Opinião

Os "pancadões" e a luta por reconhecimento

Autor

  • Fabio Paulo Reis de Santana

    é professor de cursos de pós-graduação doutorando em Direito pela PUC-SP presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB e procurador do município de São Paulo.

4 de janeiro de 2023, 17h16

Axel Honneth sugere, em sua teoria, apresentada na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais [1], que "os motivos da resistência social e da rebelião se formam no quadro de experiências morais que procedem da infração de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas".

O autor alemão prossegue, esclarecendo que "tais expectativas estão ligadas na psique às condições da formação da identidade pessoal, de modo que elas retêm os padrões sociais de reconhecimento sob os quais um sujeito pode se saber respeitado em seu entorno sociocultural como um ser ao mesmo tempo autônomo e individualizado; se essas expectativas normativas são desapontadas pela sociedade, isso desencadeia exatamente o tipo de experiência moral que se expressa no sentimento de desrespeito".

O professor da Universidade de Frankfurt propõe ao leitor uma nova lente pela qual se possa analisar os fenômenos sociais, notadamente os conflitos sociais. Diferentemente dos modelos explicativos utilitaristas, que investigam as resistências sociais a partir da maximização do bem-estar ou do aumento da distribuição de bens na sociedade, Honneth aponta que certas reações sociais nem sempre têm como causa a ampliação do acesso a bens materiais, mas podem decorrer de violação a uma legítima expectativa de reconhecimento sociocultural, o que permite ao intérprete compreender que nem todos os conflitos sociais possuem necessariamente uma causa econômica, podendo ter, muitas vezes, uma causa moral.

É imbuído dessas ideias que se apresenta uma breve leitura dos denominados "pancadões".

Por "pancadão", intitulam-se as festas de rua com aglomerações, em geral, de jovens, sob o ritmo musical de funk, em volume acima do permitido por lei, emitidos a partir de automóveis ou de aparelhos de som acoplados à carroceria ou rebocados por veículos [2].

O estado de São Paulo, por meio da Lei Estadual n° 16.049/2015, proíbe a realização dos "pancadões", impondo pena de multa, em caso de descumprimento, e a apreensão provisória do aparelho de som ou do veículo, em caso de recusa de atendimento da ordem de abaixar o volume, ficando a cargo da Polícia Militar a competência para fiscalização e controle dos limites máximos permitidos de intensidade de emissão dos ruídos sonoros, conforme preconiza o Decreto Estadual n° 62.472/2017.

Todavia, a despeito da proibição legal desde 2015, notícias recentes dão conta da persistência dos "pancadões" [3] [4], o que parece indicar uma resistência social  e não meramente individual  à norma imposta pelo Estado.

Assim, analisar o fenômeno dos "pancadões" apenas do ponto de vista da mera transgressão legal  pelo binômio lícito ou ilícito , implica deixar de lado aspectos relevantes para um entendimento mais acurado do fato.

Dessa forma, cabe perquirir uma possível explicação para esse conflito social a partir da compreensão da teoria de Axel Honneth.

Para o autor, os motivos da resistência social derivam da infração de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas na mente de um determinado grupo social, que dizem respeito às condições da própria formação da identidade pessoal.

Portanto, experiências morais de desrespeito podem estar na base de fenômenos sociais como os "pancadões", envolvendo as três esferas de reconhecimento apresentadas pelo autor: 1) porque geralmente ocorrem em regiões mais carentes das cidades, em que o aparato estatal, muitas vezes, não consegue oferecer a gama de serviços públicos necessários a uma vida digna (experiência do reconhecimento jurídico); 2) pela necessidade humana de estima social, que leva em consideração o conceito do indivíduo perante os sujeitos da comunidade, notadamente quando se trata de um público de maioria jovem (experiência da solidariedade); e por conta do desenvolvimento da autoconfiança, decorrente das fortes ligações emotivas com os frequentadores, seja por relações amorosas, seja por relações de amizade (experiência do amor).

Por essas razões, é possível compreender alguns dos motivos por que se torna insuficiente a mera existência de uma lei proibindo a prática dos "pancadões", quando desassociada do incremento substancial da disponibilização de serviços públicos na localidade, que, gradativamente, vão contribuindo para a construção da identidade pessoal dos sujeitos e vão reduzindo as violações às expectativas de reconhecimento dos grupos sociais destinatários das ações estatais.

 


[1] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. tradução de Luiz Repa. apresentação de Marcos Nobre. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 258.

[2] G1. Entenda os "pancadões", fenômeno do funk que é febre nas periferias de São Paulo. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/12/08/entenda-os-pancadoes-fenomeno-do-funk-que-e-febre-nas-periferias-de-sao-paulo.ghtml. Acessado em 26/12/2022.

[3] Estúdio Alesp. Entrevista do dia 16/12/2022. Disponível em: https://youtu.be/SR3nCeycvFs. Acessado em 26/12/2022.

[4] R7. "Pancadões" se espalham por regiões de São Paulo e tiram o sossego de moradores. Disponível em: https://noticias.r7.com/jr-na-tv/videos/pancadoes-se-espalham-por-regioes-de-sao-paulo-e-tiram-o-sossego-dos-moradores-12102022. Acessado em 26/12/2022.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB.

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