Opinião

Alterações do Código Florestal impactam entidades financeiras

Autor

  • Marcelo Kokke

    é pós-doutor em Direito Público-Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) especialista em Processo Constitucional procurador federal da advocacia-geral da União professor da Faculdade Dom Helder Câmara professor de pós-graduação da PUC-Minas e professor do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH).

3 de julho de 2023, 9h14

As responsabilidades e as implicações ambientais nas atividades das instituições financeiras se configuram como um dos temas mais efervescentes na seara jurídica, política, econômica e social atuais.

A seara econômica debate a prática ESG. A regulatória debate continuamente as atribuições das instituições financeiras, ao que se exemplifica a Resolução nº 4.945/21, do CMN (Conselho Monetário Nacional), a dispor sobre a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC) e sobre as ações com vistas à sua efetividade.

O mercado, igualmente, apresenta sua atuação de autorregulação em favor da proteção ecológica. É emblemática e salutar a posição da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) externada pelo protocolo com requisitos mínimos comuns para combater o desmatamento ilegal através da restrição de crédito.

O Sistema de Autorregulação Bancária editou o Normativo 26/2023, que tem por objetivo estabelecer diretrizes e procedimentos para que as Instituições Financeiras Signatárias promovam, por meio de suas operações de crédito com matadouros e frigoríficos de abate bovino, atividades nesta cadeia que sejam livres de desmatamento ilegal.

Além disso, as instituições financeiras adotam também diversas PRSACs. As instituições financeiras signatárias devem estabelecer protocolo para suas operações de crédito com os matadouros e frigoríficos bovinos de modo que se estabeleça a adoção de controles que permitam a rastreabilidade e o monitoramento de fornecedores diretos e indiretos, contemplando o protocolo do CAR (Cadastro Ambiental Rural) das propriedades de origem dos animais ou lote de animais.

A perspectiva realista e efetiva de necessário cumprimento dos compromissos ambientais para uma economia sustentável e guarnecida em face de perdas econômicas e de riscos produtivos ocasionados por mudanças climáticas e degradações ambientais foi determinantemente assimilada pelas esferas de mercado. As instituições financeiras e o mercado como um todo assimilaram como inafastável a avaliação de conformidade ambiental para fins de exercício de operações creditícias.

Na atmosfera econômico-jurídica em questão, a Lei nº 14.595, de 5 de junho de 2023, acrescentou o §9º ao reestruturado artigo 59 do Código Florestal. O dispositivo aduz que os órgãos ambientais competentes devem garantir o acesso de instituições financeiras a dados do CAR e do PRA que permitam verificar a regularidade ambiental do proprietário ou possuidor de imóvel rural. O acesso não é um adorno normativo. Trata-se de viabilização legal a permitir que as instituições financeiras afiram a regularidade de empreendimentos ou atividades relativos às propriedades rurais.

A lógica instituída se volta tanto para que instituições financeiras não procedam a operações de crédito que venham a favorecer empreendimentos ou atividades econômicas nocivos ao meio ambiente quanto para que se tenha a institucionalização de mecanismos de resguardo das instituições financeiras para que não se configurem como poluidoras ambientais indiretas, e assim também respondam pelo dano ambiental.

Afinal, se as instituições financeiras renegam a atenção necessária de aferição da situação do empreendimento ou atividade junto ao CAR, deixando de se utilizar do franqueamento previsto no artigo 59, §9º, configuram-se elas em situação de causalidade fomentadora para a ocorrência do dano. Atrai-se a aplicação do artigo 3º, IV, da Lei nº 6.938/81.

Abre-se aqui reflexo direto às matrizes de responsabilidade civil por dano ambiental. A perda ou a suspensão de benefícios fiscais assim como a perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento de crédito já são reconhecidas e legitimadas por decisões judiciais que se afinam com o paradigma socioambiental assumido pela matriz constitucional. Tem-se inclusive que a busca dessas medidas é sustentada nas ações civis públicas ajuizadas pela AGU (Advocacia-Geral da União) em representação do Ibama, ao que se destaca a linha que vem se orientando o Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

"PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO IBAMA PARA IMPEDIR DESMATAMENTO OU QUALQUER ESPÉCIE DE EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE PECUÁRIA OU FLORESTAL SOBRE ÁREA DA AMAZÔNIA LEGAL. (…)
10. O desmate com corte raro de 698,3/ha de floresta nativa, na Amazônia Legal, com ou sem autorização do IBAMA altera adversamente as características do meio ambiente. […].
12. O desmatamento incontrolado para prática de pastagem e plantio de soja em área protegida e a necessidade de se manter o equilíbrio ecológico global, impõe a concessão da liminar requerida pelo IBAMA para ordenar: (…) (c) suspensão do réu da participação em linha de financiamento oficiais de crédito, até julgamento final da ação; (d) suspensão a incentivos e benefícios fiscais. (…)" (TRF 1ª Região. AC 0002835-36.2009.4.01.3603 / MT, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL SELENE MARIA DE ALMEIDA, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.570 de 07/12/2012).

Proceder a atos de bloqueio e restrição é equivalente a cessar o combustível de degradação ambiental. Evita que financiamentos, sejam eles públicos ou privados, subsidiem as práticas de supressão ilegal de vegetação. Soma-se a isso que a restrição de financiamento ou crédito a infratores ambientais resulta em combate à concorrência desleal. Afinal, os produtos ilegais, ou cuja matriz de produção foi ilegal, alcançam preços mais baixos e levam a prejuízos de concorrência e tratamento desfavorável aos empreendedores que se conduzem de forma regular diante das normas ambientais.

Entretanto, todo o contexto social, econômico e jurídico que se manifesta depende da assimilação pelo Judiciário da necessária aplicação normativa que insira o comando do artigo 59, §9º, do Código Florestal como fator determinante de hermenêutica ambiental.

A instituição financeira que renegar o acesso ao CAR para aferir regularidade ambiental em operações de crédito, mais do que desconsiderar as diretrizes econômicas e autorregulatórias existentes, abre espaço para sua responsabilidade civil como poluidora indireta. Afinal, financiará a atividade lesiva aos bens ambientais. Igualmente, se o Poder Judiciário deixa de impor restrições ou suspensões de crédito relativas a empreendimentos ou atividades ilegais estará ele a deslegitimar o artigo 59, §9º, do Código Florestal. Estará o Judiciário a esvaziar o comando normativo.

A alteração fixada no artigo 59, §9º, ao fixar acessibilidade ao CAR, estabeleceu patamar normativo e hermenêutico. Aquele que se configura como infrator ambiental não pode ser subvencionado com apoio fiscal ou financiado com operações de crédito. E se o for, haverá a constante abertura para responsabilidade civil da instituição financeira que opere a liberação de créditos a despeito da irregularidade ambiental.

Autores

  • é pós-doutor em Direito Público-Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, especialista em Processo Constitucional, procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor da Faculdade Dom Helder Câmara, professor de Pós-graduação da PUC-MG e professor do Uni-BH.

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