Opinião

Retroatividade da norma mais benéfica no direito administrativo sancionador ambiental

Autores

26 de fevereiro de 2023, 17h15

Com a aprovação da Lei 14.285 de 2021, os municípios passaram a ter competência para definir a sua faixa marginal de APP (Área de Preservação Permanente) de curso d'água natural, disposição que anteriormente era prevista no Código Florestal, no qual foi instituída uma faixa não edificável que varia entre 30 e 500 metros da margem de rios e córregos [1].

Essa mudança possui repercussões penais e administrativas, pois uma região considerada APP pode perder essa classificação após o processo de adequação realizada pelo município. Uma reflexão interessante diz respeito aos eventuais efeitos nas autuações, motivadas por intervenção em Áreas de Preservação Permanente, nos casos em que o município posteriormente alterou a metragem da faixa marginal de curso d'água natural.

O Decreto 6514 de 2008, que regulamenta as infrações ambientais, possui cinco artigos que tratam de APPs: 43, 44, 45, 48 e 74 [2]. Tomando o artigo 43 como exemplo, temos que configura-se como infração administrativa "Destruir ou danificar florestas ou demais formas de vegetação natural ou utilizá-las com infringência das normas de proteção em área considerada de preservação permanente, sem autorização do órgão competente, quando exigível, ou em desacordo com a obtida".

O conceito de Área de Preservação Permanente não é definido no Decreto 6514 de 2008, de forma que a aplicação da sanção exige uma complementação. Essa complementação recebe na doutrina o nome de "assessoriedade", sendo o caso em que outra norma empresta conceitos e definições para garantir a aplicabilidade de determinado instituto, como no caso de uma infração [3].

No Direito Ambiental a ocorrência dessa complementaridade é bastante comum, principalmente devido à natureza multidisciplinar da área, que costuma ser regrada por normas tidas como "inacabadas" e que exigem apoio de outros atos legais e infralegais, citando-se, a título de exemplo, as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. 

Com o novo regime das APPs instituído em 2021, para a aplicação das sanções do Decreto 6514 de 2008 é preciso, além da verificação da complementação do Código Florestal, também se atentar às metragens instituídas no município onde o ato foi realizado, tendo em vista a possibilidade de instituição de metragens diferenciadas.

Para verificar as implicações da nova lei, são três as questões que precisam ser analisadas: 1) A possibilidade de retroatividade; 2) A aplicação da retroatividade nos casos de alteração das normas complementares; e 3) a incidência dessa retroatividade no direito administrativo sancionador. 

No Direito Penal, nos casos em que houver reforma normativa, incide o princípio da retroatividade da lei mais benéfica. O princípio foi incorporado no nosso ordenamento através no artigo 9º do Pacto de São José da Costa Rica, o qual dispõe que "(…) Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se", estando previsto constitucionalmente no artigo 5º, inciso XL nos seguintes termos: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". No âmbito infralegal, o Código Penal Brasileiro também tratou da retroatividade no parágrafo único do artigo 2º, afirmando que "a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado" [4] [5].

Apesar das três disposições tratarem da incidência no Direito Penal, não mencionando o Direito Administrativo Sancionador, a retroatividade da lei mais benéfica deve ser entendida tanto como um direito fundamental, como um princípio geral e implícito do direito administrativo [6]. Essa afirmação decorre do reconhecimento da interseção entre a seara penal e administrativa sancionatória [7], e também das garantias constitucionais expressas que objetivam assegurar estabilidade institucional e a segurança jurídica das relações punitivas [8] [9].

Ao se debruçar sobre o tema da retroatividade no direito administrativo sancionador, apesar de não tratar especificamente sobre a matéria ambiental, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que "[…] A retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. […] Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja:  a lei mais  benéfica  retroage.  Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa" [10].

Um segundo debate decorre da aplicação do princípio quando uma norma complementar é atualizada. Quer dizer, a lei se mantém formalmente igual, mas seu complemento é alterado. Nesses casos é preciso verificar se o conteúdo da alteração normativa gerou uma relevante transformação normativa, alterando assim a aplicação da norma e gerando uma mudança de conteúdo, ou seja, material [11].

Voltando para o exemplo do artigo 43 do Decreto 6514 de 2008, incidirá na infração o administrado que "destruir ou danificar" vegetação em Área de Preservação Permanente. Caso a intervenção e a autuação tenham ocorrido em 2020, antes da vigência da Lei 14.285 de 2021, a faixa marginal de curso d'água natural terá uma metragem entre 30 e 500 metros, a depender da largura do rio ou córrego. Porém, se o município tiver alterado a faixa depois desse período, não necessariamente o local da intervenção deverá ser considerado uma Área de Preservação Permanente.

Nesse caso, estaríamos diante de uma mudança que, sem dúvidas, gerou uma transformação normativa relevante. O núcleo central da infração contida no artigo 43 é a proteção das Áreas de Preservação Permanente, sendo que a mudança na norma complementar descaracterizou o que é ou não definido como Áreas de Preservação Permanente. Incidirá, portanto, o princípio da retroatividade da norma mais benéfica, devendo acarretar na reforma ou anulação do auto de infração ambiental.

Em relação aos possíveis momentos de aplicação do princípio, não se deve fazer distinção em relação às hipóteses de ocorrência no Direito Penal. No âmbito penal a norma irá retroagir e será aplicada imediatamente aos processos em julgamento, aos crimes cuja perseguição ainda não se iniciou e, também, aos casos já encerrados por decisão transitada em julgado. Trazendo para o direito administrativo sancionador, devem ser impactados os procedimentos prévios à autuação, processos aguardando julgamento e, inclusive, os recursos pendentes de análise.

A natureza do processo administrativo sancionador exige uma aproximação com os princípios constitucionais que orientam o direito e processo penal, inclusive no tocante à incidência da retroatividade da norma mais benéfica. Essa implicação afeta tanto as alterações ocorridas diretamente no texto legal, como as mudanças em normas complementares.

O novo regime de definição das faixas marginais de Áreas de Preservação Permanente de curso d'água natural possibilita uma revisão dos processos penais e administrativos que envolvem a tutela desse espaço especialmente protegido, devendo ser esse um dos temas de debate nos órgãos ambientais e no judiciário nos próximos anos, tanto no tocante à incidência ou não do princípio, como nas implicações nos processos administrativos em curso.

 


[1] A Lei 14.285 de 2021 é considerada uma reação do Congresso Nacional ao julgamento do Tema 1010 no Superior Tribunal de Justiça, julgamento que decidiu pela prevalência do Código Florestal em relação a Lei de Parcelamento do Solo Urbano no tocante a definição da faixa marginal de Áreas de Preservação Permanente de curso d'água natural no perímetro urbano. Sobre o processo legislativo e o regime instituído pela Lei 14.285 de 2021, consultar: COSTA, Mateus Stallivieri da. Lei 14.285/2021 e o novo regime das Áreas de Preservação Permanente Urbanas – Entenda os motivos, o que mudou e o que se esperar da nova regulamentação. In: Revista Acadêmica do IBRADIM, V.7, 2022. Já em relação aos efeitos do julgamento do Tema 1010, tanto nos empreendimentos já licenciados com nas áreas ainda não ocupadas, sugere-se: COSTA, Mateus Stallivieri da; BOCCHINI, Caio Henrique; Qual o futuro das Áreas de Preservação Permanentes de curso d’água? STJ finaliza o julgamento do Tema 1010 e define o afastamento de rios e córregos. Portal Direito Ambiental.com, 2023. Disponível em: https://direitoambiental.com/qual-o-futuro-das-areas-de-preservacao-permanentes-de-curso-dagua/. Acesso em: 14 fev. 2023.    

[2] Artigo 74.  Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Multa de R$ 10.000,00 a R$ 100.000,00. 

[3] Para um maior aprofundamento acerca da assessoriedade no âmbito do direito ambiental, recomenda-se a leitura da seguinte monografia: SANTOS, Raquel Iung. Assessoriedade administrativa no direito penal ambiental e os riscos ao princípio da legalidade penal. 2022. 68 f. TCC (Graduação)  Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/237903/TCC.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 14 fev.  2023.

[4] Sobre o princípio da retroatividade da lei mais benéfica, determinado pela expressão "novatio legis in mellius": SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Novo Regime de Dispensa de Licitação por valor na Lei nº 14.133/2021: consequências criminais e nas ações de improbidade administrativa. Portal Licitação e Contrato. Disponível aqui. Acesso em: 14 fev. 2023; e CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 2014, v. I.

[5]  O Supremo Tribunal Federal, ao abordar o princípio da retroatividade da norma mais benéfica decidiu que "Se a justificativa para a irretroatividade da lei criminal reside na proteção dos indivíduos contra o superveniente aumento no rigor do tratamento penal de um fato, essa razão cai por terra quando a nova lei é benigna ao status libertatis dos cidadãos. O princípio da isonomia impede que dois sujeitos sejam apenados de forma distinta apenas em razão do tempo em que o fato foi praticado, porquanto a valoração das condutas deve ser idêntica antes e depois da promulgação da lei, exceto nos casos em que a legislação superveniente seja mais gravosa.  A lei, expressão da democracia e garante das liberdades individuais, não pode ter a sua incidência manietada quando se trata de favorecer os direitos fundamentais, sendo esse o caso da novatio legis in mellius". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 596.152/SP. Relator: Ricardo Lewandowski. Redator do Acórdão: Ayres Britto. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 13 fev. 2012. Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur204338/false. Acesso em: 04 dez. 2022.

[6] CALDAS, Roberto Correia da Silva Gomes. O direito-garantia fundamental ao devido processo legal administrativo apenatório de trânsito: interpretação in bonam partem e retroatividade irrestrita da jurisprudência e legislação mais benéficas. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), Janeiro-Abril de 2022. Disponível em https://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/25737/60749285. Acesso em: 03 dez. 2022.

[7] FERRAZ, Luciano. Presunção de singularidade tem efeito retroativo. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-nov-19/interesse-publico-presuncao-singularidade-efeito-retroativo. Acesso em: 03 dez. 2022.

[8] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 5. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

[9]  Destaca-se a existência do Projeto de Lei nº 3009/2022, proposto visando a reforma da Lei nº 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo), e que pretende instituir o artigo 68-A com a seguinte redação: Artigo 68-A. A elaboração, interpretação, aplicação e execução de normas de direito administrativo sancionador estão especialmente submetidas à observância dos princípios da retroatividade da norma mais benéfica, contraditório, prévia e ampla defesa, intranscendência da sanção, proporcionalidade, razoabilidade e non bis in idem.

[10] O entendimento foi exarado pelo Superior Tribunal de Justiça por meio do Recurso Especial 1.153.083/MT, julgado em 2014 e que versava sobre a possibilidade de aplicação retroativa da Lei n. 8.881 de 1994, tendo sido relatado pelo Min. Sérgio Kukina: "[…] A retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal.  Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade.  Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.  Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja:  a lei mais benéfica retroage.  Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Por outro lado, concordo com o Senhor Ministro Sérgio Kukina em não adotar a fundamentação apresentada na sentença e no acórdão do Tribunal de origem. Entendo deva aplicar a lei mais benéfica, não com base na aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, mas com fundamento no princípio implícito da retroatividade da lei mais benéfica, extraído do artigo 5º, XL, da Constituição da República, pertinente ao Direito Sancionatório".

[11] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 5. ed. rev., atual. e ampl.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.  

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!