Opinião

Não há liberdade geral de ação contra a democracia

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10 de janeiro de 2023, 12h18

"O Brasil infelizmente não é um país de instituições, mas de homens", segundo Edvaldo Brito [1].

No último domingo (8/1), em Brasília, milhares de pessoas invadiram e depredaram prédios públicos de grande valor simbólico para o país, instrumentos que, mesmo imperfeitos, funcionam como grades de proteção da democracia [2] (Congresso Nacional, Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal), fazendo-o descontentes com a derrota de seu candidato a presidente da República, a pretexto do exercício da liberdade de reunião, do direito de ir e vir e da livre circulação de pensamento.

O que preocupa, porém, não é só a demonstração de força da multidão insatisfeita com o resultado das urnas, mas o que está por trás dessa força e pode gerar novos atos no mesmo sentido (a exemplo de fechamento de aeroportos e refinarias de petróleo). Com efeito, não basta perquirir sobre a força, mas a sua base ideológica, considerando que o poder precisa de uma base ideológica [3].

Ao que parece, já falando sobre essa base, eles são adeptos da livre circulação de ideias (que se materializaram em atos terroristas e golpistas), como se isto fosse um desdobramento da liberdade geral de ação e estivessem no exercício da liberdade negativa, aquela que impõe a todos o respeito ao direito individual de ação ou inação, tendo como limites apenas o quanto previsto na legislação, algo a ser julgado só depois.

A partir dessa base ideológica, tais práticas não podem ser restringidas sumariamente, uma vez que a priori tudo seria permitido e os limites dessa liberdade viriam posteriormente do rechaço social e dos tribunais (inclusive usando a famigerada ponderação), o que é pior ainda.

Essa linha de pensamento é nociva e merece reflexão à luz da dogmática dos direitos fundamentais porque serve de pano de fundo para outras práticas lamentáveis em nosso meio, notadamente as fake news e o chamado discurso de ódio. É o que se propõe a fazer aqui, ainda que de relance, à vista do curto espaço.

E por que não se pode admitir esse liberou geral na seara dos direitos fundamentais?

Primeiro, porque a liberdade geral de ação não embasa a livre circulação de ideias, ainda que estas violentem a nossa democracia e os meios de sua realização, como as instituições atingidas pela turba. Muito difícil, talvez impossível encontrar amparo para tais práticas na chamada liberdade negativa, desdobramento da liberdade geral de ação, um campo minado por uma série de dispositivos arrolados no texto constitucional em contrário (artigo 5º, incisos XLI e XLII, entre outros).

Sobre esse campo minado, os manifestantes teriam que esquecer qualquer fundamentação em torno da liberdade negativa como desdobramento da liberdade geral de ação, mas tentar desconstruir o arcabouço normativo-constitucional erigido pelo direito pátrio (que se apresenta contra suas ideias), o que em alguns casos parece impossível, já que afrontaria cláusulas pétreas da Constituição.

À conta de curiosidade, a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos diz que o Congresso não fará nenhuma lei que restrinja a liberdade de expressão. A nossa Constituição não segue essa linha, daí não podermos importar a cultura norte americana para o nosso país, que tem uma outra ordem jurídica sobre o tema, com uma visão muito diferente.

Na nossa Constituição, ao mesmo tempo em que há garantia do direito, é possível perceber limitações intrínsecas e também várias autorizações para que leis sejam aprovadas para limitar os direitos relacionados à circulação do pensamento, a exemplo da Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes do preconceito de raça e de cor.

Aliás, nem lá os absolutistas da Primeira Emenda têm vez, já que, conforme lembra Jeremy Waldron [4], "há um ditado honroso, atribuído a Oliver Wendell Holmes, de que o princípio da liberdade de expressão inscrito na Primeira Emenda não privilegia o direito de gritar 'fogo' em um teatro lotado (que se sabe que não está pegando fogo)".

A propósito, há um precedente norte americano no sentido de que espalhar fake news, sabendo dessa falsidade, não se constitui em liberdade de expressão.

Segundo, porque não existe uma relação de antinomia entre direito e liberdade, como se a liberdade fosse uma reserva de arbítrio do indivíduo [5] juridicizada ou não pelo Estado. Na verdade, essa visão acaba deixando evidente a ideia de um indivíduo isolado da comunidade, exercendo essa esfera de liberdade com raízes no estado de natureza, como se a liberdade fosse um elemento extrajurídico ou estranho ao Estado.

Terceiro, porque a liberdade que não está ligada a valores constitucionais equivale a arbitrariedade [6]. Com efeito, como autorizaria dizer Hans Kelsen [7], o descumprimento da lei que proíbe o furto não aniquila, mas a ratifica, ao contrário da apologia à ditadura, que aniquila a Constituição e a própria essência ou razão de ser da liberdade de expressão.

Afirmar que a apologia à ditadura está coberta pela liberdade de expressão não só aniquila a Constituição que a proíbe, mas a própria liberdade, até porque o abuso de um direito o descaracteriza como tal [8].

Portanto, não há liberdade geral de ação para atentar contra a democracia, não havendo apoio constitucional para tanto.

 


Referências

BRITO, Edvaldo. Aula ministrada na disciplina Jurisdição Constitucional Comparada e Novos Direitos, no Doutorado em Direito da Universidade Federal da Bahia, em 24 mai. 2021.

HABERLE, Peter. La Garantía Del Contenido Esencial De Los Derechos Fundamentales. Traducción Joaquim Brage Camazano, 1 ed., Madrid, 2003.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução Renato Aguiar, 1 ed., Rio de Janeiro: Zaar.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini, 2 ed., São Paulo: Edipro, 2007.

WALDROM, Jeremy. The Harm In Hate Speech. 1 ed., United States: Harvard University Press, 2014.

 


[1] Aula ministrada pelo Prof. Dr. Edvaldo Brito, na disciplina Jurisdição Constitucional Comparada e Novos Direitos, no Doutorado em Direito da Universidade Federal da Bahia, em 24 mai. 2021.*

[2]LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução Renato Aguiar, 1 ed., Rio de Janeiro: Zaar, 2018, p. 99 e seguintes.

[3] ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini, 2 ed., São Paulo: Edipro, 2007, p. 82.

[5] HABERLE, Peter. La Garantía Del Contenido Esencial De Los Derechos Fundamentales. Traducción Joaquim Brage Camazano, 1 ed., Madrid, 2003, p. 141.

[6] HABERLE, op. cit., p. 37.

[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2018. p. 27.

[8] HABERLE, op. cit., p. 119.

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