Opinião

Da independência das funções judiciária e legislativa

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019-2021) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

22 de janeiro de 2023, 7h14

Recentes polêmicas sobre uma suposta ampliação dos dispositivos que excluem, da tipificação de crime, a prática de aborto, na hipótese de feto anencéfalo (STF; ADPF nº 54, relator ministro MARCO AURÉLIO, 12/4/2012) e de abortamento procedido até o terceiro mês de gestação (STF; 1ª Turma, HC nº 124.306, relator ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, 29/11/2016), surgidas através de interpretação, por parte do Supremo Tribunal Federal, quer por meio de Ação de Preceito Cominatório com efeitos erga omnes e vinculante, quer na oportunidade de julgamento de caso concreto desprovido de tais efeitos, têm conduzido a uma grande discussão sobre a eventual invasão de competência legislativa por parte do órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Em nossa obra intitulada Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica (9ª edição, Ed. Manole, Rio de Janeiro, 2015), temos defendido (enfaticamente) a tese segundo a qual os juízes continuam "escravos da lei" e, em particular, de sua correta e técnica interpretação, criticando aqueles julgadores que, através do que convencionalmente é denominado por Direito Alternativo, se arvoram no direito de legislar, criando uma nova categoria, não reconhecida pela Constituição Federal, que ousamos, naquela oportunidade, intitular de "Deputado Judiciário".

Não é o caso, todavia, de ambas as corretas (e elogiáveis) decisões interpretativas, conduzidas pela Suprema Corte, nos casos anteriormente mencionados, bem como, de idêntica hipótese, perpetrada pelo Superior Tribunal de Justiça, no que concerne à descriminalização do crime de desacato (STJ, 5ª Turma, REsp nº 1.640.084/SP, relator ministro RIBEIRO DANTAS, 15/12/2016).

Nunca é demais lembrar que o papel do Judiciário e, em particular, de seu órgão de cúpula, é, acima de tudo, proteger os anseios do povo diretamente consagrados por meio do Poder Constituinte e registrados na Carta Constitucional, ainda que, eventualmente, em efetiva contraposição crítica à suposta vontade popular (momentânea), indiretamente representada pelo Poder Constituído Legislativo.

Assim é que (sempre) apresenta-se tecnicamente possível  e constitucionalmente autorizado ao Poder Judiciário não propriamente criar leis excludentes de crimes previstos no Código Penal, mas, através de sua atuação rigorosamente nos estritos limites da Constituição, conceber o efeito prático destas mesmas excludentes penais por intermédio do reconhecimento (efeito concreto inter partes) ou da declaração (efeito abstrato erga omnes) de inconstitucionalidade (parcial, como no caso do aborto, ou total, como na hipótese do delito de desacato) das eventuais tipificações penais procedidas pelo Legislativo, no contexto de sua correspondente competência legiferante.

Se assim não fosse, teríamos, por exemplo, a absurda situação de, na eventual ausência de expressa previsão legal quanto à hipótese de abortamento por risco de morte da gestante (artigo 128, I, do Código Penal), não se poder reconhecer o direito constitucionalmente assegurado à vida da mesma, pelo órgão judiciário, criando, desta feita (e por consequência lógica), o efeito prático de uma excludente penal, eventualmente não prevista (e concebida) pelo Legislativo.

Também, nessa mesma linha de raciocínio, restaria impossível ao Judiciário reconhecer ou declarar a evidente impossibilidade do Estado de punir (retirando a eficácia jurídica da norma legislada e, por consequência, o espectro punitivo estatal) seus cidadãos em situações limítrofes em que, ocorresse, por completo absurdo, uma eventual tipificação penal que simplesmente proibisse os seres humanos de respirar.

Destarte, não se pode jamais confundir (como aparentemente desejam os menos avisados) a competência de legislar (inerente ao Poder Legislativo) com a competência de retirar a eficácia jurídica das leis que, contaminadas por vício material ou formal, não convirjam com os imperativos constitucionais, sejam os mesmos normativos ou principiológicos.

Ademais, nem se diga ser, política ou juridicamente, possível ao Judiciário se subtrair a esta função precípua, considerando que, uma vez provocado — por intermédio de ação típica ou de recurso de efeitos concretos ou, ainda, por meio de ação atípica originária de efeitos abstratos —, incumbe ao mesmo, no exclusivo âmbito de sua privativa competência constitucional, obrigatoriamente se pronunciar, ainda que necessariamente em decisão (tecnicamente) fundamentada (artigo 93, IX, da CF), no sentido de retirar (ou não) a validade material ou fática (eficácia jurídica) das leis infraconstitucionais concebidas pelo Poder Legislativo e vigentes no ordenamento normativo.

Críticas à parte, não há, pois, como deixar de reconhecer ser esta uma inconteste atribuição constitucional delegada (exclusivamente) ao Judiciário e, em particular, ao Supremo Tribunal Federal. E, neste sentido, sequer é possível tecer críticas a um suposto (e exagerado) ativismo judiciário, considerando, sobretudo, que a jurisdição, por imperativo legal, é sempre inerte e somente é possível a realização da mesma mediante a devida provocação, nos exatos termos da legislação vigente, que resta determinada impositivamente, em última análise, pelo próprio Poder Legislativo.

Autores

  • é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

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