Opinião

Da verdade e da mentira no combate jurídico às fake news

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22 de janeiro de 2023, 6h16

Logo após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos aprofundaram o debate sobre as grandes questões presentes na luta contra o nazifascismo, dentre elas, a segregação racial, até então considerada pela Suprema Corte em conformidade com a Constituição dos EUA, como por ela decidido em 1896 ao julgar o caso Plessy v. Ferguson [1].

Uma relevante mudança advinda deste debate foi a alteração de entendimento da Suprema Corte sobre o tema, a qual, em 1954, já sob a chefia do ex-governador da Califórnia pelo Partido Republicano, Earl Warren, declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas, em decisão unânime proferida no caso "Brown v. Board of Education of Topeka" [2].

Um aspecto importante dessa decisão foi o de invalidar as respectivas leis estaduais segregacionistas, o que tocou em pontos sensíveis da história dos EUA, relativamente aos contrapontos entre as competências das unidades federadas e da União, sempre acirrados pela memória da mortífera guerra civil que, no século anterior, basicamente opôs os estados do sul contra os do norte.

Essa mudança de entendimento da Suprema Corte foi um dos pilares do movimento contra a discriminação racial que se generalizou no país, mobilizando parte expressiva da população contra ou a favor das diversas leis estaduais de segregação racial, que traziam multas e prisão para quem as desobedecessem. Note-se, ainda, que alguns estados inicialmente se recusaram a cumprir essa decisão do Judiciário federal, ocasionando uma tensão que se avolumou nos anos subsequentes.

Nesse contexto, em 1960, o jornal The New York Times publicou um anúncio de página inteira [3] em defesa do pastor Martin Luther King Jr., no qual os subscritores, entre eles, clérigos, líderes de movimentos civis e renomados artistas, tais como Marlon Brando, Nat King Cole e Sidney Poitier, defendiam o líder religioso e criticavam condutas estaduais segregacionistas, inclusive as da polícia da cidade de Montgomery, no estado do Alabama.

O anúncio, porém, continha várias imprecisões, afirmando que Martin Luther King tinha sido preso sete vezes, quando em verdade foram quatro; que (the Southern violators) explodiram a sua casa, quase matando a sua esposa e a sua filha, o que de fato acontecera, mas sem ligação comprovada com a polícia; que os policiais tinham cercado o campus da Universidade de Alabama, o que não tinha acontecido, apenas forte presença policial. Além disso, alguns dos subscritores religiosos posteriormente negaram ter assinado ou apoiado a publicação.

Em reação, o chefe de segurança pública da cidade de Montgomery, L.B. Sullivan, embora não citado no anúncio, ingressou com uma ação no foro local, alegando que tinha sido difamado por escrito (libel) pelos autores do documento e pelo veículo de imprensa, no que foi vitorioso, com o Tribunal de Justiça estadual confirmando uma decorrente indenização no valor de US$ 500 mil. Os condenados, então, recorreram à Suprema Corte dos EUA, requerendo que lhes fosse concedida a proteção prevista na Primeira Emenda à Constituição federal [4].

O apelo, em princípio, apresentava dificuldades para conhecimento e provimento. Tratava-se de condenação decidida em primeira instância a respeito de responsabilidade civil (tort), matéria esta, por excelência, de competência das unidades federadas, com grande parte de seus fundamentos desenvolvidos pelo common law. Dessa forma, forte o argumento de que pouco ou nenhum espaço restaria para se decidir a aplicação da Constituição federal em conflito entre particulares, então disciplinado por direito local, defendendo-se preservar as competências legislativa e judiciária estaduais.

No entanto, a Suprema Corte, ao julgar o caso New York Times Company v. Sullivan [5], em 1964, mais uma vez surpreendeu os EUA. Ela decidiu em favor dos recorrentes e estabeleceu que, tratando-se de oficiais de governo ou de candidatos a esses postos, eles deveriam, além de atender aos elementos clássicos da ação de difamação, também comprovar a falsidade das afirmações questionadas. Principalmente, eles deveriam provar que o réu atuou com "actual malice", significando a expressão, conforme o estabelecido no próprio julgado, o réu saber que as afirmações eram falsas ou tê-las afirmado com temerária desconsideração sobre se seriam ou não falsas ( …that is, with knowledge that it was false or with reckless disregard of whether it was false or not).

A decisão, a partir da conformação dos institutos de direito privado aos direitos fundamentais, reiterou que a disciplina da expressão humana toca interesses sociais relevantes que devem ser protegidos para se atingir objetivos vitais, tais como a preservação da liberdade, do debate público, da democracia e da busca pela verdade.

No mesmo sentido, a decisão afirmou não ser a pessoa passível de proteção quando ela mente ou se expressa com grave negligência a respeito do que está afirmando, caso em que o discurso (speech) não será protegido, podendo inclusive ser ela responsabilizada se sua fala violar direitos, o que pode ser requerido por quem tenha legitimidade para defendê-los. Com esses parâmetros, mostrou-se evidente a decisão ter como um de seus pressupostos centrais a capacidade de se diferenciar o verdadeiro do falso.

Nos Estados Unidos, essa questão ainda é mais importante quanto se trata de jornalismo (press), pois a informação jornalística classificada como reportagem (news) implica discurso qualificado, que, para ser protegido como tal, deve ser produzido mediante a adoção dos cânones profissionais pertinentes, tais como a verificação de fontes e dos fatos afirmados [6], cujo abandono negligente poderá implicar responsabilização [7].

Assim, se uma informação escrita sem conexão com a atividade de imprensa é publicada para parecer como reportagem (news), mas, nesse formato, apresenta informações falsas (fake news), mostra-se muito difícil que ela receba qualquer proteção com base no direito à liberdade de expressão. No mesmo passo, se alguém redige algo falso com o intuito de parecer uma notícia, ou seja, deliberadamente escolhendo a estrutura e forma de redação de uma reportagem, poderá ter dificuldades para comprovar que não procedeu de modo voluntário, diante desses claros indícios.

Essas balizas do Direito dos EUA podem colaborar com as atuais discussões a respeito de dificuldades sobre se utilizar as noções de verdade e de mentira para se aplicar a lei, ou sobre o direito de pessoas públicas e privadas atuarem para impedir violações e danos causados por discursos não protegidos. Mesmo porque seria estranho um ambiente onde informações falsas poderiam permanecer publicadas causando danos reiterados sob a alegação de que falar mentiras não é ilícito.

Por fim, oportuno lembrar que, na abordagem do Direito dos EUA, a regulação da atividade econômica empresarial é matéria afeita à administração, pelo menos desde o século XIX, com a criação da Interstate Commerce Commission em 1887. Diante da proliferação de discursos falsos escritos como reportagens e do crescente recurso ao Poder Judiciário para obstá-los, caberá ao Congresso decidir se ações administrativas deverão ser ampliadas com o objetivo de regular sua disseminação por redes empresariais, como cada vez mais ocorre na Internet.

 


[1] Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896).

[2] Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954).

[4] U.S. Constitution, First Amendment: "Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances".

[5] New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964).

[6] HARCUP, Tony. Journalism: principles and practice. London: SAGE Publications Ltd, 2009.

[7] ZELEZNY, John D. Communications law: liberties, restraints, and the modern media. Belmont: Thomson, 2006.

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