Opinião

Quem vai articular a agenda regulatória setorial das liberdades de expressão?

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  • Veruska Sayonara de Góis

    é docente e pesquisadora na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) mestre em Direito Constitucional (UFRN) advogada e autora da obra O Direito à Informação Jornalística.

7 de julho de 2023, 17h10

Discutir liberdade de expressão nos (quase) 35 anos da Constituição, e passado quase um quarto do novo século, exige clivagens. As categorias não parecem claras, e o chão metodológico não está firme. Não parece haver uma agenda regulatória posta.

Atravessados que estamos por uma governança mundial, ainda que não tão visível, essas agências de pensamento se impõem por aqui. Assim, uma abordagem possível é perguntar: através de qual sistema de liberdade de expressão o nosso ordenamento jurídico se guiaria: o norte-americano (cuja liberdade é ampla e o discurso de ódio admitido); o europeu (Corte Europeia de Direitos Humanos, cuja regulamentação é mais restritiva), ou o interamericano (Corte Interamericana de Direitos Humanos, pautado pelo formalismo na liberdade de expressão, que exclui restrição prévia e inclui responsabilização posterior)?

Um aspecto interessante é que as liberdades de que falamos ocorrem no novo espaço público da comunicação e da linguagem: as redes sociais e as plataformas, que produziram um efeito catalisador nos jogos de linguagem x limites das liberdades. A economia política das redes passa a ser imperativo no campo da reflexão e alguns "think tanks" estrangeiros mantêm um papel importante na coordenação desses debates, a partir da concentração de pesquisadores no eixo sul-sudeste e da participação em audiências no STF, bem como de parcerias com instituições nacionais e internacionais e financiamento por plataformas de tecnologia.

A regulação das redes sociais é um grande fio condutor da discussão, que envolve desenhos algorítmicos como possíveis condutores editoriais, disputa de narrativas, produção de "desinformação" (agnotologia — termo criado por Robert Proctor, como ciência da "ignorância") e censura, bem como os mecanismos privados das redes, como boards ou tribunais, selos, filtros e impulsionamento. Em qualquer cenário, ocorre a devida auto exclusão de responsabilidades. O caso todo pode ser pensado a partir da compra do Twitter por Elon Musk e sua "própria compreensão de liberdade".

Além do lobby das big techs, vigora um lobby dos proprietários dos meios tradicionais de comunicação no Brasil, segundo o qual toda e qualquer regulamentação da liberdade de expressão e comunicação seria censura. Um discurso falacioso, principalmente se levarmos em conta que a não-regulamentação é uma opção regulatória, que deixa a um clube fechado de atores (top-down) o poder de fazer suas regulações privadas — uma alternativa inclusive acolhida pelo STF, quando julgou a não exigibilidade do diploma para jornalistas (Recurso Extraordinário 511.961) e a Lei de Imprensa (ADPF 130).

O capítulo do jornalismo ganhou novos tons no Brasil, com um Executivo abertamente hostil. São atos dessa hostilidade o Decreto 10.185/2019, que extinguiu os cargos de jornalista da estrutura do Poder Executivo Federal; e o Decreto 10.288/2020, que definiu serviços públicos e as atividades essenciais na pandemia, incluindo as atividades e os serviços relacionados à imprensa. Enquanto incluía a imprensa entre as atividades essenciais, o Executivo não fornecia respostas aos pedidos de entrevistas e aos pedidos de informação via Lei de Acesso à Informação dos jornalistas.

A omissão política quanto à pandemia acabou delegando à imprensa um papel público de coleta, tratamento e divulgação das informações quanto à Covid; o Consórcio de Veículos de Imprensa (CVI). Por quase três anos, foi o Consórcio que informou sobre a pandemia e sua letalidade.

E, apesar de o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 da ONU prever o combate à violência contra jornalistas, as situações de agressão física, verbal ou simbólica aumentaram. No âmbito do Judiciário, passou-se a utilizar a judicialização predatória (uma espécie de assédio processual) contra a liberdade de informação jornalística. Isso é, magistrados passaram a processar jornalistas e meios que reportavam temas e abordagens que lhes desagradavam, como denúncias e irregularidades remuneratórias.

O Conselho Nacional de Justiça definiu a judicialização predatória como "o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão" (Recomendação 127/2022-CNJ).

A Recomendação 127/2022-CNJ aparece como um dos primeiros resultados do Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa, e dá resposta a ações articuladas de membros da magistratura para inibir jornalistas. A definição de a judicialização predatória pode contribuir para a proteção da liberdade jornalística, no sentido mais amplo de que determinadas ações contrárias à liberdade de expressão tenham natureza processual estrutural.

A contribuição do Poder Legislativo mais expressiva, até agora, teria sido o Projeto de Lei n° 2630/2020 ("Fake News"), iniciativa questionável diante de um contexto de imaturidade temática e baixo nível de entendimento quanto ao real impacto regulatório. Dadas as dimensões envolvidas, para se pensar as liberdades de comunicação e expressão, atualmente, é necessário promover um diálogo multinível de fontes, incorporando-se premissas constitucionais, decisões do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, limitações penais e leis especiais como LGPD, LAI, normas que envolvam propriedade intelectual e inteligência artificial, bem como contribuições das big techs e da sociedade civil.

Ainda assim, cobra-se do Brasil articulação setorial. Se em nível judicial, existem órgãos de articulação e estabilização nos tribunais de superposição (como o STF); o mesmo não se pode dizer no âmbito administrativo. Quais agências podem articular, conduzir e moderar as reflexões e ações?

Em nível descritivo, temos o Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa (âmbito administrativo do Judiciário); o Conselho de Comunicação Social (órgão previsto constitucionalmente, âmbito administrativo do Poder Legislativo); Cade, Anatel, ANPD, Comitê Gestor da Internet no Brasil e Ministério das Comunicações (âmbito administrativo do Poder Executivo).

Novidade do ano, ainda no âmbito de Executivo, o Ministério da Justiça anunciou o Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas. De forma resumida, no âmbito administrativo privado, citemos o

Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), como uma longeva e relevante representação.

Quais os mecanismos de procedimentos administrativos, como se organiza essa instância administrativa? No estudo "A Caminho da Era Digital", a OCDE apontou a "desordem" e recomendou a criação de uma agência reguladora independente de comunicação e radiodifusão, bem como a organização de um regime setorial unificado. Com isso, o clássico discurso oficial contra a regulamentação fica bastante esvaziado.

A agenda regulatória setorial para as liberdades de expressão, seja para pesquisa, desenvolvimento econômico ou governança multinível, mesmo que não categorizada de forma reflexiva exaustiva, é exigente. Que se promova a agenda em nível organizativo e executivo com desenho dos papeis e agências, talvez seja um primeiro passo metodológico para um debate mais crível.

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