Opinião

Relevância da ADPF 499 e das ADIs 5.835 e 5.862 para a reforma tributária

Autores

  • Brunno Ribeiro Lorenzoni

    é advogado com especialização em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) mestrando pela Ambra University e diretor jurídico da Câmara de Comércio Brasil-Croácia.

  • Mariana Zechin Rosauro

    é sócia titular de Mariana Zechin Advogados Associados com especialização em Direito Empresarial pela Universidade Mackenzie em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e em Direito Constitucional pela Centro Universitário Amparense (Unifia).

5 de julho de 2023, 9h19

No último dia 6 de junho, o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados para a reforma tributária apresentou relatório contendo as diretrizes para o substitutivo das PECs 45/19 e 110/19 (leia aqui).

A primeira diretriz estabelecida, conforme consta à fl. 73 do relatório, visa a adoção de uma política que adote, dentre outras coisas, um tributo geral sobre o consumo que "terá a forma do que parte da doutrina tributária denomina de 'IVA Moderno': aquele com base ampla, cobrado por fora e no destino, com não-cumulatividade plena e com poucas alíquotas e exceções, denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) (…)".

O substitutivo apresentado seguiu tal premissa, com a ideia de que o IBS seja um tributo sobre o consumo, cobrado por fora e no destino, como maneira de atender a outra diretriz estabelecida no Relatório no sentido de equiparar e/ou aproximar ao máximo o sistema fiscal nacional aos mais desenvolvidos do mundo, reduzindo-se a guerra fiscal hoje existente e permitindo o recolhimento no local do consumo, a possibilitar uma política fiscal mais igualitária.

Necessário um breve comentário para adiantar que, consoante será visto abaixo, tais premissas e diretrizes não são novas. Daí a relevância de o legislador observar o pretérito para não permitir deslizes nos futuros textos legais que serão exigidos para cumprir inclusive a transição de 50 anos para aplicação plena do princípio do destino. Principalmente, considerando que a pretensão de tributação no destino sempre se demonstrou de difícil implementação no país pelas próprias características de seu território.

Diante disso, inclusive, é que deverá o legislador se atentar, nesse momento, ao que restou assentado recentemente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 499 e das ADIs 5.835 e 5.862.

Em aludidas ações, se proclamou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos legais recentemente incluídos na legislação do Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza (ISS) em razão da violação ao princípio da segurança jurídica.

Pretendemos, dessa maneira, com o presente texto, nos debruçarmos sobre: a) os motivos que levaram o legislador a promover a alteração da Lei Complementar (LC) 116/03 e possibilitar uma tributação no destino para determinados serviços; b) o objeto da ADPF 499 e das ADIs 5.835 e 5.862; e c) os vetores que conduziram o Pleno do STF a declarar a inconstitucionalidade das citadas modificações.

Ao final, demonstraremos os pontos que devem ser fielmente observados pelo legislador na reforma tributária defendida atualmente pelo Poder Executivo.

Justificativas para as alterações da LC 116/03
Atividades tributadas no destino
A LC 157/16 foi fruto do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 386/2012, do qual se extrai que o legislador verificou a necessidade de atualizar a LC 116/03 para "diminuir a dependência dos Municípios em relação às transferências constitucionais, em especial, o Fundo de Participação dos Municípios e as transferências relativas ao ICMS e IPVA".

Além disso, o "novo" texto também pretendia resolver, "ou ao menos mitigar, a guerra fiscal entre os Entes federados", já que estabelecia a fixação de uma alíquota mínima de 2% por determinação da Emenda Constitucional nº 37/2002.

Salienta-se que a aprovação da matéria posta no PLS nº 386/2012 foi resultado de uma luta dos próprio municípios, por meio da Confederação Nacional dos Municípios, para que houvesse "uma desconcentração da arrecadação do ISS, seguindo a tendência observada nos sistemas tributários mundo afora de que o imposto seja devido no destino (onde se localiza o usuário final daquela operação) e não na origem (onde se localiza o fornecedor do bem ou serviço daquela operação)", como acentuou mais tarde o PLS nº 445/2017, que resultou na promulgação da LC 175/2020.

O PLS nº 445/2017, ademais, teve como finalidade "permitir a operacionalização das novas regras implementadas pela Lei Complementar nº 157", com a implementação de um "padrão nacional de obrigação acessória do ISSQN incidente sobre determinados serviços" e a instituição de um Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA).

A proposta do PLS nº 445/2017, como se verifica da sua justificativa, também foi fruto "de intensos debates entre os agentes envolvidos (contribuintes e municípios)" para permitir, "entre outros pontos, a responsabilidade dos municípios e do Distrito Federal quanto à higidez dos dados fornecidos por meio do sistema eletrônico e a declaração, pelo contribuinte, das informações objeto de obrigação acessória aos municípios e ao Distrito Federal, de forma padronizada, por meio do sistema".

Portanto, todo o arcabouço legal que resultou na aprovação de ambos os textos que alteraram a LC nº 166/03, foi consubstanciado em premissas que podemos verificar fácil e novamente nas diretrizes adotadas pelo Grupo de Trabalho das PECs 45/19 e 110/19 e que são defendidas pelo Poder Executivo. Isto é, pretendendo-se uma redução da guerra fiscal com um novo tributo (IBS) mais distributivo em razão da tributação do consumo no destino.

Do objeto da ADPF 499 e das ADIs 5.835 e 5.862
A ADPF 499 foi proposta pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNS). Já as ADIs 5.835 e 5862 foram ajuizadas, respectivamente, pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), em conjunto com a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg); e pelo Partido Humanista da Solidariedade (PHS).

Das ações é possível sintetizar que questionaram a constitucionalidade das alterações operadas pela LC nº 157/2016 e, posteriormente, pelas modificações acrescidas pela LC 175/2020 no ordenamento jurídico do ISS, uma vez que deslocaram o local onde se considerava prestado o serviço e o imposto devido, passando para aquele do domicílio do tomador de determinados serviços, a seguir elencados para uma boa compreensão:

— Planos de medicina de grupo ou individual e convênios para prestação de assistência médica, hospitalar, odontológica e congêneres (item 4.22 da Lista Anexa da LC 116/03);

 Outros planos de saúde que se cumpram através de serviços de terceiros contratados, credenciados, cooperados ou apenas pagos pelo operador do plano mediante indicação do beneficiário (item 4.23 da Lista Anexa da LC 116/03);

 Administração de fundos de investimento, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres, de carteira de clientes, de cheques pré-datados e congêneres (item 15.01 da Lista Anexa da LC 116/03);

 Arrendamento mercantil (leasing) de quaisquer bens, inclusive cessão de direitos e obrigações, substituição de garantia, alteração, cancelamento e registro de contrato, e demais serviços relacionados ao arrendamento mercantil (leasing) (item 15.09 da Lista Anexa da LC 116/03).

Os fundamentos das ações, conforme se extrai do relatório do voto do ministro relator Alexandre de Moraes, foram no sentido de que as modificações legislativas afrontam:

a) os princípios da capacidade colaborativa, da praticabilidade tributária, da livre iniciativa, da razoabilidade e da proporcionalidade; o núcleo da regra-matriz do ISS; e a separação de poderes;

b) a conformação constitucional do ISS, o campo normativo reservado à lei complementar, a legalidade tributária e a segurança jurídica. Além da proporcionalidade, da defesa do consumidor, da livre iniciativa e da neutralidade tributária; e

c) os princípios da anterioridade e da segurança jurídica.

Em relação às atribuições do CGOA, apontou-se invasão da competência legislativa municipal e da padronização das obrigações acessórias.

Do julgamento do mérito (inconstitucionalidade)
O Plenário Virtual do STF, por ampla maioria e nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes, no que foi acompanhado pelos ministros André Mendonça, Edson Fachin, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia (ficando vencidos os Ministros Nunes Marques e Gilmar Mendes), confirmando os efeitos da Medida Cautelar outrora deferida na Ação Direta 5.835, julgou procedentes os pedidos postos nas citadas ações para declarar "a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei Complementar 157/2016 e do artigo 14 da Lei Complementar 175 /2020, bem como, por arrastamento, dos artigos 2°, 3°, 6°, 9°, 10 e 13 da Lei Complementar 175/2020".

Reconheceu a Suprema Corte que as alterações promovidas pelo legislador complementar com a intenção de descentralizar a arrecadação do ISS, da forma como foram estabelecidas, representaram verdadeira insegurança jurídica.

Nesse sentido, o ministro Alexandre de Moraes proclamou, em substancial voto, que a alteração realizada pelos textos legais "exigiria que a nova disciplina normativa apontasse com clareza o conceito de ‘tomador de serviços’, sob pena de grave insegurança jurídica e eventual possibilidade de dupla tributação, ou mesmo inocorrência de correta incidência tributária". 

Sobre o conceito de "tomador de serviço", o acórdão concluiu existirem as seguintes inconsistências, as quais, em nosso sentir, são relevantíssimas para aprimoramento de ideias nesse momento em que se discute a reforma tributária. Senão vejamos:

"No caso dos planos de saúde, a Lei Complementar 175/2020 estabeleceu que o tomador será a pessoa física beneficiária vinculada à operadora por meio de convênio ou contrato. Foram apontadas inconsistências correlacionadas a não restar evidenciado o domicílio dessa pessoa física beneficiária, podendo ser o do cadastro do cliente, ou o domicílio civil, ou mesmo o seu domicílio fiscal.
(…)
No caso da administração de consórcios e de fundos de investimento, estabeleceu-se que o tomador será o cotista. Não teriam sido solucionadas questões atinentes à hipótese de ser o cotista domiciliado no exterior, de ter mais de um domicílio, de qual espécie de domicílio está-se a tratar (civil, fiscal ou o declarado), das modificações de domicílio em um mesmo exercício financeiro.
No que se refere à administração de cartões e ao arrendamento mercantil, dúvidas persistiriam acerca do efetivo local do domicílio do tomador, havendo espaço considerável para mais de um sujeito ativo estar legitimado."

Diante desse quadro, a Corte entendeu pela falta de uma definição clara do conceito de tomador "e a existência de diversas leis, decretos e atos normativos municipais antagônicos já vigentes ou prestes a entrar em vigência acabarão por gerar dificuldade na aplicação da Lei Complementar Federal, ampliando os conflitos de competência entre unidades federadas e gerando forte abalo no princípio constitucional da segurança jurídica, comprometendo, inclusive, a regularidade da atividade econômica, com consequente desrespeito à própria razão de existência do artigo 146 da Constituição Federal".

Significa dizer, verificou o Colegiado do STF que a falta de definição de elementos essenciais para se estabelecer o conceito de tomador do serviço impacta diretamente na segurança jurídica, impossibilitando a tributação do imposto no destino nestes moldes.

Tal ponto é acentuadíssimo na medida em que, conquanto o novo tributo proposto na reforma tributária e posto no texto substitutivo venha a criar novos conceitos distintos dos tributos hoje vigentes e incidentes sobre o consumo, deverá o legislador promover regra que não crie conflitos com outros conceitos jurídicos já previstos no ordenamento jurídico.

Vale dizer, deverá o legislador apurar se o novo texto contempla não só as diretrizes traçadas pelo GT, como, principalmente, o próprio ordenamento jurídico nacional já tão amplamente interpretado pelo Poder Judiciário. Exatamente como maneira de mitigar novos problemas que poderão, se não foram corrigidos, remeter ao pretérito. Ainda mais considerando o extenso prazo de 50 anos para uma transição total.

Por fim, sobre a instituição de um padrão nacional para as obrigações acessórias, por meio de uma estrutura com representatividade perante os Entes municipais, o Colegiado entendeu que, "a despeito da louvável padronização (…), no caso, a sua instituição relaciona-se aos serviços objeto das presentes Ações Diretas, cuja alteração do local onde o imposto será devido, não observou a Constituição Federal". Concluindo, então, pela inconstitucionalidade por arrastamento dos artigos que criaram o Comitê Gestor das Obrigações do ISS objeto dos artigos 2°, 3°, 6°, 9°, 10 e 13 da Lei Complementar 175/2020.

Conclusões
Do exposto acima, é possível concluir que o legislador, muito antes de qualquer discussão recente sobre a reforma tributária, já havia identificado a necessidade de adequação do nosso Sistema Tributário para práticas mais próximas das que os países desenvolvidos utilizam.

Isto é, de que o imposto sobre a atividade econômica de circulação de bens e serviços, ou, ainda de alguns bens até mesmo intangíveis, seja devido no destino (onde se localiza o usuário final daquela operação) e não na origem (onde se localiza o fornecedor do bem ou serviço daquela operação), porquanto percebeu-se que tal sistemática atingiria uma maior justiça fiscal.

No entanto, o legislador deverá estabelecer critérios muito claros e de fácil aplicação, e especialmente respeitando os demais conceitos jurídicos previstos na Constituição e legislação infraconstitucional, tais como o domicílio, o consumidor/tomador, o contribuinte, e, sobretudo, uma forma simplificada de apuração e recolhimento, dentre outros. Sob pena, exatamente, de sucumbir ao erro que foi cometido no pretérito quando ele pretendeu modificar o local do recolhimento do ISS da origem para o destino em diversas situações, sem sucesso.

O zelo deverá ser ainda maior quando observadas atividades em que o próprio consumo do serviço poderá se dar de forma pulverizada em diversas localidades, como se viu nos casos objeto das ações recentemente julgadas pela Suprema Corte.

Até mesmo porque, como bem salientou o STF, existem casos que o consumo sequer se dará no país. Em outros casos, o serviço poderá ser tomado em diversas localidades ao longo do mês por um consumidor. Logo, tem o legislador a obrigação de estabelecer critérios objetivos quanto à incidência e ao recolhimento do novo imposto nessas circunstâncias de modo a impossibilitar inclusive discussões que revolvam conflitos federativos.

Tudo isso de maneira a observar que eventuais insubsistências da nova norma poderão ensejar justamente uma falta de estabilidade nas relações jurídicas entre Fisco, contribuinte e consumidor e, ainda, entre os próprios entes da Federação. Vale dizer, colocando em risco o novo sistema pretendido em virtude da violação não só ao pacto federativo, mas, como visto, ao princípio da segurança jurídica.

O legislador precisará colher as lições do pretérito, observando as interpretações conferidas pelos tribunais superiores em relação aos tributos hoje incidentes sobre o consumo, com a finalidade de, sobretudo, permitir que a tão desejada reforma tributária não represente verdadeiro retrocesso. Ou seja, que tenhamos um novo modelo de Sistema Tributário que afugente o apelido de "manicômio" e permita menos conflitos entre os agentes envolvidos.

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