Opinião

Cosip e seu fato gerador

Autor

  • Leandro Tripodi

    é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) mestrando em Administração Pública e especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) professor de Direito Tributário do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e analista tributário da Receita Federal do Brasil.

26 de janeiro de 2023, 18h07

O estudo da Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip ou CIP), prevista no artigo 149-A da Constituição, não pode se desvencilhar do seu alentado histórico.

Em 20/3/2015, o STF publicou a Súmula Vinculante 41, in verbis: "O serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa". Trata-se, sem dúvida, de preceito amplamente conhecido; entretanto, tal enunciado não é mais que fruto da conversão, em súmula vinculante (artigo 103-A, da CF/88), da Súmula 670 da mesma Corte, cuja aprovação, em sessão plenária, deu-se em 24/09/2003.

Ainda antes, o artigo 149-A da CF/88 já dispunha: "Os municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no artigo 150, I e III". A disposição final refere-se à observância das regras concretizadoras dos princípios da legalidade e da anterioridade — de exercício e, a partir da EC 42/2003, também nonagesimal.

Tal artigo, cujo parágrafo único faculta a cobrança da contribuição "na fatura de consumo de energia elétrica" (presume-se) dos respectivos contribuintes, foi inserido pela Emenda Constitucional nº 39/ 2002, cujo objeto se limita à providência.

O Tema 44 de Repercussão Geral, intitulado "Competência legislativa para a instituição de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública", discutiu a constitucionalidade da instituição da Cosip "em face dos princípios da isonomia, progressividade, razoabilidade e proporcionalidade".

Afirma-se no "leading case" [1] do Tema: "Lei que restringe os contribuintes da Cosip aos consumidores de energia elétrica do município não ofende o princípio da isonomia, ante a impossibilidade de se identificar e tributar todos os beneficiários do serviço de iluminação pública". Reconheceu-se, então, que a Cosip está sujeita aos princípios constitucionais da isonomia ("com o devido temperamento") e capacidade contributiva. Quanto à natureza jurídica da Cosip, foi lapidar a decisão no sentido de que possui caráter sui generis: "não se confunde com um imposto, porque sua receita se destina a finalidade específica, nem com uma taxa, por não exigir a contraprestação individualizada de um serviço ao contribuinte".

O julgado utiliza o critério da destinação para estremar a Cosip dos impostos (o que é discutível pois, de acordo com a doutrina majoritária, a destinação inespecífica do produto de sua arrecadação não passa de característica acidental da espécie imposto), e evoca a abrangência uti universi, no que diz respeito ao serviço por ela custeado, a fim de estremá-la das taxas.

Cumpre analisar, ainda que perfunctoriamente, os precedentes que levaram à edição da Súmula 670. Um deles, por exemplo, baseia-se no conceito de taxa, constitucionalizado pela Emenda Constitucional 18/1965 (hoje, presente no artigo 145, II, da CF/88) e regulamentado pelo artigo 77 do CTN, para reconhecer que a iluminação pública destoa do figurino conceitual da espécie, pois é serviço de caráter geral, destinando-se a um número indeterminado de usuários — donde se conclui que a cobrança por ele se revela incompatível, em nosso sistema, com a natureza da taxa, devendo seu custeio advir da receita de impostos [2].

Em outro julgado, a Corte asseverou, na mesma linha, que a taxa de iluminação pública era tributo de cobrança "inviável, posto ter por fato gerador serviço inespecífico, não mensurável, indivisível e insuscetível de ser referido a determinado contribuinte, a ser custeado por meio do produto da arrecadação dos impostos gerais" [3].

À luz da jurisprudência do STF, o constituinte derivado criou a Cosip — um tributo não vinculado, embora destinado. Sua destinação compreende, além do custeio stricto sensu do serviço, "a expansão e aprimoramento da rede" — tese assentada no Tema 696 de Repercussão Geral ("Validade da destinação de recursos advindos da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública também ao melhoramento e à expansão da rede").

A inovação baseou-se na PEC 559/2002, a qual incorporou propostas de teor similar e resultou na citada EC 39/2002, não sem questionamentos quanto à constitucionalidade, formal e material, da norma resultante — por todas, leia-se a crítica de José Marcos Domingues de Oliveira [4]. Aliás, o legislador partiu do propósito de legitimar a cobrança pela iluminação pública por meio de taxa, cogitando apenas num segundo momento a contribuição.

Destaca-se, do Parecer do relator na Comissão Especial da Contribuição de Iluminação Pública, deputado Custódio Matos, o seguinte trecho — particularmente explicativo:

"Os municípios há muito vêm lutando com a carência de recursos públicos para custear tal serviço de inelutável necessidade para o bem estar (sic) e a segurança das suas populações. Muitos haviam criado uma taxa de iluminação pública, que reiteradamente tem sido fulminada pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional, porque não atende aos requisitos da especificidade e divisibilidade do serviço, prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição, desobedecendo aos estritos parâmetros de definição da taxa, estabelecidos no inciso II do artigo 145, cujo parágrafo 2º também proíbe que a taxa tenha base de cálculo própria de impostos.

Para superar esse óbice constitucional e jurídico é que se chegou à formulação da figura da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública, à semelhança de outras contribuições já previstas no artigo 149 da Carta Magna".

O artigo 149-A facultou aos municípios e ao DF a instituição da contribuição “na forma das respectivas leis”. Isto é, não se exige a superveniência de lei complementar federal definidora do fato gerador, base de cálculo e contribuintes da Cosip. Ainda que se entenda que a disposição não interdita eventual lei federal de cunho uniformizador em relação às legislações municipais e distrital, é certo que não há omissão inconstitucional na sua não edição, considerando que o art. 146, III, "a", remete à definição dos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes somente no que diz respeito aos impostos.

A fim de determinar a materialidade tributável da Cosip, objeto deste estudo, não é aconselhável o emprego de raciocínio reverso, partindo da respectiva base de cálculo. É que esta deve refletir, a título de concretização algébrica, o fato gerador — e não o oposto.

Aqui, duas perplexidades se apresentam: uma, a confusão entre o serviço custeado pela contribuição (isto é, a iluminação pública, de competência municipal e, por força do desenho federativo pátrio, distrital) e o respectivo fato gerador; outra, a ocorrência de pretensa fixação do critério material na própria Lei Maior, tendo em vista a autorização desta para cobrança da contribuição "na fatura de consumo de energia elétrica".

Teria, em virtude dessa disposição, o constituinte derivado remetido ao consumo de energia elétrica como hipótese de incidência da Cosip? E mais, teria consequentemente limitado seus contribuintes aos consumidores de energia elétrica (isto é, às pessoas físicas e jurídicas titulares de uma ligação elétrica ativa em imóvel residencial ou não residencial, rural ou urbano)?

Quanto à primeira das perplexidades apontadas, não resta dúvida de que o serviço não é fato gerador da Cosip; ou melhor, não pode ser fato gerador, já que do contrário confundir-se-ia aquela com taxa, ideia definitivamente repelida. Constitui, isso sim, o seu objeto, ao mesmo tempo que pressuposto de instituição — no sentido de que, inexistindo o serviço no local por culpa do poder público, a cobrança violaria a proporcionalidade. No processo de tramitação legislativa, a redação que caracterizava a materialidade nesses termos restou prejudicada.

Quanto à segunda, não nos parece a melhor leitura do permissivo constitucional, o qual apenas tratou de atender à praticabilidade tributária e à conveniência do poder público, especialmente considerando que a expressiva maioria dos municípios é dotada de recursos profundamente escassos.

Objeção a descartar diz respeito às vedações à coincidência de fato gerador e/ou base de cálculo entre espécies tributárias. As vedações constitucionais e infraconstitucionais nesse sentido (artigo 145, §2º e artigo 154, I, da CF/88; artigo 77, parágrafo único, do CTN) referem-se a taxas e aos impostos da competência residual da União. A priori, nada há que impeça, portanto, o exercício, pelo legislador municipal e distrital, de alguma criatividade legislativa no tocante ao fato gerador da Cosip, observadas as normas hierarquicamente superiores.

Ainda assim, não pode haver usurpação do figurino constitucional de outra espécie tributária, mormente a taxa, já que, como visto, o STF repudiou tal possibilidade apoiando-se em robusto alicerce doutrinário.

Logo, prontamente nota-se a impropriedade, a título de exemplo, da Lei Complementar 380/2016, do município de Barueri/SP, a qual dispõe que o fato gerador da Cosip é o "serviço de iluminação pública" (artigo 2º, caput). Ou seja, para a lei barueriense, fato gerador da Cosip é o objeto e pressuposto da contribuição, havendo evidente confusão de materialidade com destinação e finalidade do tributo.

No município de São Paulo/SP, a situação é ainda mais inquietante, haja vista que a Lei 13.479/2002 não especifica fato gerador. Ora, ou a Cosip é tributo, ou não é. Se o é (e o é), tem de observar o disposto no CTN, por força do artigo 146, III, da CF/88. Nos termos do artigo 114 do Código, fato gerador é a situação "definida em lei" como necessária e suficiente ao surgimento da obrigação principal. Há em São Paulo, portanto, tributo sem fato gerador. Pois, o critério material de incidência não se encontra descrito, ainda que de forma oblíqua (como sói ocorrer com alguns tributos), na lei instituidora. Não se pode deixar de notar a incongruência.

Do ponto de vista principiológico, para fins de mensuração da capacidade contributiva, a incidência da Cosip, amplamente considerada, não guarda correlação lógica com o consumo de energia elétrica [5]. Por essa razão, entendemos que tal materialidade é imprópria como supedâneo de cobrança.

Embora o STF tenha consagrado a referibilidade apenas indireta das contribuições especiais [6], não há razão para incúria quanto ao princípio da proporcionalidade. Além disso, a referibilidade indireta é uma espécie de referibilidade; apenas, mais abstrata do que a direta. Pode ser utilizada no sentido negativo: em havendo ausência de referibilidade, ainda que indireta, fere-se a proporcionalidade, fere-se a capacidade contributiva. Vamos a dois exemplos para fins de ilustração.

Imagine-se um imóvel urbano por natureza (um terreno) com área de 90.000 m2, propositalmente não edificado e mantido sem ligação elétrica, ocupando uma quadra com 300 m de testada em cada lado (totalizando 1.200 m lineares). Por outro lado, imagine-se uma fábrica situada num terreno quadrado de 10.000 m2 (que também ocupe uma quadra), dependente do consumo intensivo de energia elétrica para seus processos fabris.

No exemplo do terreno não edificado, poderá não ser devida a contribuição, a depender das disposições da lei municipal. Mas, o impacto para a municipalidade, refletido na demanda por iluminação pública, será três vezes maior do que o ocasionado pela fábrica, que possui testadas totalizando apenas 400 m lineares. Contudo, a fábrica poderá ter de pagar um valor considerável de Cosip (chegando, atualmente, a R$ 1.139,26 no município de São Paulo), a encarecer sua fatura de consumo de energia elétrica e repercutir, por via indireta, sobre o preço dos produtos que fabrica.

É de notar que, no primeiro caso, temos uma situação especulativa; no segundo, produtiva.

Em suma, o fato gerador da Cosip não se pode juridicamente qualificar como a prestação do serviço de iluminação pública, tampouco sendo admissível o silêncio da lei instituidora, o qual desafia a literalidade do art. 114 do CTN. O consumo de energia elétrica não é signo presuntivo que guarde relação com a iluminação pública, estando ausente a referibilidade, conquanto indireta. Por mais que não constitua fato gerador, não procede que a prestação do serviço iluminação pública não seja de todo dimensível. Embora não se deva entendê-lo como materialidade tributável, é pressuposto de instituição.

Conquanto o legislador goze de certa liberdade na definição da materialidade tributável da Cosip, entendemos que o mais condizente com os princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva é a caracterização do fato gerador como correspondendo à propriedade imobiliária, predial ou territorial, urbana ou rural, em local servido por iluminação pública. É preciso dizer que várias legislações já o fazem.

Contudo, tal propriedade é quantificável pela respectiva área, ainda que o imóvel seja servido pela rede elétrica e possua ligação regular, e não pelo consumo elétrico da unidade ou unidades consumidoras ali instaladas. O legislador deve quantificar o fato gerador utilizando grandeza capaz de realizar o princípio da capacidade contributiva e que seja consentânea com o da proporcionalidade, ao invés de desconexa com aquele. Deve haver critérios distintos, evidentemente, para imóveis urbanos e rurais, por natureza e por acessão, observada a sistemática de rateio.

 O critério quantitativo da hipótese de incidência deve estar em linha com o respectivo critério material — ao invés de dele desviar-se e afastar-se para concretizar outra materialidade. Não se pode confundir a autorização do constituinte derivado para cobrança do tributo em fatura de consumo de energia elétrica com uma suposta definição dos respectivos fato gerador e contribuintes. Esta deve ser objeto da lei instituidora da Cosip de cada ente competente. E não é cabível preservar o modelo das antigas taxas, pois já julgadas, em definitivo, inconstitucionais.

Não se deve negar a relevância do serviço de iluminação pública, tanto nas cidades quanto no campo. A disponibilidade orçamentária de um recurso "carimbado", destinado à prestação e aprimoramento do serviço, constitui importante incentivo para a municipalidade e facilita a reivindicação popular em relação à sua regularidade.

Contudo, a cobrança fundada em base de cálculo (o consumo de eletricidade) que não guarda correlação lógica ou proporcionalidade, concretizada esta pela referibilidade indireta, com o serviço objeto da contribuição, é regressivo e onera setores de atividade intensivos em energia elétrica, ao passo que premia a propriedade com baixo ou nenhum consumo por área, especialmente aquela mantida para fins especulativos, violando a capacidade contributiva.


[1] RE 573.675/SC, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 25/03/2003.

[2] AI 231.132/RS-AgR, relator ministro Carlos Velloso, j. 25/05/1999.

[3] RE 233.332/RJ, relator ministro Ilmar Galvão, j. 10/03/1999.

[4] OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. A chamada Contribuição de Iluminação Pública (Emenda Constitucional nº 39 de 2003). R. Dir. Adm., nº 233, Rio de Janeiro, jul./set. 2003, p. 295–310.

[5] OLIVEIRA, op. cit.

[6] V., entre outros, RE 573.675/SC, cit.

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