Opinião

STF e o Direito Administrativo Sancionador: o acórdão no ARE 843.989/PR

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16 de janeiro de 2023, 17h17

Em 12 de dezembro de 2022, foi publicado o acórdão proferido no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n° 843.989/PR, no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a (ir)retroatividade de disposições da Lei n° 14.230, de 25 de outubro de 2021, norma que alterou a Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Na referida decisão, a corte concluiu que "o princípio da retroatividade da lei penal (…) não tem a aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador".

No presente artigo, buscar-se-á demonstrar que o posicionamento adotado pelo STF parece desprezar o atual estágio do Direito Administrativo Sancionador e a premissa de que qualquer processo de caráter punitivo não pode prescindir de princípios, direitos e garantias historicamente consagrados pelo ordenamento jurídico. Para isso, serão contestados alguns dos argumentos apresentados na decisão da corte, para sustentar o entendimento da não incidência do princípio da retroatividade da lei mais benéfica, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Primeiramente, é importante contextualizar que o STF considerou que, embora o ato de improbidade e suas sanções tenham natureza civil, a Lei n° 14.230, de 2021, estabeleceu uma genérica aplicação dos "princípios constitucionais do direito administrativo sancionador" ao "sistema de improbidade administrativa" (nova redação do artigo 1º, § 4º, da LIA). Ao delimitar o que seria essa aplicação, o voto do relator assevera que "[d]iferentemente do Direito Penal, que materializa o ius puniendi na seara judicial, mais precisamente no juízo criminal; o Direito Administrativo Sancionador tem aplicação no exercício do ius puniendi administrativo; sendo ambos expressões do poder punitivo estatal, porém representando sistemas sancionatórios que 'não guardam similitude de lógica operativa'". Ademais, no que tange ao Direito Administrativo Sancionador, sub-ramo do Direito Administrativo, entendeu-se que a Constituição Federal consagra princípios e preceitos básicos — "regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos, dando novos contornos ao Direito Administrativo Sancionador (DAS)" — e que não abrangeria o princípio da "retroatividade da lei civil mais benéfica", expressamente restrito ao âmbito penal.

A severa segregação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal ignora que o poder sancionador outorgado à administração pública — assim como a persecução penal —, insere-se no amplo poder punitivo estatal. Essa circunstância faz com que o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador seja influenciado por mandamentos comuns a todo o direito público sancionador, como os princípios da presunção de inocência, da individualização da pena e o debatido princípio da retroatividade da lei mais benéfica. Como bem leciona Prates (2005, p. 29), tais princípio são derivados de princípios constitucionais maiores, como o Estado de Direito, a legalidade e a segurança jurídica, na perspectiva de proteção da confiança, o que torna imperioso o reconhecimento e a observância daqueles mandamentos.

É possível afirmar, ainda, que os princípios, direitos e garantias constitucionalmente consagrados para balizar a atuação punitiva do Estado são vetores do devido processo, seja em sua acepção formal, seja na sua acepção material. O devido processo punitivo administrativo exige o pleno respeito aos mandamentos constitucionais, em especial as inafastáveis garantias individuais do artigo 5º, de modo a afastar abusos ou decisões sem razoabilidade e proporcionalidade.

Em que pese o acima, para afastar a aplicação de princípio do direito público sancionador ao Direito Administrativo, o STF recorre a uma interpretação restritiva do inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal, que faz expressa menção à "lei penal". Registre-se que essa interpretação limitativa da norma, em princípio, acarretaria a restrição de outros mandamentos do artigo 5º ao âmbito penal, vide o inciso LVII, que, ao consagrar a presunção de inocência, menciona a "sentença penal condenatória".

O posicionamento da corte acarreta um inapropriado engessamento da norma constitucional, que obsta a sua adaptação à realidade social, em especial ao atual papel do Direito Administrativo Sancionador no ordenamento jurídico brasileiro. Maximiliano (2011, p. 10) alerta que, por vezes, é necessário que o hermeneuta, por meio dos métodos de interpretação, promova a adequada colmatação de lacunas normativas, de modo a adaptar a norma às necessidades e exigências da realidade. Ao lembrar que a lei é estática e a realidade está sempre em transformação, o autor assevera que:

(…) o intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como elemento integrador e complementador da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito (…) (Maximiliano, 2011, p. 10)

Fatores como a ascensão das agências reguladoras, na década de 90, e a sucessão de leis que ampliaram a tipificação de condutas como infrações administrativas robusteceram o poder sancionador da administração pública. Some-se a isso a inegável progressão da severidade das sanções disponibilizadas ao administrador, que, atualmente, pode aplicar penalidades pecuniárias vultosas e restringir direitos e liberdades [1]. Trata-se de cenário sensivelmente distinto daquele observado no momento de promulgação da Constituição Federal e que justificava a menção expressa apenas à persecução penal, em incisos do artigo 5º.

Dessa forma, entende-se que o STF deveria ter atuado como integrador do texto constitucional, de modo a adaptá-lo à realidade. Não se olvide, ainda, que a própria Constituição, no § 2º do artigo 5º, estabelece expressamente que os "direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados", o que corrobora a necessidade de se priorizar a interpretação ampliativa ou extensiva dos mandamentos constitucionais.

Em seu turno, o voto vencedor afirma que o inciso XL do artigo 5º veicularia uma regra de exceção, a merecer a interpretação restritiva. Esse entendimento colide com o fato de que o mandamento está no artigo da Constituição que trata precipuamente dos direitos e garantias individuais e que tem como escopo estabelecer limitações aos poderes estatais. Nessa linha, o referido inciso XL não veicula, propriamente, uma mera regra de exceção, mas sim afirma, simultaneamente, um princípio e uma garantia fundamental (a de que a lei mais benéfica, necessariamente, retroagirá), que merecem uma atribuição de efeito amplo pelo intérprete.

Em termos mais práticos, é importante considerar, também, que a lei mais benéfica retroage, pois, implicitamente, tem-se a compreensão de que a valoração do Estado a respeito de determinada conduta foi alterada, viabilizando uma modificação das consequências jurídicas previamente estabelecidas. José Afonso da Silva bem pondera que (2005, p. 138):

"(…) se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente".

Há que se abordar, ainda, a construção do voto vencedor, no sentido de que a Constituição Federal consagraria regras rígidas de regência da administração pública, que não abrangeriam o princípio da "retroatividade da lei civil mais benéfica".

É inquestionável que a atual Constituição estabeleceu as principais normas do Direito Administrativo. E o próprio STF assevera que a codificação constitucional das normas administrativas tem por finalidade limitar o poder estatal, ao prever instrumentos de controle e meios de responsabilização dos agentes públicos.

Contudo, essas regras de regência da administração pública não são incompatíveis com os demais princípios, direitos e garantias constitucionais, principalmente aqueles estabelecidos no artigo 5º da Constituição. Conforme a categorização de José Afonso da Silva (2022, p. 46) os direitos individuais e suas garantias são "elementos limitativos" da Constituição, pois restringem os poderes estatais e dão a tônica do Estado de Direito. Consequentemente, não há como se pensar em um regime administrativo decorrente da Constituição — seja com escopo de ordenar a Administração Pública, seja com o escopo de punir agentes corruptos — que despreze os mandamentos basilares dessa mesma Lei Maior.

Em conclusão, tem-se que o posicionamento adotado pelo STF no ARE n° 843.989/PR destoa da atual posição assumida pelo Direito Administrativo Sancionador no ordenamento jurídico pátrio e, em última instância, afasta o texto constitucional da realidade. Ademais, a severa compreensão de que a administração pública seria regida por um conjunto rígido de regras, aparentemente alienado de fundamentais princípios, direitos e garantias, elide a visão da Constituição como um sistema e ignora o fato de que esses mandamentos decorrem de preceitos maiores, a exemplo do Estado Democrático de Direito.

 

O conteúdo do artigo é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, posição institucional.


Referências:

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

PRATES, Marcelo Madureira. Sanção Administrativa Geral: Anatomia e autonomia. Coimbra: Edições Almedina, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2022.

Silva, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005.

 


[1] Cite-se como exemplo a Lei n° 13.506, de 13 de novembro de 2017, que fortaleceu o poder punitivo do Banco Central do Brasil, com penalidades de multa de até dois bilhões de reais e penalidades de proibição de prestação de serviços e atividades.

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