Opinião

Taxa Selic é a segurança dos juros moratórios

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20 de janeiro de 2023, 6h15

Como em um triângulo, onde o vértice formado entre dois lados permite inferir onde deve estar o terceiro, a interpretação e aplicação de um Código Civil deve buscar uma lógica sistemática. Isto seguramente será tomado em consideração no julgamento do REsp 1.795.982/SP, no âmbito da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Pautado para fevereiro, os eminentes ministros e ministras terão a oportunidade de desatar controvérsia sobre a interpretação do artigo 406 do Código Civil (CC). Ao deixar de pagar uma dívida, o dispositivo impõe ao devedor que pague juros ao credor no valor "segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". Mesmo após vinte anos de vigência, o trecho é motivo de aceso debate

Os juros moratórios são devidos pela privação de certo recurso que o credor deveria receber, e não recebeu. Como espécie de frutos civis, durante o período da inadimplência os juros pingam periodicamente da quantia devida, sem a diminuir [1]. Como o próprio nome designa, o instituto objetiva impor um ônus ao atraso, ou ao inadimplemento, do devedor, que deverá arcar com o valor suplementar ao débito, tanto maior seja a sua mora [2].

A leitura do artigo 406 à luz da metáfora do triângulo e da própria função dos juros moratórios parece deixar poucas dúvidas sobre sua correta compreensão. O dispositivo aplica-se no silêncio das partes. Sendo este o caso, a taxa devida será equivalente à Selic [3], como previsto na Lei nº 9.065/95 e em outros dispositivos. A despeito disso, razões respeitáveis levaram a maior parte da doutrina brasileira a colocar-se contra esta interpretação linear.

Já na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, o grupo de juristas ali reunidos aprovou o enunciado nº 20, em sentido contrário ao que dispõe a lei. Assentou-se que "A taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 é a [de] um por cento ao mês". Em sua justificativa [4], o grupo ponderou que o uso da Selic não era seguro porque a taxa muda com frequência, nem era operacional porque ela embute juros e correção monetária.

A despeito disso, não foi aparentemente considerado que o legislador previamente examinou os ônus e bônus envolvidos, e fez sua opção — legítima e distinta da solução proposta pelo enunciado. O enunciado tomou como um problema o uso da Selic porque ela é uma taxa móvel. Porém, não há qualquer dificuldade para o seu cálculo [5]; ao contrário, facilita-se, porque a Selic já embute correção monetária [6], dispensando o complexo mecanismo de corrigir o valor e a ele somar os juros. Seja como for, mais do que por uma questão operacional, o texto legal escolheu atrelar os efeitos da mora no tempo às taxas básicas no juros no período, e não a um número fixo.

Ao fazer incidir a Selic sobre um débito inadimplido não se concede ao credor uma espécie de aplicação financeira com juros de 1% ao mês, mais correção. A opção pela Selic significa que o legislador quis fixar uma taxa móvel que não se tornasse excessiva ou minúscula ao longo das sucessivas curvas inflacionárias, sem prejuízo de as partes, em seus contratos, definirem uma taxa distinta.

Esta mesma opção pode ser vista em legislações que serviram de inspiração para o Código Civil brasileiro. Na França, por exemplo, os juros moratórios são revisados periodicamente pelo Ministério da Economia [7]. Na Itália, embora o Codice Civile mencione uma taxa fixa, a mobilidade foi garantida pela possibilidade de alteração anual por ato do Ministério do Tesouro [8].

Para além disso, a escolha legislativa tem sólidos fundamentos econômicos. Em nota técnica emitida sobre o tema, o economista Gustavo Franco alerta que "Regras para a mora não deveriam ter a sua razoabilidade dependente das condições meteorológicas". Para ele, o uso de taxas fixas arbitrárias são "escombros de uma civilização perdida", algo não mais admitido pela ciência econômica. Estipular que a taxa de juros moratórios deve ser de 1% ao mês seria como lançar mão "de um número arbitrário, um juros de algibeira", que tanto poderia ser 1% ao mês, como "uma libra de carne, ou duas", sendo algo exótico, inadequado e inútil [9].

A despeito destes fundamentos, a doutrina sustenta que é função da Selic fixar a taxa devida aos investidores de títulos públicos, o que não seria compatível com os juros moratórios. Porém, o seu uso se dá por referência, à luz do fato de que ela é um instrumento para controle da inflação. Assim, considerar que Selic não pode ser juros moratórios seria como recusar que o câmbio ou um índice de inflação possam ser aplicados para se chegar ao valor de obrigações de toda natureza, o que não é verdade.

Essas circunstâncias permitem refletir sobre o discurso da segurança, no contexto da lide em torno dos juros. As duas posições em jogo argumentam em favor deste ponto, mas a suposta segurança de uma taxa fixa mensal não pode ser obtida fora da lei, nem fora do contexto econômico. Se o cenário econômico for de baixa inflação, o percentual de 1% ao mês pode se revelar excessivo, distante da realidade de aplicações financeiras ordinárias. Se for de alta, o mesmo percentual pode se revelar baixo, não alcançando o próprio objetivo dos juros moratórios. Daí se justificar a escolha legítima pela Selic.

Tudo isto resta ainda mais claro ao ter-se em conta que o STJ também firmou entendimento, na Corte Especial, em favor da Selic [10]. Ainda que existam acórdãos anteriores em sentido contrário, é bastante significativo o fato de a corte, desde então, ter passado a inadmitir embargos de divergência sobre o tema, justamente porque entendeu que não há mais dissenso a ser resolvido [11].

Apesar disso, os eminentes ministros e ministras avaliarão o tema novamente, agora tendo em vista um possível distinguishing quanto a manutenção ou não da Selic na hipótese de responsabilidade civil extracontratual, e a recalcitrância dos tribunais locais, que não raro insistem em não aplicar a jurisprudência firmada sobre o tema.

Quanto ao primeiro ponto, o regime dos efeitos da mora nos contratos e nas obrigações extracontratuais tem previsão expressa no Código Civil [12]. Não tendo havido distinção quanto à taxa de juros, ela deve ser aplicada do mesmo modo nos dois casos, como tem decidido o STJ [13]. Pretendendo criar uma regra geral, o Código Civil não diferencia os efeitos do incumprimento quanto a este ponto, ressalvada às partes a possibilidade de estipularem expressamente os juros moratórios ao firmarem seus negócios. A unificação dos juros de mora, portanto, prestigia a opção legislativa e a conquista histórica da redução da margem de arbitrariedade na sua fixação, ao contrário do que ocorria na origem do uso dos juros como consequência da mora, como relatado por Zimmermann [14].

Quanto ao segundo ponto, este talvez seja o momento de a corte, ao examinar novamente a matéria, aprovar súmula com o objetivo de proibir julgamento em sentido contrário. Embora o tema encontre-se pacificado há quase 15 anos, curiosamente o entendimento contrário aprovado na I Jornada de Direito Civil parece se impor mais do que compreensão do Superior Tribunal de Justiça. Esta circunstância recomenda que o verbete seja fixado, com o que a jurisprudência será mantida estável e coerente, dando-se também maior publicidade à comunidade jurídica.

A Selic representa segurança: econômica, porque está atrelada às curvas de inflação; e jurídica, porque inegavelmente foi a escolha do legislador, ratificada pelo STJ. À luz disso, não é razoável criar dúvidas quanto à metodologia indicada na legislação para o cálculo dos juros moratórios. Se reafirmar sua jurisprudência, a corte estabelecerá marco importante sobre o tema e as bases necessárias, quem sabe, para a construção de uma plataforma unificada de cálculos judiciais pelo Conselho Nacional de Justiça, o que economizará tempo e recursos de advogados, juízes e usuários do Poder Judiciário.

 


[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. XXIV. São Paulo: RT, 2012, p. 77.

[2] SILVA, José Marcelo Tossi. Juros legais. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Obrigações. São Paulo: Atlas, p. 694.

[3] "Art. 13. A partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da Lei nº 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da Lei nº 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da Lei nº 8.981, de 1995, o art. 84, inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da Lei nº 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente". Inúmeros outros dispositivos na legislação tributária confirmam o uso da SELIC, seja ao tratar da mora ou da atualização da dívida na hipótese de parcelamento ou compensação tributária. A este respeito, ver: art. 39, §4º, Lei 9.250/95; art. 5º, §3º e art. 61, §3º, Lei 9.430/96.

[4] Eis a justificativa: "A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano". O enunciado foi proposto pelo Desembargador Francisco Moesch, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo Nelson Nery Júnior, membro da comissão que examinou a proposta e relator dos trabalhos no dia 12/09/2002, a aprovação se deu por unanimidade (NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 14. ed. São Paulo: RT, 2022).

[5] O Banco Central mantém em seu site ferramenta intitulada "Calculadora do Cidadão", onde facilmente qualquer pessoa pode obter o resultado da incidência da taxa SELIC sobre um valor, em um dado período: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/calculadoradocidadao .

[6] Por isso a Selic não pode ser cumulada com correção monetária, sob pena de bis in idem. Quanto ao ponto, apenas para ilustrar, confira-se: EDcl no REsp 1.025.298, rel. min. Luís Felipe Salomão, j. 28/12/2012, com referência a inúmeros outros acórdãos.

[7] "Art. 1.231-6. Les dommages et intérêts dus à raison du retard dans le paiement d'une obligation de somme d'argent consistent dans l'intérêt au taux légal, à compter de la mise en demeure". Os juros legais são calculados de acordo com o art. 313-2 do Código Monetário e Financeiro: "Il comprend un taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels et un taux applicable dans tous les autres cas. Il est calculé semestriellement, en fonction du taux directeur de la Banque centrale européenne sur les opérations principales de refinancement et des taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement. Les taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement pris en compte pour le calcul du taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels sont les taux effectifs moyens de crédits consentis aux particuliers. Les modalités de calcul et de publicité de ces taux sont fixées par décret".

[8] "Art. 1224. Danni nelle obbligazioni pecuniarie. Nelle obbligazioni che hanno per oggetto una somma di danaro, sono dovuti dal giorno della mora gli interessi legali (…)". O cálculo deverá observar o art. 1.284 do Codice: "Art. 1284. Saggio degli interessi. Il saggio degli interessi legali è determinato in misura pari allo 0,8 per cento in ragione d'anno. Il Ministro del tesoro, con proprio decreto pubblicato nella Gazzetta Ufficiale della Repubblica italiana non oltre il 15 dicembre dell'anno precedente a quello cui il saggio si riferisce, può modificarne annualmente la misura, sulla base del rendimento medio annuo lordo dei titoli di Stato di durata non superiore a 12 mesi e tenuto conto del tasso di inflazione registrato nell'anno. Qualora entro il 15 dicembre non sia fissata una nuova misura del saggio, questo rimane invariato per l'anno successivo. (…)"

[9] A nota técnica foi apresentada nos autos do REsp 1795982/SP pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abraimc).

[10] "CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. CÓDIGO CIVIL, ART. 406. APLICAÇÃO DA TAXA SELIC. 1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, ‘Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional’. 2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02). 3. Embargos de divergência a que se dá provimento." (EREsp 727.842/SP, rel. min. Teori ZAVASCKI, Corte Especial, j. 08/09/2008).

[11] Exemplo recente pode ser visto no AgInt no EREsp 1.731.193/SP, rel. min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, j. 3/8/2022.

[12] Se a mora for de obrigação líquida, dá-se no vencimento (art. 397, CC); se não for líquida, a partir da citação (art. 405, CC); se decorrer de ato ilícito, a partir do evento danoso (art. 398, CC). Este arranjo foi ratificado nas Jornadas de Direito Civil, nos enunciados 163 ("A regra do CC 405 aplica-se somente à responsabilidade contratual, e não aos juros moratórios na responsabilidade extracontratual, em face do disposto no CC 398…") e 428 ("Os juros de mora, nas obrigações negociais, fluem a partir do advento do termo da prestação, estando a incidência do disposto no CC 405 limitada às hipóteses em que a citação representa o papel de notificação do devedor ou àquelas em que objeto da prestação não tem liquidez").

[13] A SELIC tem sido igualmente aplicada como juros moratórios em indenizações (AgInt nos EDcl no REsp 1.872.866 / PR, rel. min. Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 20/6/2022) e dívidas cíveis (AgInt no REsp 1.900.859 / MS, rel. min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, j. 14/9/2020).

[14] "What were (and what are) the effects ofmora debitoris? The medieval lawyers were presented with a specific problem by the Roman rule that interest could be charged in bonae fidei contracts. For how could this be reconciled with the canonical usura prohibition? Interest on account of mora, ran the argument usually presented to resolve the difficulty, was not to be regarded as genuine (illicit) usura, but as a (lawful) way of compensating the creditor for his damages: "hie usuras ut interesse peti" (Accursius) or ". . . pro interesse petatur" (Gofredus de Trano), and such a claim was not dishonest, "quia tale lucrum ex mutuo non speratur" (Cinus da Pistoia). Mora thus became one of the most important titles for awarding interest. The statutory or customary rates differed from town to town, from region to region. In the medieval upper Italian city states up to 20 % or even 30 % could be charged: in later centuries 5 % came to be widely accepted" (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Cape Town: Jota & Co Ltd, 1990, p. 799).

Autores

  • é doutorando em Direito Civil (USP), mestre em Direito (UFBA), professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito, membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil e do Instituto de Direito Privado.

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