Opinião

A intempestividade do recurso: vício sanável ou insanável?

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25 de janeiro de 2023, 17h22

A tempestividade é requisito de admissibilidade intuitivo e comum a todos os recursos. Mas a intempestividade é vício sanável ou insanável? É possível convalidar a perda de prazo?

O tratamento jurídico das invalidades processuais sempre esteve atrelado a dois critérios: 1) a natureza pública ou privada do interesse protegido pela norma processual e 2) a possibilidade de sua derrogação pela vontade das partes [1].

Nesse contexto, as nulidades absolutas, que podem ser conhecidas de ofício e não admitem convalidação, sempre decorreram da violação a uma norma posta no interesse público e, por isso, cogente, inderrogável pela vontade das partes  por exemplo, as regras de competência absoluta. Já as nulidades relativas, que também podem ser conhecidas de ofício, mas podem convalidadas, sempre decorreram da violação a norma posta no interesse das partes, mas inderrogável pela vontade delas  por exemplo, a exigência de representação por advogado no procedimento comum. Por fim, a anulabilidade, também passível de convalidação e dependente de provocação das partes, sempre foi vista como consequência da violação a uma norma posta no interesse das partes, porém derrogável por convenção delas [2].

Em outras palavras, a gravidade do vício nunca foi critério relevante para a sua categorização. O que importava era a natureza pública ou privada do interesse protegido pela norma e a possibilidade de sua derrogação pela vontade das partes.

Esse sistema de invalidades, desenvolvido por Galeno Lacerda com base no CPC de 1939, manteve-se em larga medida inalterado durante a vigência do Código de 1973. O CPC de 2015, contudo, deu novos contornos ao tema. E fez isso por meio de normas dissonantes: enquanto uma dá à intempestividade tratamento mais rigoroso, outra parece flexibilizar o vício.

Código de Processo Civil de 2015 e norma mais rigorosa
O artigo 1.029, §3º, do CPC, dispõe que o "Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave". Como se vê, o legislador exclui a intempestividade do rol de vícios que podem ser desconsiderados pelos tribunais superiores. Apenas recursos tempestivos podem ser recebidos. O legislador parece criar uma presunção de gravidade contra o decurso de prazo, reputando-o absolutamente nulo.

Foi exatamente nesse sentido que a Corte Especial do STJ interpretou a norma. Para o tribunal, a intempestividade "[…] é tida pelo novo CPC como vício grave e insanável" [3]. E vinculou essa interpretação ao artigo 1.003, §6º, do CPC, segundo o qual o recorrente deverá comprovar, no ato da interposição do recurso, a ocorrência de feriado local, recesso, paralisação ou interrupção do expediente forense.

A segunda-feira de Carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, os dias que precedem a sexta-feira da paixão e, também, o dia de Corpus Christi, não são feriados forenses, previstos em lei federal. Assim, caso haja suspensão do expediente nessas datas, é necessário anexar, no momento da interposição do recurso, o ato normativo local com a respectiva previsão de suspensão da contagem do prazo.

A simples menção à ausência de expediente nas razões recursais, bem como a juntada de documentos não dotados de fé pública, não são hábeis a comprovar a tempestividade do recurso especial. Exige-se, para tanto, documento oficial ou certidão expedida pelo Tribunal de origem.

Não observada essa exigência no ato da interposição, será necessário analisar se a ausência de comprovação do feriado local (ou de outra causa da suspensão da contagem de prazo) gera prejuízo à parte recorrente. Se o recurso for tempestivo mesmo desconsiderando a suspensão do prazo não comprovado, deverá ser conhecido. Ou seja, o não-conhecimento do recurso pressupõe que a comprovação da suspensão da contagem do prazo seja imprescindível para a sua tempestividade.

Por mais que a não comprovação de suspensão da contagem do prazo possa parecer menos grave do que a perda do prazo propriamente dita, o vício, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é, em regra, insanável. O fundamento de tal entendimento é que o CPC prevê, expressamente, que a comprovação deve ocorrer no ato da interposição do recurso.

Código de Processo Civil de 2015 e norma mais flexível
Em sentido oposto ao rigorismo imposto pelo artigo 1.029, §3º, do CPC, os artigos 190 e 191 do CPC permitem às partes estabelecer convenções processuais sobre seus poderes, deveres, faculdades e ônus  inclusive para fixar calendário processual. Ou seja, é lícito às partes derrogar os prazos recursais fixados em lei tanto para reduzi-los quanto para ampliá-los, adequando-os à especificidade da causa. Nesse sentido, se as partes podem afastar a incidência de um prazo posto em seu interesse, a intempestividade do recurso seria, quando muito, mera anulabilidade  passível, portanto, de correção.

Mas quais acontecimentos justificariam a correção do vício de intempestividade? Uma exceção à insanabilidade, reconhecida pelo STJ, é nos casos em que o advogado é induzido em erro pelo sistema eletrônico de peticionamento.

Grande parte dos processos eletrônicos tramitam através do Projudi, E-proc e PJE. Os próprios sistemas comunicam os advogados habilitados dos atos processuais através de intimação. Após expedida a intimação, o patrono possui dez dias abri-la, sob pena de leitura automática  momento em que o sistema indica os termos inicial e final do prazo legal.

Não é raro, portanto, que sistemas automatizados de contagem de prazo dos Tribunais induzam advogados em erro, até mesmo aqueles mais experientes, uma vez que da abertura da intimação já são indicados o termo inicial e final do prazo recursal, considerados os feriados locais.

Nesses casos, a Corte Especial do STJ decidiu que "[…] a falha induzida por informação equivocada prestada por sistema eletrônico de tribunal deve ser levada em consideração, em homenagem aos princípios da boa-fé e da confiança, para a aferição da tempestividade do recurso". (ED em AREsp nº 1759860/PI, relatora ministra Laurita Vaz, DJe 21.3.2022). Presume-se, nesse caso, que o advogado deverá demonstrar que o sistema automatizado de fato previa como termo final a data por ele informada, e que interpôs o recurso dentro desse prazo.

A ratio aplicada pelo STJ é correta e não destoa daquilo que há anos se aplica sob a rubrica de teoria da aparência: quando o ato processual é praticado por agente público, presume-se sua validade, de modo a proteger a confiabilidade da relação jurídica. Excepcionalmente, portanto, é sim possível sanar a intempestividade do recurso.

Nulidade absoluta ou anulabilidade?
A nosso ver, a intempestividade permanece sendo, no quadro geral das invalidades, nulidade absoluta  reconhecível de ofício e, em regra, não sujeita a convalidação. Apenas excepcionalmente se pode afastá-la, como visto acima.

O fato de os artigos 190 e 191 autorizarem as partes a convencionar sobre prazos processuais não afasta essa conclusão. A mera possibilidade de derrogação do prazo legal não transforma a intempestividade em simples anulabilidade. No quadro geral do CPC de 2015, quase toda norma procedimental pode ser alterada por convenção das partes. O critério identificado por Galeno Lacerda nos anos 1950 não é mais útil à compreensão do CPC de 2015, sob pena de quase toda invalidade ser reduzida à mera anulabilidade.

Ora, a perda do prazo é, de fato, vício grave e, em regra, incorrigível. Afinal, é impossível retroagir a data de interposição do recurso. Mas há que se distinguir a intempestividade da comprovação de tempestividade. Ou seja, se o prazo é respeitado, mas a ocorrência de suspensão da contagem — essencial à sua tempestividade — não é comprovada, o vício é facilmente sanável. Basta juntar aos autos documento oficial ou certidão do tribunal de origem que comprove a suspensão.

Concordamos, pois, com Elpídio Donizetti, quando afirma que é "[…] perfeitamente possível a aplicação do artigo 932, parágrafo único, do novo CPC, segundo o qual: 'Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível'" [4]. Um dos pilares do CPC de 2015 é o princípio da primazia do julgamento de mérito, que busca a superação dos vícios processuais. O julgador deve dar a oportunidade para que as partes corrijam vícios procedimentais, possibilitando a análise do mérito e a consequente solução do conflito por meio da decisão judicial.

Defendemos, pois, que o princípio da primazia do mérito deve prevalecer sobre a exigência 1.003, §6º, do CPC, cabendo ao órgão julgador, identificada a ausência de documento oficial ou certidão do tribunal de origem, intimar o recorrente para juntá-lo (a) aos autos, sob pena de não conhecimento do recurso.

Essa interpretação não encontra óbice nos artigos 434 e 435 do CPC, que restringem a juntada de prova documental em momento posterior ao do protocolo do recurso. Tais disposições aplicam-se aos documentos que visam à comprovação de fatos controvertidos. E a suspensão da contagem de prazo, seja por feriado local, recesso, paralisação ou interrupção do expediente do Tribunal, é fato notório.

O artigo 1.003, §6º, do CPC, tampouco impede essa interpretação. É verdade que a regra exige a comprovação de feriado local no momento da interposição do recurso excepcional. Mas também é verdade que regras podem ser derrotadas por princípios. E o princípio da primazia do julgamento do mérito deve orientar a interpretação de todas as regras estabelecidas pelo legislador.


[1] LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 72

[2] Idem, ibidem, p. 72-110.

[3] AResp 957.821 – MS (2016/0196884-3). Redatora para o Acórdão ministra Nancy Andrighi. J. 20.11.2017. DJe 19.12.2017.

[4] DONIZETTI, Elpídio. Curso de direito processual civil. 25ª Edição  Barueri [SP]: Atlas, 2022. p. 1297

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