Opinião

Modalidades de trabalho situadas em zona cinzenta: subordinação ou autonomia?

Autor

  • Camila Vertes Campos

    é advogada júnior formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro atualmente advogada na CMW Advogados com experiência em Contencioso e Consultivo Tributário no Chediak Advogados e Societário no Ulhoa Canto.

22 de janeiro de 2023, 17h17

Atualmente o Ministério Público do Trabalho ambiciona o reconhecimento de vínculo empregatício dos motoristas entregadores que trabalham por meio de plataformas digitais. Em apertada síntese, o MPT argumenta que os condutores profissionais trabalham de forma pessoal, habitual, onerosa e subordinada em favor das plataformas, razão pela qual postula o reconhecimento de vínculo empregatício, além do cumprimento de diversas normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CTL).

Neste ínterím, as plataformas digitais defendem-se, em suma, sustentando que não contratam ou mesmo conduzem o trabalho dos motoristas que realizam entregas para os clientes, os quais contratam diretamente e pessoalmente o frete. Argumentam ainda que realizam apenas serviço de intermediação de fretes por meio de plataforma tecnológica, ausentes os requisitos que configuram a relação empregatícia.

Ora, vejamos bem, as bases da chamada gig economy, fenômeno recente no qual o mercado se move em direção aos trabalhos informais, supõem um conceito que não é novo. A "economia dos bicos" sempre existiu paralelamente à economia formal, destacando-se no trabalho dos músicos, mas também de vários outros profissionais não ligados a nenhum contratante específico, os conhecidos freelancers, tais como jornalistas, fotógrafos, escritores e advogados.

Esse tipo de vinculação contratual, breve e cada vez mais impessoal, parece estar substituindo o mercado formal de trabalho em diversos setores. O declínio do emprego como principal forma de exploração capitalista do trabalho humano já vinha sendo observada por estudiosos desde fins do século XX.

Não obstante a forma de organização do trabalho já existisse, o paradigma do uber introduziu um fator importante, este, sim, inédito, e que fez emergir a problemática e a colocou sob os holofotes: o uso intensivo da tecnologia. O que iniciou num nicho específico, se espraiou em diversas atividades, hoje em dia, inclusive na atividade jurídica. A inovação mais visível é a utilização de um aplicativo de computador ou celular, que introduziu um intermediário até então inexistente. E, assim, esse novo modelo passa a prosperar num mercado antes dominado pela informalidade ou, quando formal, bastante limitado.

No entanto, a disseminação da gig economy para além das perplexidades no âmbito da ciência do direito, já suscitou ambiguidades no campo social, político e econômico, contextos em que o próprio modelo de trabalho formal tem sido questionado. A solidez de conceitos, antes tidos como certezas por mercados e governos, passou a ser mais fluida e espontânea.

Por conseguinte, as movimentações identificadas muitas vezes como supressão de direitos, retrocesso ou dumping social, enfim, diversas expressões que podem ser resumidas como precarização do trabalho, parecem muito mais ser o resultado de uma evolução do fato social, que acaba demandando soluções jurídicas para os conflitos daí derivados.

É, portanto, bastante delicado lidar com a questão sob a premissa de resistências, não raro, por parte dos próprios trabalhadores. O equilíbrio entre a proteção do trabalho imposta pelo Estado e as variáveis sociais, políticas e econômicas não pode ser negligenciado, sob pena de o direito se desunir da realidade.

Por se tratar de um fato social recente, ainda não existe uma regulamentação clara sobre essa modalidade de trabalho, sendo tarefa da jurisprudência buscar a adequação do fato às normas existentes para dirimir o conflito que se apresenta. No entanto, cumpre frisar que, para o reconhecimento de uma relação de emprego, é necessário perquirir acerca da existência das elementares formadoras dessa tipologia contratual, consagradas nos artigos 2º e 3º da CLT; inexistindo apenas uma delas, já não cabe ao julgador declarar a existência do vínculo empregatício, in verbis:

"Artigo 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

Artigo 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário".

Diante disso, no intuito de responder a indagação principal do presente artigo podemos dizer que é possível identificar no tipo de trabalho ora abordado traços tanto de subordinação quanto de autonomia, a depender da realidade fática e da interpretação do julgador, quando a relação se torna litigiosa. Mas o que parece evidente é que, diante de uma zona cinzenta, ao elaborar uma nova regulamentação, o legislador [1] optou pelo não-vínculo empregatício, isto é, evitou conformar as situações à tipicidade do padrão legal de contrato de trabalho.

Em conclusão, o principal fator, que no meu entendimento afasta a subordinação, é a possibilidade de recusa na prestação do serviço. Antes um dos traços distintivos entre o autônomo e o subordinado era a possibilidade de recusar o serviço oferecido. Agora, houve uma evolução, pois, além disso, se não interessar ao trabalhador, este sequer se manifesta, simplesmente deixando de efetuar login na plataforma.

Ou seja, o trabalhador labora nas oportunidades que melhor lhe convêm, onde lhe convém, podendo escolher as entregas que pretende efetuar, situação incogitável no âmbito de uma relação empregatícia clássica, cabendo, assim, uma analogia com o trabalho avulso, em que o engajamento também não é obrigatório. Tal flexibilidade traduz um nível de autonomia inconciliável com o standard jurídico proporcionado pela CLT, baseado num poder de exigência próprio da subordinação. Ferramentas de incentivo à produtividade ou de desincentivo à inatividade, a meu ver, não são circunstâncias caracterizadoras de subordinação.

A jurisprudência, com a qual comungo, entende que a natureza da relação jurídica havida entre o condutor autônomo e o tomador é estritamente comercial e, portanto, civil. Neste sentido entendeu o E. STJ, in verbis:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR MOTORISTA DE APLICATIVO UBER. RELAÇÃO DE TRABALHO NÃO CARACTERIZADA. SHARING ECONOMY. NATUREZA CÍVEL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL. 1. A competência ratione materiae, via de regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo. 2. Os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil. 3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. 4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. 5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual. (CC 164.544/MG, relator ministro MOURA RIBEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/08/2019, DJe 04/09/2019)".

Neste sentido, pode-se concluir a partir do acima exposto que há de se verificar que não se insere na competência da Justiça do Trabalho processar e julgar processos diretamente relacionados ao reconhecimento do vínculo de emprego, uma vez que esses consistem em obrigações legais direcionadas a quem explora o serviço, mesmo que mediante trabalhadores autônomos.

 


[1] A dicotomia sempre existente entre o trabalho autônomo versus o trabalho subordinado já se manifestou em diversos exemplos na legislação pátria, tais como: A lei 4.886/1965 regula a atividade do representante comercial, sempre foco de controvérsias quanto à caracterização de vínculos empregatícios. A lei 5.764 /1971, que regula as sociedades cooperativas, fez questão de afirmar a ausência de vínculo empregatício, embora tenha sido outro foco de grandes conflitos judiciais. A lei 6.530/1978, que trata da profissão de corretor de imóveis, também se ocupa da caracterização ou não do vínculo de emprego. A lei 11.442 /2007, que trata da profissão de transportador autônomo de cargas também declara expressamente que as relações ali regulamentadas não caracterizam vínculo de emprego. A lei 13.352/2016, que alterou a lei 12.592/2012, regulamentando a parceria dos profissionais da beleza, faz o raciocínio de modo inverso: declara que haverá o vínculo empregatício, desde que descumpridos determinados requisitos; contudo, via de regra o trabalho desses profissionais é autônomo. Por fim, a lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) tangenciou timidamente a questão, ao introduzir o artigo 442-B da CLT, que trata da contratação de trabalhador autônomo.

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