Opinião

Aspectos ignorados na penhora de salário para pagamento de dívida não alimentar

Autor

  • Carlos Eduardo da Costa Silva

    é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça pós-graduado em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB).

3 de julho de 2023, 15h24

Este artigo tem por finalidade responder a uma única questão: pode o STJ (Superior Tribunal de Justiça), na condição de intérprete último do Código de Processo Civil (CPC/15), autorizar a penhora de salários do trabalhador para pagamento de dívidas não alimentares, independentemente do quanto ganha o devedor inadimplente, desde que assegurado o mínimo existencial?

Com todas as vênias aos ilustres ministros que acompanharam o não menos ilustre relator do EREsp 1874222, a resposta é não. E por muitos motivos.

O primeiro, que parece mais evidente, é que o CPC/15 (artigo 833, §2º) só permite a penhora de salários e de verbas da espécie em dois casos: dívidas alimentares e na hipótese em que o devedor recebe mais de 50 salários mínimos mensais. Prevaleceu no STJ, contudo, o entendimento de que esse último critério não condiz com a realidade brasileira, dado que pouquíssimas pessoas no país recebem remuneração em tão elevada quantia. Condizente ou não, porém, foi esse o parâmetro estabelecido pelo legislador (de forma expressa), de modo que a lei não poderia ser reformada via interpretação judicial.

Sem querer entrar na discussão sobre a tese de derrotabilidade das regras, pois tornaria o estudo mais longo do que o pretendido, o fato é que o STJ afastou a aplicação do artigo 833, §2º, última parte, do CPC/15, sem, no entanto, declarar-lhe a inconstitucionalidade. Nos autos do EREsp 1874222, aliás, nem sequer se cogitou a inconstitucionalidade da norma, embora ela tenha sido derrotada na conclusão do julgado, com a eleição de novo critério para a penhora de salário de dívida não alimentar: agora, é o juiz quem diz quanto pode e quanto não pode ser objeto de constrição.

Mais uma vez, então, insista-se: o STJ não pode negar aplicabilidade a regra de lei federal a pretexto de ajustá-la à realidade brasileira. Essa, inclusive, tem sido a postura reiterada da Corte Superior nos casos em que se questiona a desproporcionalidade de honorários de sucumbência, em causas com alto valor controvertido, dada a expressa disposição do artigo 85, §§2º e 8º, do CPC/15, normas que só autorizam o critério da equidade quando "inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo". A regra, nesse caso, importa dizer, não foi derrotada, mas observada estritamente, sob a compreensão de que o STJ não pode suplantar a escolha do legislador.

A prevalecer a conclusão do STJ, em tese, qualquer das impenhorabilidades previstas no artigo 833 do CPC/15 (e talvez até mesmo as previstas na Constituição, como a da pequena propriedade rural) pode ser relativizada. Por exemplo, se os bens inalienáveis (incluindo o bem de família), previstos no inciso I do caput do artigo 833 do CPC/15, excederem o mínimo existencial do devedor, eles podem ser penhorados.

O mesmo entendimento pode ser aplicado aos "livros, máquinas, ferramentas e utensílios para o desempenho de profissão" (inciso V), ao seguro de vida e até a quantia depositada em poupança, se o juiz entender que 40 salários mínimos ultrapassam o mínimo existencial do devedor. Em outros termos, o STJ acabou afirmando que, quando o CPC/15 diz "são impenhoráveis", no fundo pretendia mesmo era dizer: "são impenhoráveis, exceto quando o juiz entender preservado o mínimo existencial do devedor".

O entendimento do STJ também pode ser apontado como "suprailegal" (ou somente "ilegal"), dada a fixação, pelo Supremo Tribunal Federal, do status da supralegalidade de tratados de direitos humanos não aprovados pelo Congresso pelo quórum qualificado. Diz-se isso porque o artigo 10 do Anexo VII da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo país, proíbe a penhora do salário do trabalhador, "a não ser segundo as modalidades e nos limites prescritos pela legislação nacional". Nesse contexto, pois, apenas a "legislação nacional" poderia autorizar a constrição do salário em todo e qualquer caso, independentemente do quanto recebe o trabalhador.

Fica nítido, portanto, que, por razões não suficientemente claras, o STJ optou por tutelar, com a máxima prioridade, os créditos pendentes de adimplemento (sobretudo os bancários, já que os bancos são os maiores credores das dívidas das famílias brasileiras), em detrimento de direito humano expresso (salário), descumprindo os deveres da República Federativa de dar cumprimento aos tratados internacionais internalizados.

Insistindo no argumento de que apenas a lei poderia validar a conclusão do STJ, ainda cabe anotar que, nos termos do artigo 7º, X, da Constituição, o salário é protegido "na forma da lei", revelando tratar-se de norma de eficácia contida, cuja restrição de efeitos compete exclusivamente ao legislador  e não ao Judiciário.

Além disso, se autorizada a penhora do salário indiscriminadamente, tem-se que também é passível de penhora todo e qualquer direito social previsto na Constituição, entre os quais o seguro-desemprego, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o 13º salário, a participação nos lucros, o salário-família e o adicional de férias, desde que o juiz verifique a percepção de valores superiores ao efetivamente necessário para o devedor — segundo seu livre arbítrio.

Ainda apelando à necessidade de lei para autorizar o que foi autorizado pelo STJ, o CPC/15, no artigo 140, parágrafo único, é expresso ao afirmar que "o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei". Se a lei, portanto, não autoriza o magistrado a determinar a penhora de salários, recorrendo-se do critério da equidade (verificação do mínimo existencial), a conclusão da Corte Superior, também por esse motivo, parece não encontrar fundamento na legislação processual vigente.

Além disso e também com todas as vênias, a autorização da penhora de salários via decisão judicial carece de critérios claros para essa medida. Não se sabe, por exemplo, se, a partir dos descontos efetuados na remuneração, o devedor será considerado, desde logo, adimplente; se os descontos podem ser efetuados por toda a vida do devedor (quando o percentual descontado seja insuficiente para adimplir toda a dívida, mesmo após muitos anos); se há novação da dívida; se a execução fica suspensa ou se é extinta durante a realização dos descontos etc.

Também por isso, parece-nos que a discussão deveria ter mesmo sido realizada pelo Congresso, com amplo debate não só acerca da possibilidade engendrada pela jurisprudência do STJ, mas também dos critérios para tanto.

De igual modo, inexiste qualquer critério seguro para definir o que é mínimo existencial. Se os juízes decidirem aplicar o Decreto Presidencial nº 11.150/2022 (que regulamentou a lei do superendividamento), o mínimo existencial deve ser fixado em torno dos R$ 303, correspondente a 25% do salário mínimo.

Desse modo, um indivíduo que recebe R$ 3.000 por mês pode ter penhorado até R$ 2.700. Eventual decisão nesse sentido, contudo, carece de razoabilidade. No fundo, esse fator  indefinição do que é mínimo existencial  é capaz de gerar mais uma enxurrada de recursos sobre o tema, tendo em vista que o juiz decidirá todos os casos com base em juízo subjetivo (equidade), aumentando a insegurança jurídica no processo civil. Com o perdão pela insistência, mas a situação, de fato, demandava autorização legislativa.

Sob o ponto de vista econômico, a possibilidade de penhora do salário até pode melhorar a saúde financeira sobretudo das instituições de crédito, aumentando confiança dos investidores, e estimular o consumo responsável, dada a possibilidade de o trabalhador ter sua renda mensal reduzida em razão da inadimplência.

Contudo, num contexto em que 78% das famílias brasileiras já se encontram endividadas, segundo dados publicados pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), a decisão do STJ pode 1) gerar a redução do poder de compra, prejudicando sobretudo o comércio varejista, 2) aumentar a taxa de pobreza, tendo em vista que, em geral, só famílias pobres e de classe média encontram-se em situação de inadimplência sem bens para garantir o pagamento da dívida, 3) aumentar a informalidade no mercado de trabalho, para evitar descontos diretos na folha de pagamento, afetando o recolhimento de impostos e de contribuições para a seguridade social, 4) impactar a produtividade e a motivação dos trabalhadores, prejudicando, por consequência, o restabelecimento da saúde financeira do devedor e 5) encerrar a política de descontos concedidos aos consumidores inadimplentes, tendo em vista que, a partir de agora, o salário do trabalhador é, por força de decisão judicial, garantia de pagamento da dívida. A complexidade do tema é tamanha que, consoante já dito tantas vezes, apenas o legislador estava apto a sopesar todos os fatores envolvidos no tema.

Em conclusão, parece-nos que a decisão do STJ, de permitir a penhora de salários para dívidas fora das hipóteses do artigo 833, §2º, do CPC/15, contraria a legislação federal, tratado internacional de direitos humanos e a Constituição; cria várias dificuldades práticas para a observância da tese firmada, relativas ao procedimento e ao critério que autoriza a constrição de salários; e gera consequências micro e macroeconômicas indesejadas, as quais seriam melhor ponderadas no fórum próprio, no Congresso.

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  • é analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça, pós-graduado em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB).

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