Opinião

Apontamentos sobre os rumos do saneamento básico no Brasil

Autores

  • Leandro Mello Frota

    é advogado e professor. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais-Iuperj. Presidente da Comissão de Saneamento do IAB Nacional. Diretor de relações institucionais para a Mudança do Clima e Conselheiro Consultivo do Ipemai (Instituto de Pesquisa de Meio Ambiente e Inovação). Diretor de Mudanças Climáticas da OAB-RJ. Foi diretor da Funasa e do ICMBio.

  • Douglas Estevam

    é advogado secretário-geral da Comissão de Saneamento e Recursos Hídricos da Subseção da Barra da Tijuca (OAB-RJ) assessor do Instituto Rio Metrópole (IRM) membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

6 de julho de 2023, 20h36

Tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) a ADPF 1.055/DF, que discute a constitucionalidade dos Decretos nos 11.466 e 11.467 editados em 5 abril de 2023 pela Presidência da República, tendentes a regulamentar a Lei nº 11.445/2007 (alterada pela Lei nº 14.026/2020) — cuja reforma foi apelidada de novo Marco Legal do Saneamento Básico.

Ajuizado pelo Partido Novo, o remédio constitucional visa sustar os decretos por suposta violação a preceitos fundamentais da Constituição. Na petição inicial, alega-se que o chefe do Poder Executivo Federal teria usurpado sua competência regulamentar, além de transgredir direitos humanos tais como a moradia, a saúde e o meio ambiente.

Na arguição de descumprimento de preceito fundamental, afirma-se que o reestabelecimento da metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário — considerando as normas e os prazos da Lei nº 14.026/2020 — prejudicará o cumprimento das metas de universalização no país.

Além disso, o Partido Novo também sustenta que não há fundamento legal para a interpretação da Presidência da República sobre o limite de subdelegações contratuais, além da existência de violação ao princípio licitatório ao autorizar que prestadores não integrantes da Administração do titular do serviço executem-no sem a necessidade de prévio certame.

Sem contar os demais dispositivos impugnados, o impetrante afirma que tais atos normativos "pode[m] gerar o efeito pernicioso de gestores públicos adiarem ainda mais a adoção de providências administrativas — a fim de viabilizar a universalização dos serviços públicos — tornando futura e incerta a proteção da dignidade da pessoa humana" [1].

À vista desses fatos, o diretório nacional do partido requereu a distribuição da ação ao ministro Luiz Fux, por ter sido o relator das ADIs 6.536, 6.492, 6.583 e 6.882, que declararam a constitucionalidade do novo Marco Legal do Saneamento Básico.

Por sua vez, a Associação Brasileira de Direito de Infraestrutura (Abdinfra) ingressou com pedido de amicus curiæ asseverando que a prestação de serviços de infraestrutura de saneamento no país sofre há décadas com baixa eficiência e qualidade, em razão da ausência de investimentos e de regulação adequada.

Conforme seu requerimento de intervenção, a República Federativa do Brasil teria internacionalmente se comprometido a universalizar os serviços de saneamento básico, com melhoria na qualidade e eficiência no uso da água, além da segurança e gestão dos recursos hídricos até o ano de 2030 (ODS 6) [2].

Nesse sentido, ainda haveria alternativas para "aperfeiçoamento e complemento da política pública inaugurada pelo novo Marco Legal do Saneamento Básico, promovendo o auxílio da União aos entes federativos nas zonas de penumbra não açambarcadas pelo modelo da Lei nº 14.026/2020".

Em sequência, a Associação Brasileira das Empresas Estaduais (Aesbe) também solicitou o ingresso no feito como amicus curiæ, ora apoiando a manutenção dos decretos no ordenamento jurídico, a fim de "evitar a interrupção de relevantes investimentos no setor de saneamento, impedindo o grave prejuízo decorrente da paralisação de financiamentos e transferências de recursos da União".

A Procuradoria-Geral da República, em sua manifestação, arguiu que a via eleita seria incabível, em razão do "caráter secundário do ato normativo objeto da ação (e, consequentemente, pela ofensa meramente reflexa da Constituição Federal)". Eventualmente, afirmou ainda que as "licitações amparadas nas normas objeto da impugnação poderão ser revistas caso o Supremo Tribunal Federal conheça da ação e julgue procedente o pedido".

Já a Advocacia-Geral da União contestou, além de outras questões, que não haveria afronta ao princípio licitatório, em uma estrutura de prestação regionalizada, cuja "entidade integrante da administração indireta do Estado" seja "o prestador designado para os integrantes daquela estrutura regionalizada", desde que aprovado pelo órgão colegiado interfederativo.

Contudo, juridicamente, não está claro se a execução dos serviços de uma companhia estadual de saneamento básico em municípios pode ser considerada uma prestação direta [3], tendo em vista que as Cesbs não compõem a administração direta — nem sequer dos titulares do serviço —, o que deverá ser oportunamente esclarecido em sede judicial.

Por conseguinte, também consta nos autos uma nota técnica da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, defendendo que o objetivo dos decretos impugnados é "destravar investimentos públicos e privados para o setor de saneamento no país, permitindo que quem atua no setor tenha as ferramentas necessárias para continuar prestando os serviços".

Além desses atores processuais, também foram admitidos como amici curiæ a Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon), a Federação Nacional dos Trabalhadores em Energia, Água e Meio Ambiente (Fenatema), o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) e a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).

Assim, em meio às movimentações políticas, foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Saneamento Básico (FPSB) na Câmara dos Deputados no dia 26 abril de 2023. Presidida pelo dep. Fernando Marangoni, a entidade foi criada com o objetivo de defender e aprimorar as políticas públicas de saneamento básico em todas as esferas da federação.

No dia 3 maio de 2023, a Câmara dos Deputados aprovou um substitutivo do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 98/2023 — ao qual estão apensados outros onze PDLs sobre o mesmo tema — para sustar diversos dispositivos dos Decretos nos 11.466/2023 e 11.467/2023. Em sua justificativa, o deputado Evair Vieira de Melo afirmara que tais atos normativos "podem trazer mais prejuízos do que benefícios para o setor de saneamento, comprometendo a qualidade do serviço prestado e dificultando o alcance da universalização dos serviços para toda a população, porquanto que interferem na livre concorrência e podem levar à ineficiência e ao aumento dos custos para o consumidor".

Em razão da apreciação parlamentar do PDL 98/2023, o ministro Luiz Fux decidiu aguardar "o pronunciamento do Congresso, após o qual será designada nova data para a realização da audiência" de conciliação, que estava agendada para o dia 22 de maio de 2023. Atualmente, o projeto de decreto legislativo está sob análise da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado.

No entanto, apesar dessas discussões nacionais, é importante não perder de vista que o direito à água potável e ao saneamento básico foi reconhecido como um direito humano fundamental pela Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) na Resolução nº 64/292. Desse modo, é necessário que o novo Marco Legal do Saneamento Básico não sofra alterações tão bruscas e repentinas, a ponto de paralisar a expansão da infraestrutura básica no país.

Sem desconsiderar as críticas legítimas a que está sujeita, a Lei nº 14.026/2020, ainda assim, é o maior programa de proteção ambiental da história do Brasil, não só por sua capacidade de recuperar recursos naturais e reduzir a degradação do meio ambiente em todo o território nacional, mas principalmente por levar dignidade àqueles que mais precisam.

 


[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 1.055/DF. Ministro relator Luiz Fux. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6612752 >. Acesso em 21 mai. 2023.

[2] BRASIL. Secretaria Especial de Articulação Social. Indicadores Brasileiros para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: < https://odsbrasil.gov.br/objetivo/objetivo?n=6 >. Acesso em 21 mai. 2023.

[3] cf. ESTEVAM, Douglas; PARENTE, Ana Tereza. Prestação direta por companhias estaduais de saneamento básico. iNFRADebate, 13 mar. 2023. Disponível em: < https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-prestacao-direta-por-companhias-estaduais-de-saneamento-basico/ >. Acesso em 22 mai. 2023.

Autores

  • é advogado e professor. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais-Iuperj. Presidente da Comissão de Saneamento do IAB Nacional. Diretor de relações institucionais para a Mudança do Clima e Conselheiro Consultivo do Ipemai (Instituto de Pesquisa de Meio Ambiente e Inovação). Diretor de Mudanças Climáticas da OAB-RJ. Foi diretor da Funasa e do ICMBio.

  • é advogado, mestrando em Direito da Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado (OAB-RJ), assessor da Diretoria de Planejamento e Projetos do Instituto Rio Metrópole (IRM), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (Ujucarj).

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