Opinião

A pandemia justifica a prorrogação de concurso para além do teto de 4 anos?

Autor

  • Leonis de Oliveira Queiroz

    é mestre em Regulação e Políticas Públicas especialista em Direito Público graduado em Direito e Segurança da Informação ex-conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal servidor do Superior Tribunal de Justiça e autor de artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

1 de janeiro de 2023, 7h17

A resposta é seguramente negativa.

Com efeito, a Constituição Federal vigente estabelece como prazo máximo de validade dos concursos públicos o período de quatro anos, autorizando uma validade inicial de dois anos, prorrogável por igual período. Confira-se o texto do dispositivo constitucional: "o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período".

Não há dúvidas de que a Lei Máxima prevê expressamente o limite bienal de validade dos concursos, podendo ser prorrogado, mas desde que respeite o teto de quatro anos.

Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, inclusive. À luz da jurisprudência do STF, é proibido prorrogar um concurso público para além dos quatro anos previstos na Constituição Federal, visto que "A partir de quatro anos da homologação do resultado, cessa a eficácia do concurso público, não mais podendo ser nomeados os candidatos remanescentes, à vista da ordem de classificação" [1].

Nesse mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça já pacificou que:

"(…) Nos termos do artigo 37, III da Constituição Federal e do artigo 12 da Lei nº 8.112/90, o prazo de validade de concurso público será de até dois anos, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período. Os comandos citados traduzem normas balizadoras, ou seja, estabelecem o limite máximo para validade de certame público. Desta forma, compete ao Administrador, na aferição da conveniência e oportunidade administrativas, estabelecer o prazo de validade do concurso, respeitando-se, contudo, a norma Constitucional" [2].

"(…) O prazo de validade dos concursos públicos é de quatro anos, consoante o disposto no artigo 37, III, da Constituição Federal, contados a partir da data de sua homologação, não podendo ser prorrogado por período superior a dois anos, sendo, assim, válidas, todas as nomeações ocorridas durante esse lapso temporal, desde que observado o prazo limite, não existindo obrigatoriedade de que a prorrogação deva ser contínua ou subseqüente ao primeiro período fixado, ao talante da Administração, a faculdade de prorrogação do concurso" [3].

Isso significa que a administração pública não pode usar de subterfúgios para nomear candidatos aprovados no período subsequente ao prazo máximo de validade do certame, sob pena de ferir a constituição, e praticar um ato nulo de pleno direito, que não existe no mundo jurídico e que tem como consequência o seu imediato desfazimento por quem de direito.

Mas e o período de calamidade pública, como a pandemia de coronavírus que assolou o mundo, constituiria uma situação excepcional para autorizar a validade de um concurso para além do teto constitucional, e ainda se apontar a famigerada supremacia do interesse público? É óbvio que não. O interesse público é ver a Constituição respeitada.

E a própria Constituição Federal oferece ao administrador público a providência para atender ao período de urgência, inclusive com fundamento no mesmo artigo 37. Trata-se da previsão contida no inciso IX, cujo teor é o seguinte: "a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público".

Acerca da possibilidade de contratação temporária, o Pleno do STF, nos autos da ADI nº 3.721/CE, relator ministro Teori Zavascki, DJe: 12/8/2016 reconheceu

"Válida a contratação temporária, quando tiver por finalidade evitar a interrupção da prestação do serviço, isso sem significar vacância ou a existência de cargos vagos. Assim, a contratação temporária de terceiros não constitui, pura e simplesmente, ato ilegal  nem é indicativo da existência de cargo vago, para o qual há candidatos aprovados em cadastro reserva , devendo ser comprovada, pelo candidato, a ilegalidade da contratação ou a existência de cargos vagos".

De certo que é muito mais dispendioso para a administração pública nomear aprovados para cargo efetivo, sob a justificativa de excepcional urgência, que fazer a contratação temporária, cujo vínculo possui natureza jurídico-administrativa com a Administração pública, não ocorrendo sequer a transmutação para relação de trabalho de natureza trabalhista.

A propósito:

"Ademais, a prova dos autos demonstra que as contratações temporárias foram motivadas por situação de calamidade pública (artigo 37, IX, CF/88), hipótese que gera ao Estado uma vinculação jurídica precária, bastante diferente daquela mantida com o servidor efetivo, de natureza permanente. Precedente" [4].

Não pode a administração pública deixar de observar todos esses mandamentos constitucionais, para editar uma lei "justificada" na lamentável pandemia, mas cuja aparência de constitucionalidade, revela, na verdade, uma tentativa de ampliar indevidamente aquilo que a Constituição Federal decidiu limitar.

Em face da hierarquia das normas, não pode uma lei distrital, portaria ou decreto contrariar a Constituição Federal, sob qualquer pretexto, pois, conforme pacificou o Plenário do STF:

"(…) a edição de leis de ocasião para a preservação de situações notoriamente inconstitucionais, ainda que subsistam por longo período de tempo, não ostentam o caráter de base da confiança a legitimar a incidência do princípio da proteção da confiança e, muito menos, terão o condão de restringir o poder da Administração de rever seus atos" [5].

Nesse julgado, a Corte Suprema destacou que "A inconstitucionalidade prima facie evidente impede que se consolide o ato administrativo acoimado desse gravoso vício em função da decadência".

Assim, a lei que supostamente permite a vigência do concurso público para além do teto constitucional de quatro anos, viola expressamente texto da Constituição Federal, tornando o ato de prorrogação nulo de pleno direito, jamais podendo ter seus efeitos consolidados, seja sob o pretexto da pandemia ou de qualquer outro.

A propósito, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconheceu por unanimidade, a natureza decadencial do prazo previsto no artigo 37, da CF/88, consignando, naquela oportunidade, a impossibilidade de sua modificação por lei infraconstitucional [6]. Nesse precedente, o CNJ determinou a exoneração de todos os que foram nomeados em desacordo com o teto constitucional.

Em matéria cível, prevalece a máxima de que os prazos decadenciais não se suspendem e nem se interrompem, conforme dispõe o artigo 207 do Código Civil, que ostenta o seguinte teor: "Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição".

Assim, não há "maquiagem" que justifique a prorrogação de concurso público para além dos quatro anos) previstos na Constituição Federal. Revela-se inadmissível proteger a perpetuação de ato que, desde seu nascedouro, afronta texto expresso da Carta Magna, máxime o princípio da força normativa da Constituição (ou princípio da máxima efetividade), e a premissa de que uma situação excepcional não se presta a justificar leis ou atos administrativos inconstitucionais.

 


[1] STF. Mandado de Segurança nº 21.422, relator ministro NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, DJ 2/4/1993.

[2] STJ. Recurso em Mandado de Segurança nº 14.231/DF, relator ministro Gilson Dipp, 5ª Turma, DJ de 2/8/2004.

[3] STJ. Recurso em Mandado de Segurança nº 3.569/BA, relator ministro Anselmo Santiago, 6ª Turma, DJ de 13/10/1998.

[4] STJ. RMS nº 39.271/TO, relator ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 15/10/2013, DJe de 22/10/2013.

[5] STF. Mandado de Segurança nº 26.860, relator ministro LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe  23/9/2014.

[6] "Conselho Nacional de Justiça. PCA nº 0000404-37.2007.2.00.0000: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. CONCURSOS PÚBLICOS REALIZADOS PELO TJ/MT NOS ANOS DE 1998 E 1999. PORTARIA N. 058/2003 SUSPENDENDO O PRAZO DE VALIDADE DOS CONCURSOS. ILEGALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 37, II, DA CF/88. NOMEAÇÃO DE CANDIDATOS APÓS PRAZO DE VALIDADE DOS CERTAMES. ANULAÇÃO. PEDIDO PROCEDENTE. (…). 2. A disposição contida no inciso II do artigo 37 da CF/88 prevê taxativamente que o prazo de validade de concurso público pode ser de até dois anos, prorrogável por mais dois anos. Este prazo é decadencial, não admitindo sua suspensão prorrogação ou interrupção por meio de norma infraconstitucional. A Portaria nº 58/2003, que determinou a suspensão do prazo de validade dos concursos regidos pelos Editais ns. 028/98, 029/98, 033/98 e 14/2000/NSCP desconsidera a natureza decadencial o prazo de validade do concurso e, consequentemente, viola de modo direto e flagrante o disposto no artigo 37, II, da Constituição Federal. Ato desprovido de validade e eficácia jurídica e que não gera efeitos jurídicos. 4. Pedido que se julga procedente para declarar a nulidade dos atos de nomeação dos candidatos aprovados nos concursos regidos pelo Edital nº 028/98, nº 029/98, nº 033/98 e nº 14/2000/NSCP levados a efeitos após o término do prazo de validade dos Certames, bem como para determinar ao TJ/MT que adote as providências necessárias à exoneração dos servidores nomeados ilegalmente".

Autores

  • é conselheiro suplente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal (Copen-DF), servidor do Superior Tribunal de Justiça, especialista em Direito Público (Faculdade Fórtium) e mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB).

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