Opinião

O Poder Judiciário e a população LGBTQIA+

Autor

  • Rogerio Schietti Cruz

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

29 de janeiro de 2023, 11h48

O Dia Nacional da Visibilidade Trans, assim como ocorre em relação a outras datas ou períodos do calendário, serve não apenas para reconhecer a importância de se destinar maior atenção ao tema em âmbito nacional, mas também para convocar a população em geral a uma reflexão sobre como podemos nos tornar uma nação mais inclusiva, a partir da aceitação do outro e de suas diferenças, condição necessária, posto que insuficiente, para vivermos em harmonia e em igualdade de direitos como seres humanos.

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Uma sociedade, para ser fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, conforme dito no preâmbulo de nossa Constituição Federal, precisa efetivamente garantir que ninguém seja objeto de qualquer tipo de preconceito, injúria ou discriminação, por exercer uma orientação sexual diferente da que, em uma formação social apoiada em padrões de moralidade religiosa, foi sempre considerada "normal".

Sob essa perspectiva, não mais cabe privar as pessoas LGBTQIA+ da titularidade de direitos e da proteção jurídica estatal que é destinada a quem não se inclui nessa categoria. Discursos e ações que desumanizam a existência e a essência de pessoas que possuem orientação sexual diversa da socialmente aceita resultam na perpetuação dessas práticas segregacionistas e criminalizantes, incrementadas nos últimos anos, vale enfatizar, por discursos ideologicamente voltados à exclusão dessas pessoas.

Tem cumprido ao Judiciário, em boa parte tanto por ausência de políticas públicas satisfatórias quanto por deficiente regulamentação legal — e sempre, como é inerente à jurisdição, mediante demandas consubstanciadas em ações penais e civis — avanços no reconhecimento e asseguração de direitos até então negados à população LGBTQIA+. 

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o grande marco foi o reconhecimento da validade jurídica da união civil homoafetiva, em decisão histórica que recebeu reconhecimento da ONU como patrimônio documental da humanidade.

No Superior Tribunal de Justiça, vários julgados igualmente representaram um importante passo para a mudança do quadro histórico de violações aos direitos da população LGBTQIA+. 

Em um deles garantiu-se à primeira trans dos quadros da FAB o direito de aposentar-se no último posto da carreira militar, no quadro de praças, o que lhe fora negado em ato de discriminação por causa de sua condição pessoal.

Em outro julgado, o Tribunal da Cidadania garantiu a uma mulher trans a alteração do seu registro civil sem necessidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual, por ser esta uma livre opção de quem segue orientação diversa do seu sexo biológico e não um condicionamento ao exercício de direitos da vida civil. E também assegurou a não identificação da condição de transgênero da pessoa em registros públicos.

Mais recentemente, o STJ, em julgamento de um recurso especial, reconheceu a uma mulher trans o direito de ser beneficiada por medida protetiva de urgência, prevista na Lei Maria da Penha, ao afastar o fator meramente biológico e priorizar a autoidentificação de gênero da recorrente, vítima de violência doméstica.

Os demais tribunais e juízes brasileiros têm avançado nessa compreensão, porque percebem que os direitos humanos são uma conquista não só historicamente progressiva mas, acima de tudo, uma conquista responsavelmente irreversível.

Simone de Beauvoir cunhou uma frase que se tornou célebre: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher". Que essa construção não meramente linguística estimule o amadurecimento da sociedade brasileira, de sorte a não mais reproduzir ou tolerar qualquer tipo de transfobia a quem luta para ser reconhecida como mulher!

*artigo publicado originalmente no site da CNN Brasil

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  • é ministro do Superior Tribunal de Justiça, coordenador do Grupo de Trabalho para Otimização de Julgamentos no Tribunal do Júri (CNJ) e doutor em Direito Processual pela USP.

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