Opinião

Tolerância disfarçada de magnanimidade: "Ela era como se fosse da família"

Autor

  • Ricardo Castilho

    é advogado escritor pós-doutor pela USP (Universidade de São Paulo) e UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). É diretor acadêmico da Escola Paulista de Direito.

2 de julho de 2023, 17h04

Foi Jean-Jacques Rousseau, um dos iluminados pensadores do século 18, quem disse, categoricamente: "É hipócrita uma sociedade que mantêm acorrentados homens, que são, por natureza, livres e iguais".

O filósofo suíço era um sonhador. Ele acreditava que as pessoas nascem com o selo da bondade e preocupadas com o bem-estar do próximo. Infelizmente, o mundo livre de desigualdades sociais que Rousseau queria, ficou apenas no papel. Coube a outros futuristas, como George Orwell, prever o que realmente seria o mundo de verdade: este, em que todos os dias testemunhamos incontáveis episódios de violência nas ruas, nos lares e no trabalho, gerados por desigualdade social, étnica e de gênero.

Vejam o que se passa em nosso quintal. Como justificar que o Brasil, aquele mesmo "em que se plantando tudo dá", seja hoje um dos países mais desiguais do mundo? Não é coincidência que 96% das pessoas entrevistadas em recente pesquisa Datafolha/Oxfam Brasil tenham manifestado apoio firme aos programas de transferência de renda e de assistência social do governo. E que 95% sejam favoráveis a que todas as pessoas em situação de pobreza devam ser atendidas pelo Bolsa Família.

Para confirmar o que todos já sabíamos, a cor da pele influencia, sim, na contratação pelas empresas. E aqueles que são chamados, ganham menos. Por fim, para reduzir as desigualdades os entrevistados indicam como soluções: direitos iguais entre homens e mulheres, aumento do salário mínimo, investimento público em educação e saúde, mais empregos, fim da corrupção e combate ao racismo.

Dá vergonha ver o que estão fazendo com um menino brasileiro na Espanha apenas porque, sendo preto, tem o dom e o talento para jogar futebol. Sinto nojo quando leio, todos os dias, notícias que deveriam ter ficado num passado distante: homens, mulheres, crianças e idosos vítimas da opressão colonialista que não abriu mão dos "privilégios" de ter sua própria senzala.

É estarrecedora a constatação de que apenas nos quatro primeiros meses deste ano, mais de 1.200 pessoas em todo o país foram resgatadas em condições sub-humanas do trabalho escravo. E, pasmem! Mais de 61 mil casos foram contabilizados pelo Ministério do Trabalho desde 1995. Onde estavam e o que faziam nos últimos 135 anos os responsáveis pelo cumprimento da lei que decretou o fim da escravidão no Brasil?

A persuasão pela fragilidade é o traço comum para a cooptação de gente humilde. Um dos casos de mais impacto na mídia e na opinião pública é o daquela mulher negra de 84 anos que desde os 12 trabalhou para três gerações de uma mesma família do Rio de Janeiro.

"Ela era como se fosse da família", argumentaram os patrões. Percebem o agulhão opressivo dessa frase? Ela é a síntese da hipocrisia implícita como mantra de autodefesa nesses casos: a tolerância disfarçada de magnanimidade, um pseudo-altruísmo "para inglês ver".

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