Opinião

Breves reflexões sobre o filtro da relevância no recurso especial

Autor

  • Fernando Natal Batista

    é doutorando e mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) — linha de pesquisa: Direito Processual Civil na Ordem Constitucional — assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e professor da graduação em Direito da especialização em Direito Processual Civil e do L.L.M. Processo e Recursos nos Tribunais do IDP e do IDP Online.

25 de janeiro de 2023, 13h28

Procura-se aqui neste artigo fomentar as principais discussões que deveriam ser, em tese, reguladas pelo anteprojeto de lei enviado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao Congresso para a regulação normativa da EC 125/2022.

A primeira — e talvez a mais importante — indagação reside na conceituação do que é "a questão de relevância de direito federal".

Isso porque, a "questão relevante" ou a "relevância da questão de direito federal" é um conceito jurídico fundamental ou lógico-jurídico [1], cuja elaboração, como leciona Fredie Didier Júnior [2], será determinada "pelas contingências do seu tempo: repertório teórico existente, ideologias predominantes, concepções filosóficas prevalecentes, peculiaridades dos objetos investigados", de modo que, como concluiu, são conceitos "convencionalmente construídos e, exatamente por isso, também por convenção podem ser revistos".

A construção de seu valor normativo deverá ser realizada gradativamente, a partir da observação empírica de determinada realidade, conforme assevera Fredie Didier Júnior [3]: "é um produto cultural", "nasce da observação do Direito como fato" e, portanto, "procede da experiência"; admitindo-se, sempre, o acréscimo de seu conteúdo semântico pelo operador do Direito.

Reside, sem dúvida, aqui, o protagonismo do STJ: a elaboração e composição de seu significado, o que será de grande valia para a construção de seu temário de precedentes obrigatórios.

Longe se ser discricionária, será, assim, objeto de investigação crítica do caso, podendo, assim como a repercussão geral, ser constatada a partir de perspectiva qualitativa, onde se analisa a importância do bem jurídico invocado na causa para a finalidade de unidade e sistematização do direito federal, bem como quantitativa, que estuda a profusão do alcance regional ou nacional da matéria [4].

A validade de sua construção reside na demonstração de seu caráter universal, de sua capacidade de ser replicável para os casos futuros semelhantes. A universalidade da justificativa, segundo Neil MacCormick [5], pode ser obtida do respeito do intérprete à coesão do sistema jurídico e do uso da interpretação analógica, a partir de experimentação pretérita — no caso, como temos, a repercussão geral.

Sua natureza jurídica, por fim, é de pressuposto específico de admissibilidade, porquanto a inexistência de sua demonstração terá, como consequência, o não conhecimento do recurso. Desse modo, a construção de seu significado caberá apenas ao Superior Tribunal de Justiça, respeitada, assim, a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 181 do STF).

A importância, de igual modo, também residirá na conceituação daquilo que não será "relevante", pois, com sua declaração temática, a matéria não mais poderá, se discutida em recurso especial, remetida ao Superior Tribunal de Justiça. Caberá, no ponto, a lei ordinária complementar o procedimento nesses casos, sobretudo, na questão da inadmissão dos recursos especiais pelos tribunais ordinários ante a inexistência de relevância da matéria já previamente definida pelo Superior Tribunal de Justiça.

Outro ponto de discussão, é a repetição imprecisa do termo "jurisprudência dominante" (artigo 105, § 3º, V, da CFRB/1988).

Na transcendência do recurso de revista, a legislação, diferentemente, não adotou esse termo, tendo se referido ao "desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal" (artigo 896-A, § 1º, da CLT).

Embora não seja um termo novo, visto que foi introduzido no sistema processual, como instrumento de racionalização de julgamento [6], na reforma do Código de Processo Civil de 1973, na redação dada ao artigo 557, pela Lei 9.756/1998, não há, ainda hoje, uma definição normativa precisa do que seja.

Usualmente, é conceituada pela doutrina [7] como a linha de julgamentos significativamente majoritária, em dado tribunal, proferida pelos seus órgãos fracionários. Na falta de sistematização pelo CPC e pelos regimentos internos, como adverte José Rogério Cruz e Tucc i[8] e Humberto Theodoro Júnior [9], tem sido equivocada e constantemente associada à ideia de que pode se traduzir como produto do precedente qualificado ou de enunciado de súmula.

Mesmo no direito processual comparado, essa associação terminológica entre jurisprudência e precedente é percebida, como bem demonstra, no direito italiano, Luca Passanante:

"Nel linguaggio del legislatore si è, cosi, riprodotto quel dualismo terminológico tra giurisprudenza e precedente, su cui la dottrina più attenta si era già in passato soffermata nel tentativo di tenere i due concetti nettamente distinti. Secondo quanto si è osservato poco sopra, tuttavia, non pare che la Corte intenda rispettare questo rigore: essa, infatti, ha già posto le premesse perché di giurisprudenza si possa parlare anche in presenza di una sola sentenza, ossia in presenza si quello che — specie nel linguaggio anglosassone — integra tipicamente un precedente" [10].

Essa confusão semântica, em que pese a reiterada indistinção da doutrina e até mesmo, por vezes, dos tribunais, é errada, visto que, por exemplo, o Regimento Interno do STJ [11], em seu artigo 34, XVIII, "b" e "c", deixa claro que precedente firmado em recurso especial repetitivo ou em incidente de assunção de competência, enunciado de súmula e jurisprudência dominante são categorias decisórias judiciais diferentes.

Se for assim compreendida, realizará um estreitamento injustificado ao conhecimento do recurso especial.

Espera-se, aqui, que a construção do conceito de "jurisprudência dominante" pelo STJ, na quadra da relevância, respeite a diferenciação norteadora de seu regimento interno, alinhando-se, no ponto, ao tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal [12], no tocante ao disposto igualmente no artigo 102, § 3º, da Constituição e artigo 323-A do RISTF, vinculando-a à reafirmação da jurisprudência .

Somente a interpretação que for adotada pelo Superior Tribunal de Justiça responde à questão se a "relevância" será, mais um, ao lado das súmulas defensivas, um filtro obstativo de conhecimento ou, realizando a sua integração procedimental, o instrumento faltante de integração do microssistema de demandas repetitivas, nos moldes operacionalizado, no âmbito da repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal.

Será um misto dos dois, dependendo do seu emprego.

Se for empregada a interpretação literal, teremos, sim, um filtro obstativo de conhecimento. A simplificada e taxativa fixação de hipóteses de configuração da relevância no texto constitucional reduziu — de forma inesperada — a compreensão do seja o conteúdo normativo de seus pressupostos.

O aspecto econômico está reduzido a quantificação do valor da causa; o aspecto político restrito às ações de impropriedade e às ações que possam gerar inelegibilidade; o aspecto jurídico reprimido ao confronto com a jurisprudência dominante que, para aumentar recrudescimento, poderá ser entendida com existência de "precedente vinculante" [13]. Nesse cenário interpretativo, será um filtro obstativo que, embora seja realizado após a verificação dos pressupostos objetivos de admissibilidade (preparo, tempestividade, representação, etc.) antecederá, na análise de suficiência, a aplicação das súmulas de represamento (Súmulas 07, 126, 211 e 518 do STJ; e, ainda, 282, 283 e 284 do STF, dentre outras).

Da mesma forma que, na construção do temário da irrelevância, os feitos serão barrados ainda na origem, tendo sido, assim, utilizada como filtro ou barragem de recursos ao tribunal.

Como exemplificadamente, acontece com a repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário.

A construção, pelo Superior Tribunal de Justiça, do temário da "irrelevância", para ser utilizada como filtro, e da "relevância", deverá ser realizada de forma pensada e sistêmica para que possa, de forma, alcançar a finalidade destinada ao recurso especial na formação de precedentes obrigatórios e prospectivos.

Concluindo, será um instrumento de integração do sistema objetivo de precedentes se a interpretação sistêmica for utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça, mediante a consolidação de um entendimento que implique mobilidade à intelecção do conteúdo axiológico de suas cláusulas gerais, pois, reconhecida a relevância da questão de direito federal, o STJ apreciará o mérito da controvérsia, seguindo o rito do recurso repetitivo, fixando a tese de direito aplicável na hipótese individual e nos casos futuros. Ou seja, firmado pelo STJ o entendimento qualitativo pela ocorrência ou inocorrência da demonstração da questão da relevância, a aplicação da tese obrigatória passa a ser imposta aos Tribunais de Revisão e aos juízes de primeiro grau de jurisdição.

Reforça-se a ideia de que não é possível olvidar que a racionalização do sistema jurídico processual atualmente vigente é imprescindível para o alcance e consolidação da ordem jurídica justa, pois o STJ, enquanto Corte de Vértice, sobretudo no exercício da jurisdição constitucional, deve dar unidade ao direito federal, a partir de casos que sirvam como precedentes aptos a orientarem os juízes com observância vinculante, nos moldes que aqui se conceituou e defendeu, de modo que os julgadores não repitam, desnecessariamente, por inúmeras vezes, a mesma — ou pior: divergente — solução jurídica a milhares de demandas idênticas, a fim de se evitar, por óbvio, a indesejável dispersão do sistema jurídico.

 


[1] "O conceito jurídico fundamental (lógico-jurídico, jurídico próprio ou categorial) é aquele construído pela Filosofia do Direito (é uma das tarefas da Epistemologia Jurídica), com a pretensão de auxiliar a compreensão do fenômeno jurídico onde e quando ele ocorra. (…) São conceitos formais, lógicos, que nada adiantam sobre o conteúdo concreto das normas jurídicas. Porque formais, são invariáveis; variável será o conteúdo normativo a ser extraído dos enunciados normativos do direito positivo" (DIDIER JR, Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022, p. 56-57).

[2] Idem, p. 60.

[3] Idem, p. 59.

[4] No mesmo sentido do que ocorre na repercussão geral: "A transcendência da controvérsia constitucional levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal pode ser caracterizada tanto em uma perspectiva qualitativa, como quantitativa. Na primeira, interesses para a individualização da transcendência o importe da questão de debatida para a sistematização e desenvolvimento do direito; na segunda, o número de pessoas susceptíveis de alcance, atual ou futuro, pela decisão daquela questão pelo Supremo e, bem assim, a natureza do direito posto em causa" (MARINONI, Luiz Guilherme. Recurso extraordinário e recurso especial: do jus litigatoris ao jus constitutionis. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 220).

[5] "(…) podemos deduzir a importância atribuída à coerência de valores no funcionamento de um sistema jurídico. O mesmo vale para o uso bastante interrelacionado de argumentos por analogia. Os dois juntos ajudam-nos a formar alguma compreensão dos limites do que é considerado legítimo na criação de lei por parte do judiciário" (MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 252).

[6] Súmula 568 do STJ: O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema.

[7] Rodolfo de Camargo Mancuso preceitua que a jurisprudência dominante pode ser compreendida como aquela que "se apresenta como o produto otimizado da atividade final dos Tribunais, configurando-se quando uma coleção de acórdãos acerca de uma dada questão jurídica está alinhada sob uma mesmas vertente exegética, cuja reiteração pode agregar à jurisprudência os qualificativos dominante (v.g. art. 926, caput, do novo CPC) e pacífica (Lei 10.522/2002, inc. II, do art. 19, redação da Lei 12.844/2013)" (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema Brasileiro de Precedentes: natureza, eficácia, operacionalidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 119).

[8] "É de se observar-se que, sob o ponto de vista técnico, reina, na prática do direito inequívoca imprecisão daquilo que se concebe por jurisprudência, precedente judicial e súmula (e suas respectivas classificações dogmáticas)" (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como Fonte do Direito. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2021, p. 158).

[9] "Aqui cabe, de plano, apresentar uma distinção interessante: os termos precedente e jurisprudência são normalmente usados como sinônimos, na legislação, nos próprios tribunais e até na doutrina, mas parte da doutrina anota uma distinção entre ambos: precedente envolve uma decisão relativa a um caso concreto, enquanto jurisprudência se refere a uma pluralidade de decisões relativas a um conjunto de casos concretos" (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Precedentes no Processo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2021, p. 9).

[10] PASSANANTE, Luca. Il precedente impossible. Torino: Giappichelli Editore, 2018, p. 39. Em livre tradução: "Assim, na linguagem do legislador, reproduziu-se aquele dualismo terminológico entre jurisprudência e precedente, sobre o qual a doutrina mais atenta já havia no passado se debruçado na tentativa de manter os dois conceitos claramente distintos. De acordo com o que foi observado acima, no entanto, não parece que a Corte pretenda respeitar esse rigor: de fato, já lançou as bases para que se possa falar de jurisprudência mesmo na presença de uma única sentença, ou seja, em a presença do que — especialmente na língua anglo-saxônica — tipicamente integra um precedente".

[11] RISTJ: "Art. 34. São atribuições do relator: (…) XVIII – distribuídos os autos: (…) b) negar provimento ao recurso ou pedido que for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema; c) dar provimento ao recurso se o acórdão recorrido for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema."

[12] STF: "Reafirma-se a jurisprudência dominante desta Corte nos termos da seguinte tese de repercussão geral: o Ministério Público de Contas não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança em face de acórdão do Tribunal de Contas perante o qual atua. 3. Repercussão geral da matéria reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC. Jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL reafirmada, nos termos do art. 323-A do Regimento Interno" (RE 1178617 RG, Tema 1044, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 25/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-093 DIVULG 06-05-2019 PUBLIC 07-05-2019).

[13] Nesse sentido: "E, sempre na Itália, o art. 360-bis, n. 1, do CPC, fruto da reforma de 2009, atribui à 'jurisprudência' da Suprema Corte uma função de 'barramento' dos recursos de cassação, dispondo que o recurso é declarado inadmissível quando a decisão impugnada resolveu questões de direito de modo conforme à jurisprudência da Cassação e a irresignação proposta não oferece elementos para reformar essa jurisprudência. E ainda em tal caso, frequentemente ocorre que a Suprema Corte se, durante o exame preliminar do recurso de cassação, considerar incidir o art. 360-bis, n. 1, do CPC, decida no procedimento acelerado e simplificado, previsto no art. 380-bis, do CPC, nos casos de 'manifesta inadmissibilidade' do recurso. Estamos, portanto, na presença de um ‘filtro de barreira’ da impugnação em último grau — frequentemente usado para 'cortar caminho' substancialmente in limine sobre as questões (também e, sobretudo, 'repetitivas'), sobre as quais a Suprema Corte já formou uma orientação (mais ou menos) consolidada — que é semelhante (ainda que menos severa e com operabilidade mais restrita) àquela prevista nos arts. 332, 927 e 932 IV do novo CPC brasileiro), em favor das decisões fixadas em matéria de 'demandas repetitivas' ou 'recursos extraordinário e especial repetitivos')" (MARINELLI, Marino. Os precedentes judiciais entre "obrigatoriedade" e "poder persuasivo": notas comparativas e reflexões sobre o novo CPC brasileiro e sua "súmula vinculante". Civil Procedure Review, v. 12, nº 3: set./dez. 2021, p. 138).

Autores

  • é assessor de ministro do STJ, professor de Direito Processual Civil da graduação e da pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e mestre em Direito.

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