Opinião

Da necessidade de uma reforma tributária constitucional

Autor

  • Paulo Caliendo

    é mestrado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutorado em Direito na área de Concentração de Direito Tributário pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) doutorado-sandwich na Ludwig-Maximilians Universität em Munique doutor em Filosofia pela PUC-RS árbitro da Lista brasileira do Sistema de Controvérsias do Mercosul professor titular e membro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGG da PUC-RS e doutor em Filosofia pelo PPGG da PUC-RS.

5 de julho de 2023, 6h09

O país precisa de uma reforma constitucional tributária e a alternativa de uma mera alteração infraconstitucional, aperfeiçoando as leis complementares do ICMS e ISS, são claramente insuficientes. Este artigo vai demonstrar detidas razões para essa conclusão.

Debate-se pela primeira vez uma proposta de reforma constitucional tributária, com efetivas chances de aprovação. Importantes juristas, renomados doutrinadores e advogados, alertam legitimamente para os riscos constitucionais e econômicos deste caminho. Uma das mais importantes questões levantadas está na escolha do modelo de alteração do sistema. Seria melhor uma reforma constitucional profunda ou uma alteração sólida dos tributos ora vigentes sobre o consumo (ICMS e ISS [1], por meio de leis complementares.

As vantagens de uma reforma meramente infraconstitucional decorrem de seu escopo mais limitado e, portanto, mais controlado e de maior possibilidade de consenso. A sua escolha seria mais simples e, portanto, traria menor contestação ou litigiosidade. Haveria mudanças mais limitadas e, assim, os custos de reforma, de transação (Coase), de transição e de adaptação seriam menores. Haveria menor onerosidade e menos setores seriam impactados.

Para fazer justiça a essa proposta deveríamos listar alguns argumentos adicionais, mas alguns dos mais importantes estão contemplados. Cremos que após detida análise de cada um destes argumentos, que não é sustentável a proposta de uma reforma tributária infraconstitucional.

Vejamos o argumento da simplicidade, de que seria mais simples alterar o sistema tributário por meio de uma lei complementar, do que tentar alterar o sistema constitucional tributário. Uma análise histórica desse argumento demonstra que ele não resiste a uma análise profunda. A falta de leis complementares fundamentais ao bom ordenamento do Federalismo Fiscal no país completa 35 anos. Poderíamos listar, dentre tantas outras ausências notórias, a falta de uma lei complementar sobre IPVA, IPTU, ITBI, contribuições de intervenção no domínio econômico, contribuições sociais, etc.

A demasiada demora na atualização da LC 87/96; a difícil atualização das bases materiais e demais aspectos do dinâmico ISS demonstram a fragilidade do argumento da simplicidade.

Vejamos alguns números. Somente sobre o ICMS existem 24 Súmulas do STJ (Súmulas nº 20, 49, 68, 71, 80, 87, 94, 95, 129,135, 152, 155, 198, 237, 334, 350, 391, 395, 431, 432, 433, 457, 509, 649 e 654). Existem três súmulas sobre o IPI (nº 411, 494 e 495). Sobre o ISS existem seis súmulas editadas (nº 138, 156, 167, 274, 424 e 524). Os números representam um gigantesco estoque de casos judiciais.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) ainda julgou sob o novo regime de julgamentos de demandas sob o rito repetitivo seis casos (REsp 1.092.206/SP, REsp 1.110.550/SP, REsp 871760/BA, REsp 960.476/SC, REsp 886.462/RS e REsp 871.760/BA).

Os casos de conflitos de competência entre o ICMS, IPI e ISS são os mais diversos, dentre os quais podemos destacar aqueles relativos ao questionamento sobre a exação devida em operações mistas, tais como as realizadas por farmácias de manipulação, gráficas e produção de embalagens, industrialização por encomenda, entre tantas outras. Note-se que apesar do imenso esforço judicial em aclarar pontos controversos dos possíveis conflitos de competência, entre ICMS e ISS, nunca houve uma atualização efetiva da Lei Complementar nº 87/96.

O argumento do respeito ao federalismo pelo uso de leis complementares não resiste a uma análise detida. As diferentes opiniões sobre as funções das leis complementares (funções dicotômicas e tricotômicas); se estas possuem função harmonizadora meramente ou unificadoras; até onde vão os limites de suas alterações e o mais importante, sobre a adequação entre os dispositivos das leis complementares e o conceito "implícito" ou expresso na Constituição geram imensa preocupação jurídica.

Entre aqueles que enxergam a presença de um conceito claramente definido no texto constitucional, a ser revelado pelo legislador infraconstitucional e aqueles que defendem que os dispositivos constitucionais trazem apenas uma moldura que delimita os limites a atuação judicial, que concretiza o texto constitucional em face da evolução jurídica, há um mar de divergências a aportar nos tribunais.

Alertava Raul Machado Horta que a lei complementar é uma "moldura legislativa" e deve ser uma "lei quadro" [2]. Dessa forma, não haveria ofensa ao princípio do federalismo a preservação profunda da repartição de competências tributárias. O ilustre professor alertava ainda sobre a Constituição de 1967, a necessidade de aperfeiçoamento da Federação, com o bom uso da legislação complementar: "a evolução demonstra que a federação experimentou um processo de mudança. A concepção clássica, dualista e centrífuga, acabou sendo substituída pela federação moderna, fundada na cooperação e na intensidade das relações intergovernamentais". A federação competitiva deveria ser combinada com uma nova ênfase na federação cooperativa, com competências harmonizadas [3].

Em uma visão radical de limitação de competência das leis complementares a edição da Lista de Serviços pela Lei Complementar nº 116/2003 ofende a autonomia municipal. Não poderia a União editar tal lei, sem afrontar o federalismo. Felizmente o STF não acatou tal tese e manteve a constitucionalidade da lista de serviços.  Ao julgar a inclusão do item 17.25 na lista anexa à Lei Complementar 116/03, incluído pela Lei Complementar 157/16, o STF decidiu na ADI 6.034/RJ pela constitucionalidade da incidência do ISS sobre a atividade de "inserção de textos, desenhos e outros materiais de propaganda e publicidade em qualquer meio, exceto em livros, jornais, periódicos e nas modalidades de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita".

Entendemos que a delimitação de competências tributárias por meio de lei complementar não ofende ao princípio do federalismo fiscal, dado que uma harmonização normativa concretiza a ideia de um federalismo cooperativo e equilibrado.

O STF (Supremo Tribunal Federal) ao tratar da estipulação de alíquotas mínimas e máximas do ISS e a sua determinação por meio de Lei Complementar entendeu que há violação da autonomia municipal. Desse modo, a EC 37/2002 não ofende a cláusula pétrea do federalismo e nem se caracterizava como medida capaz de abolir suas competências constitucionais. O mesmo raciocínio se aplica o dispositivo da LC 157/2016 que vedou a concessão de isenções, reduções de base de cálculo, entre outros.

André Ramos Tavares já alertava, corretamente, que a divisão de tarefas e competências deve ser feita pela Constituição em um Estado Federal, de tal sorte que as leis complementares devem se adequar os limites postos [4].

O argumento da eficiência ou dos custos de transição igualmente choca-se com a realidade nacional. A possibilidade de reforma infraconstitucional esbarra no histórico de conflitos de interpretação constitucional sobre os mais variados conceitos.

Tome-se, por exemplo, o julgamento da ADI 5.835 que julgou inconstitucional a alteração pelas Leis Complementares nº 157/2016 e 175/2020, do aspecto territorial do ISS do local da sede do prestador, em algumas atividades, para o local do domicílio do tomador, como já existia em múltiplas atividades.

Os contribuintes alegaram nesse caso a ofensa aos a diversos dispositivos da Constituição Federal, nomeadamente o artigo 5º, caput, XXXII, LIV; artigo 146 I e III, "a"; artigo 146, I e III, a; artigo 146-A; artigo 150 I; artigo 156 iii; art. 170, caput, IV e parágrafo único. Note-se que a profusão de princípios e regras alegadamente violadas, a partir da interpretação da norma de competência que determina a instituição de "impostos sobre serviços de qualquer natureza", demonstra a obviedade de que inexiste simplicidade ou facilidade na edição de normas gerais, muito menos na sua interpretação. A regra in claris cessat interpretatio nesse caso nunca foi tão distante. Não há clareza alguma em diversos pontos centrais dos limites das leis complementares na concretização do federalismo fiscal.

A manutenção prolongada de decisão liminar na ADI 5.835 até o seu julgamento pelo plenário virtual deixou os sujeitos jurídicos confusos sobre os efeitos da decisão. Afinal, como deveriam proceder com as suas leis municipais? Como deveriam cobrar o ISS sobre serviços bancários e financeiros que são prestados por empresas nacionais e com sedes e estabelecimentos prestadores em diversos municípios? Como calcular o ISS no caso de serviços bancários realizados de modo remoto ou com atuação de mais de um setor da mesma instituição (agência e matriz)?

A lista de indagações gerou insegurança tanto aos contribuintes, quanto aos municípios. Provou-se que nem sempre edição de leis complementares garante a concretização do federalismo fiscal, com o respeito ao princípio da segurança jurídica e da eficiência administrativa.

Assim, o uso de leis complementares em matéria tributária, ao invés de reduzir os custos de transação os ampliou como poderemos ver nos casos de serviços mistos, tais como: na tributação dos bens digitais, farmácias de manipulação, construção civil, franquias e tantos outros.

O argumento da menor onerosidade e menor afetação de setores impactados é justamente afastado pela demonstração da inviabilidade dos argumentos anteriores. O atual sistema demonstrou-se caro, complexo e inseguro. A alteração do texto constitucional permitirá redução de incertezas e determinará o sentido e alcance da repartição e equilíbrio cooperativo de competência. O principal impacto da manutenção da distinção entre mercadorias e serviços é a sua inconsistência com a economia digital do século 21. Os riscos de manter o atual sistema de bases não harmonizadas é atrasarmos nosso desenvolvimento econômico.

Desse modo, podemos afirmar que a reforma tributária infraconstitucional é um desejo que desfaz na sua apreciação detida de nossa realidade constitucional e sua interpretação histórica. Esse foi inclusive o caminho traçado pela Emenda Constitucional nº 18, de 1965 a prever uma ampla reforma tributária no país [5], sob a relatoria geral de Rubens Gomes de Souza [6]. Ao invés de prever um mero aperfeiçoamento gradual do sistema tributário nacional, adotou-se o correto caminho de alteração substancial da tributação sobre o consumo, dotando o país de um dos mais modernos sistemas tributários no mundo, em sua época.

Desse modo, a proposta de simplificar o sistema da tributação do consumo, por meio de uma simples atualização da Lei Complementar nº 87/96 e da Lei Complementar nº 116/03, se demonstraram certezas que se desmancharam em um vislumbre histórico. Um novo capítulo se avizinha, de adequação constitucional ao padrão internacional de tributação do consumo, no século 21. Benfazejos sejam os novos dispositivos constitucionais que irão atualizar nosso federalismo, mantendo a descentralização no gasto para políticas públicas e a eficiência harmonizada na arrecadação, reduzindo custos de conformidade aos contribuintes e implementando uma não-cumulatividade plena, com algumas alíquotas e suas poucas exceções e uma tributação transparente por fora.

Por todo o exposto se compreende da absoluta necessidade de uma reforma constitucional, para alteração do sistema tributário nacional, tal como propugnado sob o modelo do substitutivo da PEC 45/19.

 


[1] Sobre a inclusão do IPI na Reforma iremos tratar do assunto em outro artigo.

[2] HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 405.

[3] HORTA, Raul Machado. Tendências do federalismo brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, nº 28, p. 9-45, jan. 1970, p. 45.

[4] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva: 2006, p. 794.

[5] SOUSA, Rubens Gomes de. A Reforma Tributária no Brasil. Revista de Direito Administrativo, vol. 87, janeiro-março 1967, p. 5.

[6] A Comissão para elaboração da Emenda Constitucional nº 18/1965 foi coordenada com a presidência de Luiz Simões Lopes, tendo a participação de Gerson Augusto da Silva, do Ministério da Fazenda; o professor Sebastião Santana e Silva, do Ministério do Planejamento; o doutor Gilberto de Ulhôa Canto; o Mário Henrique Simonsen, economista dos. quadros da FGV e Relatoria Geral de Rubens Gomes de Souza. Ver in Portaria nº O GB-30, de 2'1 de janeiro de 1965, do Ministro da Fazenda.

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  • é mestrado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutorado em Direito na área de Concentração de Direito Tributário, pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), doutorado-sandwich na Ludwig-Maximilians Universität em Munique, doutor em Filosofia pela PUC-RS, árbitro da Lista brasileira do Sistema de Controvérsias do Mercosul, professor titular e membro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGG da PUC-RS e doutor em Filosofia pelo PPGG da PUC-RS.

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