Opinião

A desistência no mandado de segurança: considerações sobre precedente do STJ

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24 de fevereiro de 2023, 18h19

Recentemente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça homologou a desistência de um mandado de segurança formalizado pela parte impetrante, mesmo após a prolação de sentença e acórdão de mérito pelas instâncias de origem [1]. No caso concreto, o ministro Relator Benedito Gonçalves considerou que o Supremo Tribunal Federal havia firmado jurisprudência em sede de Repercussão Geral no sentido de que a parte impetrante poderia desistir da ação a qualquer momento da tramitação processual (desde que antes do trânsito em julgado) e independentemente de anuência da contraparte.

O tema convida a maiores reflexões, por duas razões principais.

A primeira é a de que o Código de Processo Civil traz restrições claras quanto ao direito do autor de desistir da ação: após a apresentação da contestação, a desistência depende de consentimento da parte ré (artigo 485, § 4º – similar à regra que já existia no artigo 267, § 4º do CPC/1973); e ela deve ser apresentada até a sentença (artigo 485, § 5º). Como a Lei nº 12.016/2009, que disciplina o mandado de segurança, não traz regra específica a esse respeito, a aplicação da regra geral do CPC poderia parecer o caminho natural.

A segunda está na própria razão de ser das restrições que existem ao direito do autor de desistir da ação. Afinal, de um lado, após a sua integração ao processo, a parte ré também tem direito à conclusão do feito, que lhe pode ser benéfico e encerrar de forma definitiva o litígio, mormente quando se tratar de provimento jurisdicional de mérito, o qual, em tese, soluciona o direito material em discussão. Nesse caso, a decisão só poderá ser revista (anulada ou reformada) se houver nova decisão, quer no âmbito do mesmo processo (e.g., em sede recursal pelos tribunais), quer em outra demanda judicial (e.g., no caso de ação rescisória). A isso se soma, ainda, a possibilidade de as partes celebrarem acordo, o qual deverá ser homologado por posterior decisão judicial, que substituirá as anteriores. Nesse cenário, admitir a desistência da ação após a sentença e independentemente da anuência do réu pode ser interpretada como uma nova via (não prevista em lei) de superação de decisões de mérito.

À luz dessas ponderações, para bem compreender o caminho adotado pelo STJ, é preciso revisitar o que o STF decidiu no precedente mencionado pela 1ª Turma. Trata-se do Recurso Extraordinário nº 669.367, em que se firmou a seguinte tese de Repercussão Geral: "é lícito ao impetrante desistir da ação de mandado de segurança, independentemente de aquiescência da autoridade apontada como coatora ou da entidade estatal interessada ou, ainda, quando for o caso, dos litisconsortes passivos necessários, a qualquer momento antes do término do julgamento, mesmo após eventual sentença concessiva do 'writ' constitucional, não se aplicando, em tal hipótese, a norma inscrita no art. 267, § 4º, do CPC/1973" (Tema nº 530) [2].

O caso concreto envolvia exatamente a possibilidade de a parte impetrante desistir de seu mandado de segurança após a prolação de sentença de mérito. O relator original do recurso, o ministro Luiz Fux, houve por bem submeter a questão ao rito da Repercussão Geral por entender que a matéria demandava uma pacificação da orientação do tribunal. Afinal, até aquele momento existiam precedentes nos dois sentidos.

O ministro Fux encaminhou seu voto no sentido da ilicitude da desistência do impetrante a qualquer momento. Para ele, o processo jurisdicional configura um instrumento público de solução de controvérsias e não cabe à parte, mesmo em sede de mandado de segurança, decidir de forma unilateral se uma determinada sentença (favorável ou não a ela) deva ou não subsistir. Em seu sentir, o Estado (leia-se: o polo passivo do mandado de segurança) teria direito à imutabilidade da decisão de mérito que lhe seja favorável, caso a parte impetrante não pretenda manejar os recursos e impugnações cabíveis.

A maioria do Plenário do STF, contudo, entendeu de forma distinta. A ministra Rosa Weber inaugurou a divergência por entender essencialmente que o mandado de segurança possui uma sistemática bastante diversa daquela regida pelo CPC, não havendo espaço para aplicação automática da regra sobre a necessidade de prévia anuência do réu após a apresentação de contestação.

Para a ministra, o mandado de segurança é uma ação autônoma de matriz constitucional que foi criada como uma ferramenta de proteção dos particulares contra atos estatais ilícitos. A paridade de armas própria da disciplina processual não teria a mesma aplicação nesses casos: isto é, defende-se que o particular, ao socorrer-se desse instrumento judicial específico, tem garantias e direitos especiais. Isso se comprovaria a partir da análise da própria Lei nº 12.016/2009, que confere certas prerrogativas apenas aos impetrantes, tal como o direito de interpor recurso ordinário (e não recurso extraordinário ou especial) contra acórdãos proferidos em única instância pelos tribunais que denegarem a ordem (artigo 18).

Até porque, em tese, a denegação da ordem ou a desistência pelo particular tem o efeito imediato de submetê-lo ao ato impugnado no writ, o qual, enquanto ato administrativo, é dotado de autoexecutoriedade. Trata-se de situação jurídica distinta de uma relação entre particulares, nas quais, em regra, os sujeitos não conseguem executar sponte sua o próprio direito. Nesse caso, "a razão de ser do artigo 267, § 4º, do CPC [de 1973], deriva dessa inafastabilidade e reside no idêntico direito à tutela jurisdicional que o réu passa a ter, no processo comum, a partir do momento em que integra o processo, em paridade de armas".

Foi essa, então, a conclusão adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 2014 e sedimentada em tese de Repercussão Geral.

Conquanto passível de críticas e eventualmente sujeita a uma reavaliação no futuro, os fundamentos da tese do STF ainda se sustentam. O caráter protetivo da ação mandamental e os atributos dos atos comumente impugnados no writ, por sua especificidade, justificam a não aplicação do óbice processual à desistência da ação nesse caso, que apenas retornaria impetrante e impetrado ao status quo ante, em que o ato impugnado produz seus regulares efeitos. Em outras palavras, não se pode ler o mandado de segurança à luz da legislação ordinária, pois isso desconfigura a própria natureza do instituto.

Isso não significa, entretanto, que a tese firmada pelo STF não pode ser utilizada de forma desleal pelas partes. Conforme ressalva a própria ministra Rosa Weber em seu voto, "qualquer que seja o motivo, não vejo como pressupor a temeridade da desistência da impetração, salvo se já estiverem comprovados, no momento do pedido de desistência, os elementos subjetivo e objetivo configuradores da litigância de má-fé". Além disso, caso a parte aja com deslealdade após a desistência, essa atuação deverá e poderá ser sancionada a partir dos mecanismos previstos no sistema processual.

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[1] STJ, DESIS nos EDcl no AgInt no REsp nº 1.916.374/PR, relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 27/10/2022.

[2] STF, RE 669367, relator(a): Luiz Fux, Relator(a) p/ acórdão: Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 2/5/2013, DJe 30/10/2014.

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