Opinião

O Capitólio tupiniquim: constitucionalismo abusivo e suas consequências

Autor

  • Luiz Guilherme Ros

    é doutorando em Direito Econômico pela Universidade de Brasília mestre em Direito Constitucional pelo IDP advogado sócio do escritório Silva Matos Advogados consultor do Programa das Nações Unidas perante o Cade no projeto Control of Data Market Power and Potential Competition in Merger Reviews secretário da Comissão de Defesa da Concorrência da OAB-DF e membro da Comissão de Direito Regulatório da OAB-DF.

10 de janeiro de 2023, 16h15

O conceito de "constitucionalismo abusivo", cunhado por LANDAU (2013) e TUSHNET (2015), busca explicar o fenômeno ocorrido em sociedades modernas em que governantes, eleitos democraticamente, subverterem o processo democrático e buscam ceifar o pluralismo, reduzindo o campo de abrangência da democracia, mas mantendo-se como um Estado constitucional. Esse Estado, supostamente constitucional, será regido por um regime constitucional deficitário, ou "the mere rule of law", como aponta TUSHNET (2015).

A origem e crescimento desses fenômenos se dá, em regra, em situações de descrença política da sociedade em relação aos seus governantes e, normalmente partir da catalisação de outras esferas para além daquela essencialmente política, tais como crises econômicas e sociais. Tal fenômeno ocorreu no Peru na década de 1990 com a eleição de Fujimori, como bem exposto por LEVITSKY e ZIBLATT (2018, p. 59 e ss).

Surgem contextos, líderes com ideais nacionalistas e que, a partir de tais condições, acabam por abraçar o populismo. Como exposto por GINSBURG e HUQ (2018), as democracias constitucionais liberais estão ameaçadas por dois tipos de fenômenos: o colapso autoritário — usualmente materializado por golpes militares ou paramilitares de Estado —; e a própria decadência das Constituições e do fenômeno constitucional como um todo, que serão alteradas para dar azo a um desenvolvimento de um novo tipo de governo, uma democracia limitada.

Segundo BALKIN (2017), as quatro principais características que levam a formação desse segundo movimento são a (1) polarização política; (2) perda de confiança em governo; (3) aumento da desigualdade econômica; e (4) desastres políticos. Nesses casos, e apoiando-se na quebra da confiança na higidez institucional pela população, líderes populistas buscam minar a reputação das demais instituições que ordenam o processo democrático, principalmente os órgãos de controle e o próprio processo eleitoral e, paralelamente, buscam promover substanciais mudanças nas suas constituições. Buscam equipar as instituições com pessoas que pensam identicamente, para evitar que tenham seu projeto limitado, ou extingui-las para acabar com o controle exercido.

Caso obtenham sucesso, há tentativas de mudanças constitucionais, por exemplo, para enfraquecer o campo eleitoral ou eliminar garantias democráticas contramajoritárias, como os direitos de grupos minoritários — tais como sociedades indígenas, negras e LGBTQIA+, bem como outras medidas que cerceiam o ambiente democrático. É justamente esse processo lento e gradual de mudança constitucional, que nem sempre é perceptível de forma isolada, mas apenas holisticamente, que acaba por promover a decadência de um Estado constitucional democrático pleno.

Como aponta LANDAU (2013), o Constitucionalismo abusivo envolve o uso dos mecanismos de mudança constitucional — como, emendas e, até mesmo substituições constitucionais — para minar a democracia. Embora os métodos tradicionais de derrubada democrática, como golpes de Estado, estejam em declínio há décadas, o uso de ferramentas constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários é cada vez mais prevalente. Presidentes e partidos hegemônicos em exercício podem engendrar mudanças constitucionais de modo a dificultar qualquer possibilidade de troca democrática de poder, desarmando checks democráticos de órgãos, como tribunais e cortes constitucionais.

Nesse contexto, e ao contrário do que ocorria em outros tempos em que regimes autoritários eram formados e estabelecidos a partir de tomadas efetivas de poder — isto é, práticas que eram, desde o seu início, inconstitucionais —, tais governantes têm incentivos significativos para parecer jogar de acordo com as regras constitucionais. Tal encenação tem a finalidade de se manter algum grau de reputabilidade do governo, tanto internamente, como externamente.

Nesse sentido, o novo tipo de governo não deixa de ser um regime constitucional, mas com um campo democrático reduzido. Segundo LANDAU (2013), tal fenômeno se daria, pois, a democracia será classificada em um espectro, existindo de um lado modelos democráticos e de outros autoritários e, ao longo desse percurso, modelos híbridos. Autores vão apresentam nomenclaturas diferentes a esse fenômeno, tais como chamam de regimes "autoritários competitivos", "autocracias eleitorais" ou simplesmente regimes "híbridos", fundindo alguns aspectos da democracia com alguns aspectos do autoritarismo.

VAROL (2015, p. 1683), conceitua esse fenômeno como sendo regimes que residem em algum lugar entre os extremos opostos da democracia e do autoritarismo, combinando características de ambos. Acadêmicos têm rotulado esses regimes como "autoritarismo competitivo", "autoritarismo eleitoral", "semiautoritarismo", ou "Frankenestados".

Embora haja diferenças conceituais entre esses rótulos, a maioria possui as mesmas características: competição eleitoral multipartidária existe, mas é injusta, porque os detentores do poder aproveitam-se de vantagens sistemáticas contra seus oponentes. Por consequência, eles tendem a ficar no poder indefinidamente, e o propósito central da democracia — eleições competitivas e a consequente alteração no poder — torna-se significativamente debilitado.

Diversos são os exemplos de sociedades que podem ser usadas como exemplo, tais como Venezuela, Turquia e Hungria. Em todos esses casos verificou-se, a partir de mudanças constitucionais, os desmantelamentos de instituições que serviam para limitar o poder desses governos autoritários, fossem elas do judiciário ou os próprios opositores. O enfraquecimento e o descrédito dessas instituições é etapa essencial para a formação desses regimes autoritários, pois criam o cenário de um inimigo comum a ser combatido.

Ocorre que, em alguns casos, como ocorreu nos EUA com eleição de Joe Biden em face de Donald Trump, o desenvolvimento de governos autoritários é interrompido, impedindo assim o sucesso de mudanças constitucionais de natureza autoritária. Entretanto, a retirada do líder autoritário, por si só, não faz esvaecer o sentimento golpista de determinado setor da sociedade civil.

Outro exemplo ocorreu em Mianmar. A Constituição de Mianmar demorou cerca de 20 anos para ser redigida, com único objetivo de dificultar, ou evitar, que a Liga Nacional da Democracia chegasse ao poder. Em 2021, após esse partido chegar ao poder, há um golpe de Estado, com base na argumentação de que se trataria de fraude eleitoral, onde se decretou estado de sítio e se justificou um golpe militar.

Esse sentimento, fortalecido pelo fenômeno da pós-verdade, onde somente se torna crível aquilo que eu acredito ser real, com base em apelos emocionais e crenças pessoais, faz com que cenas lamentáveis como a invasão do Capitólio ocorram. Situação similar parece viver o Brasil, cuja democracia foi vilipendiada por golpistas que, não tendo êxito em suceder a um golpe moderno, buscaram impor o caos e a barbárie requerendo um golpe militar.

Como o quadro de Di Cavalcanti que foi apunhalado de forma vil, nossa democracia também o foi. Mas assim como a obra de arte será restaurada, nossa obra de arte moderna, a democracia, também será. Com instituições fortes, uma sociedade civil que repulsa tais manifestações e exemplar punição aos golpistas, não só aos que invadiram nossas instituições, mas aqueles que financiaram e incentivaram a barbárie e o ódio.

 


Balkin, Jack M., Constitutional Rot (June 14, 2017). Can It Happen Here: Authoritarianism in America, Cass R. Sunstein, ed. (2018, Forthcoming), Yale Law School, Public Law Research Paper No. 604, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2992961

GINSBURG, Tom, HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018.

LANDAU, David. Abusive Constitutionalism, University of California. Vol. 47, p. 189-259, 2013.)

LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

TUSHNET, Mark. Authoritit constitutionalism. Cornell Law Review, v. 393, p. 451-452, 2015.

VAROL, Ozan O. Stealth Authoritarianism. Iowa Law Review, Estados Unidos, 2015, n. 100, p. 1673-1742.

Autores

  • é sócio do Escritório Silva Matos Advogados, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Comissão de Direito Regulatório e da Comissão de Direito de Defesa da Concorrência da OAB-DF. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral e assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e autor de artigos relacionados à área de antitruste.

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