspiração no regramento europeu, o Digital Services Act [7] (DSA), que trata sobre tais riscos em várias passagens do texto legal.

O PL estabelece cinco riscos que devem ser obrigatoriamente mapeados, quais sejam, difusão de conteúdos ilícitos; garantia à liberdade de expressão, de informação, de imprensa e de pluralismo dos meios de comunicação; violência contra a mulher, racismo, proteção da saúde pública, proteção das crianças, adolescentes e idosos; Estado Democrático de Direito e processo eleitoral; e discriminação ilegal ou abusivo pelo uso dos dados pessoais sensíveis.

Os provedores devem adotar mecanismos capazes de atenuar os riscos mapeados, sendo que, em forma de regulação a ser publicada, devem possibilitar o acesso aos dados relacionados com a identificação e mitigação dos riscos.

O PL também apresenta uma nova obrigação relacionada ao dever de cuidado, ao determinar que os provedores devem atuar de forma diligente para prevenir e mitigar práticas ilícitas que podem ser executadas nas suas plataformas relacionadas com crimes contra o Estado Democrático de Direito, os atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo, o crime de induzimento/instigação/auxílio ao suicídio ou a automutilação; crimes contra crianças e adolescentes; crime de racismo; violência contra a mulher e infração sanitária.

A ideia de dever de cuidado, aliás, estava presente na já citada Portaria n. 531 do MJSP. No preâmbulo, está presente a NOÇÃO de que o dever geral de cuidado deriva do Código Civil e da boa-fé objetiva, e corresponde ao "dever indisponível e envolve a conduta ativa das contrapartes de uma relação obrigacional para evitar que dela se originem danos aos contratantes, incluindo contratos de adesão". Assim, o artigo 2º da Portaria estabelece que há um dever geral de cuidado e segurança com relação aos conteúdos ilícitos, danosos e nocivos que incentivem ou façam apologia ou incitação a crimes no ambiente escolar.

O PL também prevê obrigações relacionadas aos riscos iminentes. Quando houver a possibilidade de configuração do risco sistêmico, na forma de regulamentação a ser divulgada posteriormente, pode ser instaurado um protocolo de segurança que permita a responsabilização civil dos provedores pelos danos produzidos por conteúdos de terceiros quando for demonstrado que tinham ciência do conteúdo.

Como outro ponto de novidade, o PL trata sobre a publicidade digital para estabelecer que, além da identificação desse tipo de conteúdo, devem ser apresentados os parâmetros utilizados para a exibição dessa publicidade para aquele usuário. Nesse sentido, a publicidade e os impulsionamentos eleitorais também devem ocorrer de forma clara e acessível aos usuários. A contratação de publicidade na rede será condicionada a apresentação de documento válido, e a comercialização desta em provedores sediados no exterior deverá ser reconhecida por sua representante no Brasil, e ser regida pela legislação nacional.

O PL também incorpora duas discussões atuais que são realizadas no meio digital: o direito do autor e a remuneração jornalística. Quanto aos direitos do autor, o PL prevê que qualquer meio de disponibilização (texto, vídeo, áudio ou imagem), fundamentam a necessidade de remuneração ao titular desse direito, pelos provedores e ofertantes de conteúdo sob demanda (musical ou audiovisual).

Apesar do PL elencar que maiores detalhamentos sobre o assunto devem estar em regulamentação futura, também aponta que a preferência para exercício desses direitos é por meio de associações de gestão coletiva de direitos autorais. Quanto ao valor que incidirá com relação ao exercício desses direitos, inclui-se a totalidade das receitas das plataformas, tanto as que foram oriundas dos conteúdos divulgados, como os ganhos com publicidade.

Do mesmo modo, o conteúdo jornalístico utilizado pelos provedores também deve ser remunerado, mas de forma a não onerar os usuários que utilizam as plataformas e compartilham esses conteúdos sem intuito econômico. Contudo, a remuneração somente será devida para pessoas jurídicas constituídas há pelo menos 24 meses, e que produza conteúdo regularmente, de forma organizada e profissional, com endereço físico e editor no Brasil. Igualmente, os provedores podem negociar os modelos, valores e prazos dos pagamentos com as empresas jornalísticas.

Sobre o poder público, o texto é apresentado com algumas mudanças em comparação com o substitutivo de 2021. As contas institucionais da administração pública e dos detentores de mandatos eletivos, ocupantes dos cargos de ministros e secretários, presidentes, vice-presidente e diretores das entidades de Administração Pública indireta, são consideradas de interesse público, e, com isso, não podem restringir a visualização das publicações. A imunidade parlamentar material é garantida aos conteúdos dos detentores de mandatos eletivos.

Para as contas vinculadas a entidades da administração pública, deve constar no portal da transparência os dados de contratação de publicidades, como valor do contrato, conteúdo da campanha e critérios de definição do público-alvo. Porém, a publicidade dos órgãos não pode ser feita em contas e sites que fomentam os riscos sistêmicos.

O novo texto também apresenta uma disposição específica sobre a proteção de crianças e adolescentes, a qual indica a necessidade de garantir o melhor interesse e assegurar nível elevado de privacidade, proteção de dados e segurança. Inclusive, os provedores devem criar mecanismos para evitar que esse grupo acesse mecanismos que não forem adequados para o seu uso.

A nova versão também apresenta novidade com relação aos trâmites judiciais de investigação dos casos relacionados com as previsões constantes no PL. As decisões judiciais de remoção imediata de conteúdo dos crimes relacionados aos riscos sistêmicos devem ser cumpridas em até 24 horas, sob pena de multa de até R$ 50 mil e R$ 1 milhão por hora de descumprimento.

O provedor deve informar imediatamente se identificar as suspeitas de crime com ameaça à vida para as autoridades competentes, assim como guardar as informações de dados de acesso (por exemplo: IP, porta lógica e dados cadastrais), por 6 meses após a remoção ou desativação do conteúdo ilícito.

Ademais, o substituto estabelece que o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) será o responsável por fazer a coordenação da regulamentação dos provedores com atribuições relacionadas ao estudo e proposta de diretrizes de liberdade, responsabilidade e transparência na internet e com instauração de processo administrativo em face de provedores que não cumprirem com a apresentação de relatórios e/ou tiverem avaliação insatisfatória, assim como analisar os relatórios de riscos sistêmicos.

Outro ponto relevante estipulado no PL é sobre moderação de conteúdo e processo de revisão. É estabelecido que a moderação de conteúdo deve respeitar o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão. Além disso, os termos de uso devem ser proporcionais e há a possibilidade de o usuário solicitar revisão da decisão feita pela plataforma.

Em linhas gerais, esses são os pontos que consideramos serem as principais novidades apresentadas pelo substitutivo. Com base nesses tópicos, é possível concluir que o novo texto é significativamente diferente do texto de 2021, até mesmo por conta da alteração do contexto fático e legislativo sobre o tema ocorrido de lá para cá. Nesse sentido, pode-se inferir que a aprovação deve ser antecedida de ampla discussão dos atores envolvidos para que seja alcançado um regulamento que tenha o mínimo de aderência entre todos. A retirada de pauta da votação em maio demonstra isso, mas resta saber se o tema voltará a discussão legislativa ainda esse ano.

 


Referências:

BRASIL. Câmara dos Deputados. Aperfeiçoamento da legislação brasileira – internet. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/aperfeicoamento-da-legislacao-brasileira-internet. Acesso em: 11.03.2023.

BRASIL. Portaria MJSP n. 351, de 12 de abril de 2023. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-mjsp-n-351-de-12-de-abril-de-2023-476702096. Acesso em: 30.06.2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 987. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5160549&numeroProcesso=1037396&classeProcesso=RE&numeroTema=987. Acesso em: 30.06.2023.

EUROPEAN UNION. Digital Services Act. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32022R2065. Acesso em: 30.06.2023.

PARECER proferido em Plenário ao Projeto de Lei n. 2.630, de 2020, e apensados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2265334. Acesso em: 26.06.2023.

 

POMPEU, Lauriberto. Lira tenta se antecipar ao governo para aprovar PL das Fake News na Câmara. 07 fev. 2023. Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/02/lira-tenta-se-antecipar-ao-governo-para-aprovar-pl-das-fake-news-na-camara.ghtml. Acesso em: 11.03.2023.

 

SANTOS, Jéssica Guedes; MARANHÃO, Juliano. Passando a limpo o conteúdo do chamado "PL de Fake News". 24 ago. 2021. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/direito-digital-passando-limpo-conteudo-chamado-pl-fake-news. Acesso em: 11.03.2023.

 


[1] SANTOS, Jéssica Guedes; MARANHÃO, Juliano. Passando a limpo o conteúdo do chamado “PL de Fake News”. 24 ago. 2021. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/direito-digital-passando-limpo-conteudo-chamado-pl-fake-news. Acesso em: 11.03.2023.

[6] PARECER proferido em Plenário ao Projeto de Lei n. 2.630, de 2020, e apensados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2265334. Acesso em: 26.06.2023.

Autores

  • é mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora do Legal Grounds Institute e do Lawgorithm e advogada.

  • é doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisadora no Legal Grounds Institute e no grupo Empresa, Desenvolvimento e Responsabilidade (EDResp, UFJF).

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