Opinião

Comentários sobre a volta do voto de qualidade no Carf

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19 de janeiro de 2023, 16h15

Dando início às medidas do novo governo na área econômica, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP), deu publicidade, na última quinta-feira (12/1), a um conjunto de Medidas Provisórias (MPs) com o objetivo de reduzir o déficit público previsto para o ano de 2023. De acordo com o Ministério da Fazenda, a implantação das ações possibilitará que o déficit de R$ 231,55 bilhões, previsto no Orçamento de 2023, converta-se em um superávit de R$ 11,13 bilhões até o fim do ano. 

Entre as medidas publicadas, destaca-se as alterações impostas aos julgamentos administrativos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). Isso porque foi extinta — por meio da Medida Provisória nº 1.160/2023 — a regra do desempate pró-contribuinte, modelo de julgamento implementado em 2020 pela Lei nº 13.988/2020. 

Vale lembrar que a temática do voto de qualidade ganhou destaque com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.731 proposta pelo Conselho Federal da OAB, por meio da qual o referido órgão defendeu ser inconstitucional a regra de "que, em caso de empate, terão voto de qualidade" as causas no contencioso administrativo-tributário federal, contido no enunciado do artigo 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72 seria inconstitucional.  

Por meio da referida ADI, a OAB questionou a instituição do que comumente se confunde com o chamado voto de Minerva. Em resumo, antes da Lei nº 13.988/2020, quando o presidente do Colegiado, que por definição legal sempre é um membro derivado da Fazenda Pública, havia o poder de proferir o voto de desempate, ao mesmo tempo em que já havia votado no mesmo julgamento, passando, assim, a ter dois votos em um mesmo julgamento. Esse é o voto de qualidade, que não se confunde com o voto de Minerva

De acordo com a OAB, o estabelecimento do voto de qualidade estaria quebrando a regra de "um homem, um voto". Em sua argumentação, a OAB pediu pela aplicação do contido no artigo 112 do Código Tributário Nacional (CTN) nos casos de empate, de modo a permitir a interpretação mais favorável ao contribuinte, seguindo o princípio do princípio do in dubio pro contribuinte. 

A ADI terminou por ser arquivada em razão da perda de seu objeto, já que a Lei nº 10.522/2002 resolveu a questão ao apresentar a seguinte redação em seu artigo 19-E: "em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o §9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte".  

Ocorre que, se para a OAB a questão estava resolvida, para a Procuradoria Geral da República, a Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) o problema só começava. Tanto é que cada um deles propôs as ADIs nº 6.399/DF, 6.403/DF e 4.415/DF, por meio das quais os debates quanto à constitucionalidade do voto de qualidade voltaram a ser alvo de discussões.  

Mais tarde, em 2020, a Lei nº 13.988/2020 foi publicada. O dispositivo legal em questão, além de ser responsável pela regulamentação da negociação de dívidas tributárias com a União, se ocupou, especificamente em seu artigo 28, em extinguir o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.  

Como era de se esperar, importantes questionamentos sobre a constitucionalidade do novo dispositivo legal passaram a ser feitos. Diversas ADIs que, entre outras questões, alegam vício no processo legislativo, pois, segundo elas, o artigo 28 não teria pertinência temática com a Medida Provisória que deu origem à lei em questão, qual seja, a Medida Provisória nº 899/2019. Em suma, os argumentos giram em torno do que vulgarmente se chama de "jabuti" legislativo.  

Em mais uma reviravolta no caso aqui analisado, o novo governo, ao publicar o novo pacote econômico terminou por reestabelecer, por meio da Medida Provisória nº 1.160/2023, o voto de qualidade. Com o fim do desempate a favor do contribuinte, o cenário dos julgamentos administrativos da Receita Federal do Brasil (RFB) retorna à esquemática anterior, pela qual eventuais empates eram resolvidos por meio do voto duplo de um dos representantes da Receita Federal. Em outras palavras, a nova medida atende a uma expectativa do Ministério da Fazenda de que a União Federal saia vitoriosa em julgamentos empatados, os quais — por óbvio — tendem a ocorrer em litígios que envolvem assuntos complexos e valores altos.  

De acordo com o ministro Fernando Haddad, o desempate pró-contribuinte imposto em 2020 foi um dos responsáveis pela perda de cerca de R$ 60 bilhões por ano, valor que poderia servir de fonte arrecadatória da União.

De fato, desde 2020, é notório que os contribuintes conseguiram reverter diversas jurisprudências historicamente desfavoráveis. Apesar de a reversão também ter se dado por alterações na composição das Turmas, apenas no ano de 2022, as empresas foram vitoriosas em assuntos que envolvem juros sobre capital próprio retroativos, amortização de ágio interno, PLR, stock options, tributação de lucros no exterior e hiring bonus, por exemplo [1].  

A relevância de tal alteração é significativa e potencialmente prejudicial aos contribuintes, haja vista que o voto duplo é dado pelo presidente do respectivo órgão colegiado dentro do Carf, que sempre é um representante da Fazenda Nacional. 

Na realidade, é de se estranhar que a alteração da Lei nº 13.988/2020 tenha se dado pura e simplesmente com o fito de ampliar as arrecadações da União. Isso porque, conforme determinado pelo próprio órgão, o Carf é um órgão colegiado formado por Conselheiros representantes da Fazenda Nacional e dos Contribuintes, com a atribuição de julgar em segunda instância administrativa os litígios em matéria tributária e aduaneira. Sendo assim, a atuação do Conselho Administrativo deve primar pela neutralidade e imparcialidade, o que diverge substancialmente da função arrecadatória presente no discurso do Ministério do dia 12 de janeiro.  

Significa dizer que, antes de se falar da "perda de R$ 60 bilhões" causadas pela regra do desempate pró-contribuinte, é preciso avaliar a tecnicidade e a adequação entre os dois métodos de desempate com relação às regras e aos princípios que regem o processo administrativo-fiscal brasileiro.  

Se, por um lado, a extinção do desempate pró-contribuinte pode até retirar alguma expectativa de receita fiscal para a União, é certo que o modelo atende não só à norma constitucional implícita, como também à norma expressa no artigo 112, do Código Tributário Nacional, que estabelece o princípio do in dubio pro contribuinte, protegendo o direito fundamental de propriedade.  

Aqui não se defende a ideia de que o in dubio pro contribuinte deva ser aplicado em todo e qualquer julgamento tributário, mas, sim, que a incidência do princípio se faz lógica sempre que, conforme menciona Villas-Bôas, "houver dúvidas muito fortes sobre a interpretação (legislativa, jurisprudencial, fática etc.) a ser escolhida para construir a norma aplicável a determinado caso e, ao mesmo tempo, quando se esteja tratando de um contribuinte de boa fé" [2].  

A aplicação desse modelo, inclusive, coaduna-se com as tendências atuais de política tributária, na medida em que tornam a relação fisco-contribuinte menos duais e cada vez mais fluidas. 

Outro ponto de destaque com relação ao retorno do voto de qualidade relaciona-se com a possível parcialidade dos Conselheiros que detém a "palavra final" dos julgamentos. Levando-se em conta que o regimento interno do órgão determina que o voto de qualidade se restringe aos presidentes das Turmas de julgamento (os quais são representantes fazendários), faz-se necessário levar em consideração a sujeição à interferências externas e a pressões dentro e fora do órgão que, eventualmente, podem sim impactar as decisões finais dos conselheiros.  

Nesse ponto, é claro que se deve levar em conta o entendimento de que o julgamento deverá ocorrer de forma imparcial, contudo, não se pode excluir a tendência a vieses e uma questão prática e lógica, qual seja, de que não se deve esperar que o voto duplo seja diferente do primeiro voto. 

O viés, inclusive, pode ser identificado no argumento de que a extinção do voto de qualidade causou à União "prejuízos". A verdade que subjaz à fala é a de que se experimentou uma mudança notória de comportamento das decisões proferidas pelo Carf após a ocorrência da extinção do voto de qualidade. De maneira exemplificativa, cita-se o cenário dos julgamentos administrativos decididos pelo voto de qualidade antes e após a Operação Zelotes, responsável pela investigação — deflagrada em 2016 — de um esquema de corrupção envolvendo a negociação de decisões administrativas entre empresas e conselheiros do Carf, com o objetivo de influenciar o resultados dos julgamentos do Conselho.  

No período de janeiro de 2013 a outubro de 2018, das 25,61% das decisões administrativas das Câmaras Superiores do Carf decididas pelo voto de qualidade, 200 foram proferidas antes da Operação Zelotes (ou seja, entre 2013 e 2015), enquanto que as 1.779 restantes foram proferidas após o início da investigação, o que corresponde a um aumento percentual de mais de 889% de julgamentos decididos pelo voto de qualidade.  

Ademais, das decisões proferidas antes do início da operação, 98,50% eram favoráveis ao Fisco. Após janeiro de 2016, o percentual aumentou para 99,89% [3].  

De tudo isso depreende-se que o modelo de desempate baseado na utilização do voto de qualidade inegavelmente é mais sujeito a fatores não só externos, como também a interferências e pressões existentes na estrutura interna do órgão, o que põe em xeque a credibilidade e a imparcialidade necessária aos julgamentos administrativos do país.  

Por fim, reitera-se que a imposição de Medida Provisória para alterar o funcionamento de julgamentos administrativos do Carf pode ser vista como uma atuação que entra em conflito com intenção do Poder Legislativo acerca da matéria, haja vista que a alteração entre o modelo do voto de qualidade e o desempate pró-contribuinte são temas que foram (e ainda são) alvo de muitos debates [4].

Sendo assim, a revogação de dispositivo de lei por meio do instrumento excepcional da Medida Provisória — ainda mais sob a justificativa de ampliação das arrecadações do Estado — apenas reiteram a incompatibilidade da norma com os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes, bem como à postura que expressamente estimula uma polarização no que diz respeito à relação fisco-contribuinte. 

Aliás, o debate ainda é tão amplo que é matéria a ser julgada nas ADIs nº 6.399, 6.403 e 6.415, cujos julgamentos foram suspensos no Supremo Tribunal Federal (STF) após pedido de vista por parte do ministro Nunes Marques, mesmo que seis votos pela constitucionalidade do desempate pró-contribuinte já tenham sido proferidos, isto é, quando já se tinha maioria formada.  

Em seu voto, o ministro Roberto Barroso tece comentários essenciais com relação aos modelos de desempate em questão. De acordo com o ministro, "o resultado favorável ao sujeito passivo não significa que se atendeu a interesses puramente privados. Como visto, não se pode confundir interesse público com o interesse defendido pela Fazenda no processo administrativo fiscal. O interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar e promover" [5].  

Portanto, é certo que a extinção do esquema de desempate baseado no voto duplo dos presidentes das Turmas do Carf é medida que busca "equacionar uma situação de iniquidade no processo administrativo tributário federal" [6]. A imparcialidade do órgão é quebrada na medida em que a decisão de todos os assuntos que geram grandes dúvidas resolve-se sempre em desfavor das empresas. Reitera-se: a função do Carf nunca se relacionou com a de angariar recursos ao Estado, sendo o Conselho um instrumento de autorrevisão de atos da própria Administração Pública [7].  

A partir desse cenário em detrimento imparcialidade, pode-se afirmar que — diversamente do que foi defendido no momento de publicação do conjunto de medidas econômicas do novo governo — a redução dos litígios será observada apenas na via administrativa, sobrecarregando, por via de consequência, o Poder Judiciário, já que, diante de eventuais decisões desfavoráveis, as empresas continuarão as disputas pelas vias judiciais, o que deixa o problema mais longe de ser resolvido.   

 


[1] Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/01/06/contribuintes-passaram-a-vencer-dez-teses-na-camara-superior-do-carf.ghtml 

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-dez-21/villas-boas-in-dubio-pro-contribuinte-aumenta-eficiencia-estatal 

[3] Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/28526/Voto%20de%20Qualidade%20no%20Conselho%20Administrativo%20de%20Recursos%20Fiscais%20%28CARF%29.pdf?sequence=3&isAllowed=y 

[4] Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/60647/cfoab-contesta-volta-do-voto-de-qualidade-no-carf 

[5] Disponível em: https://static.poder360.com.br/2022/03/Voto-de-qualidade_voto-Barroso.pdf 

[6] Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/60647/cfoab-contesta-volta-do-voto-de-qualidade-no-carf 

[7] Disponível em:  https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/voto-de-qualidade-no-carf-o-que-esta-em-jogo-stf-22032022 

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