Opinião

Patrimonialização da personalidade post mortem por meio da reconstrução digital

Autor

  • Breno Cesar de Souza Mello

    é doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito e Inovação (UFJF) especialista em Direito Empresarial membro do Projeto Direito ao Ponto (Uerj) e pesquisador do Legal Grounds Institute.

5 de janeiro de 2023, 6h33

Nas últimas décadas, tem se intensificado a produção das tecnologias pertencentes ao contexto da chamada "Revolução 4.0", de modo a trazer mudanças profundas nas relações patrimoniais e existenciais, além de marcar uma fase de eliminação das fronteiras físicas e digitais (DAMILANO, 2019). Dentre os inúmeros avanços, destacam-se as tecnologias baseadas em inteligência artificial (IA) e a atual fase de decodificação da vida e de codificação da mesma no universo digital, de modo a criar o corpo humano digital na sociedade hiperconectada.

Diante desse atual estado da arte, diversos fatores instigam a produção e a captura exponencial dos dados pessoais, seja por estímulos oriundos do setor público, como ocorreu durante a política sanitária de prevenção à Covid-19, seja pelas fontes de poder inseridas no âmbito privado. Destarte, afirma-se que essas informações, ao serem capturadas pelas malhas do poder, podem ser utilizadas para diversas finalidades, sobretudo, para cumprir uma agenda de vigilância social e para o uso mercadológico, em especial, nos casos envolvendo a venda dessas informações, para moldar o perfil do usuário e condicioná-lo a usufruir determinados produtos nos sistemas de personalização de compras e vendas.

Ademais, destacam-se os mecanismos baseados em IA responsáveis por digitalizar características humanas, tais como a voz, a imagem, os parâmetros comportamentais e a utilização dessas informações após a morte do indivíduo que serviu como fonte de captação desses dados. Nessa conjuntura, uma das formas de reconstrução tecnológica do de cujos se dará com o uso da chamada deepfake, tecnologia de IA "aplicada para alterar conteúdos originais de vídeos e áudios, com propósito de que pareçam autênticas" (BOTELHO; NÖTH, 2021, p.75).

 Para ilustrar o desdobramento tecnológico supracitado, temos a reprodução de Robert Kardashian falecido em 2003. O fato ocorreu no ano de 2020, quando o cantor Kanye West presentou a sua antiga esposa Kim Kardashian com um holograma do seu pai que interagia e pronunciava algumas frases até então nunca ditas, fazendo juízos de valor sobre situações do presente nunca vivenciadas (REVISTA QUEM, 2020). No Brasil, aconteceu algo bem semelhante no ano de 2021, após a criação de um holograma e reprodução da voz do Ayrton Senna, por meio da IA, durante uma exposição em São Paulo para comemorar o Tricampeonato de Fórmula 1 conquistado pelo piloto (JORNAL NACIONAL, 2021).

Agora, no tocante à reprodução da voz do falecido, neste ano, foi divulgado um aprimoramento da ferramenta Alexa. De acordo com as informações divulgadas, durante a conferência anual Mars foi apresentado ao mundo um novo recurso desse sistema inteligente que permite a leitura de livros com a voz dos seus familiares já falecidos (IG, 2022). Além desse caso, recentemente, uma empresa especializada em tecnologias baseadas em IA, mediante o uso da deepfake, conseguiu recriar a voz do Steve Jobs em um podcast (LISBOA, 2022).

Por essas questões, percebe-se que o corpo humano digitalizado e fragmentado, pode ser reduzido a um mero bem patrimonial. Com uma tendência de ruptura com as normas e institutos que protegem os valores existenciais da humanidade, cria-se, como aspecto negativo, a proliferação da lógica patrimonialista que é responsável por colocar em xeque à dignidade da pessoa digitalizada, para atender os interesses do mercado, ao permitir que o corpo possa ser disponibilizado, renunciado e transmitido no universo digital. 

Ante a tendência pulsante desse processo de patrimonialização do corpo humano e os riscos inerentes de coisificação da humanidade até a sua fração corpórea mais ínfima, Stefano Rodotà (2004), afirma que, embora corpo venha sendo fracionado, fragmentado e a ciência venha decantando os segredos da natureza e relativizando uma possível natureza ontológica da humanidade, é necessário manter o norte de que o corpo é a pessoa, ou seja, proteger todas as dimensões corpóreas representa um mecanismo de proteção à existência da pessoa humana e, por isso, a proteção corpórea deve tratar o corpo como um aspecto único e não gerar um sistema de proteção fracionado.

Com isso, se por um lado há o receio da criação dessas imagens, de vozes sintéticas e de mensagens de texto feitas pela IA que interagem "com" e "como se fossem" humanos, ao manipularem a verdade, também há a necessidade de criarmos mecanismos capazes de neutralizar possíveis desvios desse uso tecnológico que utiliza as imagens, os áudios e outros dados humanos que refletem características identificáveis de pessoas reais.

Assim, com esse aumento de produção dos dados e com o recolhimento dessas informações pelos softwares de inteligência artificial, pouco se sabe sobre os impactos que surgirão sobre os direitos de personalidade (TOMASEVICIUS FILHO, 2018). Para Anderson Schreiber (2014), reconhecer a projeção dos direitos de personalidade após a morte não significa que a legislação e a doutrina buscam conferir uma proteção no plano "fantasmagórico", mas que há o reconhecimento de que, embora alguns direitos como à honra não causem um dano direto ao de cujos, existirão efeitos no meio social em decorrência da violação sobre a honra do falecido. Nas suas palavras:

"[…] a necessidade de se proteger post mortem a personalidade, como valor objetivo, reservando a outras pessoas uma extraordinária legitimidade para pleitear a adoção de medidas necessárias a inibir, interromper ou remediar a violação, como autoriza o artigo 12 do Código Civil (SCHREIBER, 2013, p.25)".

Destarte, havendo esse constante processo de aprimoramento da captação audiovisual dos aspectos humanos inseridos no universo digital, haverá, em contrapartida, um progressivo aumento de lesões geradas pelo uso indevido desses dados, de modo a ferir as dimensões existenciais da pessoa humana, ainda que o titular dos dados tenha falecido. Nessa mesma linha de entendimento, Doneda (2005, p.85), ao refletir sobre os desafios gerados pelas novas tecnologias, afirma que o "desenvolvimento tecnológico e a atual dinâmica social criaram uma demanda de proteção à pessoa humana que deve ser realizada com novos instrumentos e por todo o ordenamento".

Em suma, reconhecida a importância da tutela dessas características e construções sociais e históricas do falecido, foi defendido que a reprodução, que o uso dos dados e do patrimônio digital utilizado nesse processo de recriação deve ocorrer em consonância com alguns parâmetros, quais sejam: 1) autorização expressa do falecido para a utilização e reprodução da sua imagem, voz e outras características, inclusive as emocionais capturadas por meio dessas novas tecnologias; 2) na ausência de legislação regulando o assunto, uma possível flexibilização da autorização expressa, tomando por base a imagem-atributo e outras formas probatórias que comprovem a intenção do falecido; 3) a necessária compreensão desses fenômenos à luz de uma hermenêutica ligada às questões existenciais e não patrimoniais; e 4) uma necessária leitura do corpo humano digital em sua integralidade, de modo a enxergar que a proteção do todo ou em parcelas desses dados pessoais estão diretamente ligada à dignidade da pessoa humana.


Referências

BOTELHO, Thaïs Helena Falcão; NÖTH, Winfried. Deepfake: Inteligência Artificial para discriminação e geração de conteúdos. Teccogs  Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, nº 23, jan./jun. 2021, p. 69-78.

DAMILANO, C. T. Inteligência artificial e inovação tecnológica: As necessárias distinções e seus impactos nas relações de trabalho. [s.l.], 2019. DOI 10.34117/bjdv5n10-200.

DONEDA, Danilo. Os direitos de personalidade no Código Civil. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VI, Nº6, junho 2005.

IG TECNOLOGIA. Amazon demonstra Alexa imitando vozes de parentes mortos, 2022. Disponível em: https://tecnologia.ig.com.br/2022-06-23/amazon-alexa-imita-voz-parente-morto.html. Acesso em: 09 jul. 2022.

JORNAL NACIONAL. Exposição reaproxima o público de Ayrton Senna, um dos maiores ídolos do esporte. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/10/11/exposicao-reaproxima-o-publico-de-ayrton-senna-um-dos-maiores-idolos-do-esporte.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2022.

LISBOA, Alveni. Deepfake permite que "Steve Jobs" conceda entrevista 11 anos após sua morte. Canaltech, 2022. Disponível em:  https://canaltech.com.br/inteligencia-artificial/deepfake-permite-que-steve-jobs-conceda-entrevista-11-anos-apos-sua-morte-227579/. Acesso em: 21 out. 2022.

REVISTA QUEM. Kim Kardashian ganha holograma do pai como presente de Kanye West. Disponível em: https://revistaquem.globo.com/QUEM-News/noticia/2020/10/kim-kardashian-ganha-holograma-do-pai-como-presente-de-kanye-west.html. Acesso em: 08 jul. 2022.

RODOTÀ, Stefano. Transformações no corpo. Revista Trimestral de Direito Civil: RTDC, nº 19. Rio de Janeiro, p. 65-107, 2004.

SCHREIBER, Anderson. Direitos de Personalidade. 2. Ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Atlas. 2013.

TOMASEVICIUS FILHO, E. Inteligência artificial e direitos da personalidade: uma contradição em termos?. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [S. l.], v. 113, p. 133-149, 2018.

Autores

  • é doutorando em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre em Direito e Inovação e em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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