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Evolução normativa e jurisprudencial dos temas de Gambling no Brasil

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27 de fevereiro de 2023, 10h01

Um petardo que parece ainda assombrar alguns: no Brasil, jogos de fortuna ou azar — denominação a gosto do freguês — não são ilegais; lato sensu. Em verdade, ou são monopolizados pelo Estado (loterias) ou são autorizados por este (apostas turfísticas) ou estão em vias finais de regulamentação (apostas fixas).

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Jockey Club Brasileiro, na Gávea (RJ)
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O supradito petardo perde potência e capacidade de assombro na medida em que compilamos a legislação específica e analisamos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Há previsões normativas antigas e mais recentes na linha do tempo do Gambling tupiniquim.

Por falar em tempo, é preciso dizer que ele foi implacável com a única norma brasileira que restringe os jogos, o Decreto-Lei nº 9215/46[1], no sentido de torná-la anacrônica e em rota de colisão com as evidências de que a melhor forma de controle da atividade é afastá-la da clandestinidade e, de quebra, viabilizar um incremento considerável na teia de arrecadação tributária do Estado, que perde cerca de R$ 20 bilhões, ao ano.[2]

Não por acaso, a postura de regulação do mercado de jogos e apostas é tendência forte e crescente em uma série de países desenvolvidos. No G20, por exemplo, apenas três países proíbem ou restringem a prática: Brasil, Arábia Saudita e Indonésia.

Ainda, há componentes históricos e sociológicos extremamente relevantes, que conduzem uma parcela significativa da população preferir atividades com aspecto lúdico-aleatório.

No ambiente doméstico, essas preferências são de conhecimento pleno do Estado, que as explora, com sucesso, através de diversas modalidades de loterias, sob a forma de monopólio.

Atualmente há dez tipos de jogos diferentes administrados pela Caixa Econômica Federal: Milionária; Mega Sena; Quina; Lotomania; Lotofácil; Loteca; Timemania; Dupla Sena; Dia de Sorte e Super Sete. Juntas, elas marcaram recordes no ano de 2021 e o volume de venda de jogos foi o maior da história: R$ 18,5 bilhões em todas as modalidades de jogos, 8,2% superior ao recorde anterior, de R$ 17,1 bilhões, em 2020[3]

As loterias, em operação contínua no RJ; MG, CE e PB, tendem a se proliferar para os demais entes federados, diante do entendimento sobre a possibilidade de sua exploração em decisões proferidas pelo STF[4], a partir de 2020.

As apostas sobre corridas de cavalos em locais autorizados estão previstas na Lei nº 7291/84, e são a primeira exceção ao monopólio do Estado, pois sua exploração pode ocorrer mediante autorização outorgada a entidades turfísticas.

Já as apostas esportivas por quota fixa (fixed odd betting) foram legalizadas em 2018, com o advento da Lei nº 13.756/2018, que ainda aguarda publicação do seu Decreto regulamentador.

Isto posto, buscar-se-á apresentar um panorama das questões mais relevantes de cada uma dessas modalidades de jogo e aposta, além de algumas nuances sobre aquelas e suas operações, sem pretensão de esgotar a matéria.

Quanto ao turfe, a palavra de origem inglesa designou as primeiras corridas de cavalo da raça Puro Sangue Inglês, por volta do século 17. No Brasil, a prática esportiva chegou no século 19, quase sempre taxado como um esporte de elite.

As entidades turfísticas operam no Brasil, com regulação através de concessão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio de Carta Patente. O artigo 17 do Decreto n◦ 96.993/88 definiu as apostas em competições turfísticas, como todas as modalidades de jogos a dinheiro efetuadas sobre corridas de cavalos, patrocinadas por entidades legalmente autorizadas, nelas também compreendendo-se os concursos, jogos lotéricos, remates ou leilões de apostas.

Talvez por ser um esporte com pouco apelo popular, não se identificaram discussões efetivas no sentido de buscar a sua modernização, razão pela qual, na legislação, permanecem vigentes as regras esquadrinhadas quando do seu nascedouro em nosso país.

A discussão judicial que mereceu destaque se iniciou a partir de uma execução fiscal perpetrada pelo município do Rio de Janeiro, em desfavor do Jockey Club Brasileiro, para cobrança de cerca de R$ 130 milhões, a título de ISS (Imposto Sobre Serviços). O município pretendia receber o crédito tributário englobando, na sua base de cálculo, todas as receitas auferidas com as apostas (turnover).

O relator do Recurso Extraordinário nº 63.4764 no STF, ministro Gilmar Mendes, concedeu liminar para suspender a cobrança. Doravante, o Supremo reconheceu a repercussão geral da questão constitucional ali tratada (Tema 700) e julgou o mérito no ano de 2020.

No acórdão, foram apreciadas duas questões constitucionais. A primeira delas se referia ao fato de ser ou não constitucional a incidência de ISS sobre exploração da atividade de apostas. E a segunda visava saber qual a base de cálculo do tributo do serviço de exploração de jogo e se nela seria possível incluir o valor integral da aposta ou apenas o valor dos bilhetes ou ingressos, ou ainda sobre outra base tributável.

O RE transitou em julgado no mês de outubro de 2021, sendo fixada a seguinte tese no tema 700:

"É constitucional a incidência de ISS sobre serviços de distribuição e venda de bilhetes e demais produtos de loteria, bingos, cartões, pules ou cupons de apostas, sorteios e prêmios (item 19 da Lista de Serviços Anexa à Lei Complementar 116/2003). Nesta situação, a base de cálculo do ISS é o valor a ser remunerado pela prestação do serviço, independentemente da cobrança de ingresso, não podendo corresponder ao valor total da aposta."

A decisão reflete maior segurança jurídica ao operador pois afastou a possibilidade de alargamento da base de cálculo do imposto para além daquela que não se vincule diretamente ao serviço. Estima-se que as apostas turfísticas movimentem cerca de R$ 300 milhões, anualmente[5].

Já para as loterias verificou-se o maior avanço do ponto de vista de ampliação e pulverização das suas operações. Isso se deu muito mais por conta do Poder Judiciário do que pelos demais Poderes. Quase toda a legislação recente sobre loterias tem como vetor as decisões proferidas no STF, em virtude do julgamento das ADPFs nº 492 e nº 493 e da ADI nº 4986.

O STF entendeu de forma unânime, em 2020, que a União não detém monopólio na exploração, embora detenha a competência privativa para legislação. Segundo o Tribunal, os artigos 1º e 32 do Decreto-Lei 204/67 não foram recepcionados pela CF/88 e colidem frontalmente com o seu artigo 25, §1◦.

O raciocínio dos votos proferidos direciona para o exercício da competência residual por parte dos Estados. Os Municípios foram citados no julgamento a título obiter dictum, sem referência expressa desses entes federativos nos dispositivos dos Acórdãos, o que serviria para não lhes contemplar diretamente com a decisão. Considerando que já há leis municipais tratando da instituição de suas loterias, é possível haver nova judicialização.

As decisões possuem grande impacto, pois os julgados viabilizam mais um serviço público, que, consequentemente, assegura fonte de arrecadação. Estima-se que a arrecadação de loterias no Brasil gira em torno de 0,2% do PIB, em média, enquanto em países similares chega a 1%.

Desde o trânsito em julgado das decisões os Estados se movimentam para implementar suas loterias. Além dos citados mais acima, os Estados do MA, MS, PA, TO, AC, AM, ES, SP, PE, GO e o DF; trilham formatos de implantação, para explorar esse serviço público gerador de receitas tributárias.

Sob outra ótica, já não é novidade que atividade de apostas por quota fixa — Apostas Esportivas ou Sports Betting Fixed Odds — foi legalizada no Brasil a partir da promulgação da Lei nº 13.756/2018 a qual ainda aguarda regulamentação pelo Ministério da Economia.

Nessa modalidade, há três atores envolvidos com a entrega da experiência ao seu destinatário final, que sempre será o apostador. São eles: os operadores (casas de apostas); os fornecedores que viabilizam a operação (plataformas, streaming, dados, odds, meios de pagamento) e as instituições reguladoras e de integridade.

Também se trata de um serviço público que pode ser autorizado ou concedido em favor de particulares. A escolha do regime de delegação trará desdobramentos diversos, facilitando ou não a obtenção da licença de operação, além de interferir na modulação do ambiente concorrencial.

Importante registrar a recomendação para inclusão das apostas por quota fixas no Programa de Parcerias de Investimento da República (PPI) e no Plano Nacional da Desestatização, devidamente acompanhados pelo BNDES e pelo Ministério da Economia[6].

Por conta dessas nuances, algumas definições sobre tributação foram redefinidas pela Lei nº 14.183/21, de modo a promover melhor viabilidade econômico-financeira. O conceito do GGR (Gaming Gross Revenue) inspirou a alteração da legislação para determinar o cálculo do Imposto de Renda e da CSLL, devidos pelo operador.

O GGR reflete a diferença entre o volume total de apostas/jogos realizados subtraído o valor dos prêmios pagos. Para o recolhimento do PIS e da Cofins, permanece a base de cálculo alargada que considera o Turnover, que é o volume total de dinheiro gasto pelos apostadores nos jogos ou apostas.

A Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia divulgou informe sobre a Lei nº 14.183/21, que alterou o capítulo da Lei nº 13.756/2018, dedicado à modalidade lotérica de Apostas de Quota Fixa (AQF), o que se fez necessário para a compreensão do negócio, que não deve afastar das diretrizes operacionais consagradas pelo mercado em diversos países, de modo a manter atrativo o negócio e, claro, estimular a boa concorrência.

No que toca ao imposto pago pelo apostador, tem-se que a tributação sobre o prêmio recebido advindos de sites hospedados no exterior já havia sido objeto de solução de consulta perante a Receita, antes mesmo da promulgação da Lei nº 13.756/18, restando consignada a obrigatoriedade do recolhimento de imposto de renda, por parte do afortunado. Disse a Receita, na Solução de Consulta 61, que os referidos rendimentos estão sujeitos à tributação sob a forma de recolhimento mensal obrigatório.

Quanto à base de cálculo, a consulta registra que deverá corresponder à soma dos ganhos auferidos pelo consulente, não havendo previsão legal para a dedução, na apuração da base de cálculo, de eventuais perdas nas apostas.

O artigo 31 da Lei nº 13.756/2018, editada posteriormente à consulta supra, prevê que sobre os ganhos obtidos com os prêmios pagos pelas apostas esportivas, incidirá tributação de 30% mediante desconto na fonte pagadora, para ganhos a partir de R$ 1.903,99.

Na esteira da judicialização, não identificamos a existência de maiores acerca da legislação editada a partir de 2018, ou mesmo do já vasto normativo recorrente.

Especula-se que com o fim do prazo previsto para a regulamentação, encerrado em dezembro de 2022, o Poder Judiciário seja chamado a se pronunciar sobre eventual inércia ou lacuna, ou mesmo sobre o status de operadores que tenham se movimentado para estruturar e investir no mercado nacional a partir da publicação da lei, em 2018.

Distante do ambiente especulativo, volta-se ao protagonismo do Judiciário, agora sob o viés do direito penal/contravencional, para tocar os ditos jogos de azar, especificamente quanto ao Tema 924 do STF — RE, em que se discute a recepção do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), pelo qual tipificada a exploração ou o estabelecimento de jogos de azar como contravenções penais.

O julgamento estava pautado para o mês de março de 2022, mas foi excluído do calendário de julgamento pela Presidência do Tribunal.

Não se perca de vista ainda a aprovação do relevante marco regulatório dos jogos (PL 441/91) pela Câmara dos Deputados, no mês de fevereiro de 2022 que permanece em discussão no Senado. Tramitam ainda no Congresso o PL 186/14 e os PLS 595/15; 2648/19 e 4495/20 visando ampliar a regulamentação para outras modalidades de jogos e casinos, em resorts integrados.

Eventual aprovação pelo Congresso de um arcabouço legal maduro legitimará o mercado e contribuirá para a unificação de uma legislação conectada com a realidade atual, de modo a viabilizar um ambiente concorrencial saudável, com maior segurança jurídica e a possível redução da judicialização.

É preciso admitir que vivemos uma tendência de "gameficação" da vida até mesmo em situações cotidianas, que resulta no uso de ferramentas virtuais para execução de tarefas das mais variadas.

Logo, salta aos olhos a profusão de jogos e apostas online, numa internet que já detém a tecnologia necessária para plataformas cada vez mais seguras e confiáveis, aptas a exercer o fundamental papel na implantação das políticas de integridade das operações, e ainda no monitoramento de eventuais distorções de comportamento dos apostadores. O jogo responsável é um dos pilares para um mercado probo.

A Secap (Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria), órgão do Ministério da Economia responsável pela regulação, trabalha com rigorosos critérios testados e aprovados internacionalmente e protocolos no padrão da OCDE. Destaque para a série de audiências públicas realizadas para escancarar as regras mediante interlocução franca com os mais diversos setores da sociedade civil. O Brasil aprendeu com os erros e acertos de outros países, o que o coloca numa situação altamente favorável para o incremento da economia nacional.

O jogo faz parte da história e da natureza do ser humano. O mercado de jogos e apostas tem uma pujança inegável e prospera sempre que bem regulado.

Com esse artigo, espera-se ter contribuído para demonstrar uma tendência cada vez mais clara de que o Estado brasileiro deve avançar na regulação, controle e difusão desse mercado que tem muito a contribuir, seja através da cadeia produtiva, ou no fomento dos esportes em geral. Soa temerário negligenciar uma receita tributária anual de R$ 20 bilhões.

Sendo o Brasil um dos últimos países a regular e legalizar os jogos, houve oportunidade e tempo suficiente para absorver as boas práticas em modelos e expurgar os ruins. Os erros do passado não devem comprometer o presente e muito menos aniquilar o futuro.

“At gambling, the deadly sin is to mistake bad play for bad luck.”
Ian Fleming

 


[1] O referido Decreto restaurou a vigência do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais

[2] Fonte: www.institutojogolegal.com.br

[3] Fonte: https://caixanoticias.caixa.gov.br/noticia/27874/loterias-caixa-batem-todos-os-recordes-em-2021

[4] ADPFs 492; 493 e ADI 4986

[5] Fonte: www.institulojogolegal.com.br

[6] RESOLUÇÃO Nº 134, DE 10 DE JUNHO DE 2020 Opina pela qualificação da desestatização do serviço público de loteria denominado Apostas de Quota Fixa no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI e pela sua inclusão no Programa Nacional de Desestatização – PND.

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