Opinião

STF pode atenuar a insegurança criada nos efeitos da coisa julgada tributária

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23 de fevereiro de 2023, 15h16

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento dos Temas de Repercussão Geral nos 881 e 885, oportunidade em que fixou a tese de que "as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações".

O resultado prático desse entendimento é o seguinte: se um contribuinte obter decisão transitada em julgado (isto é, decisão definitiva, sem possibilidade de ser modificada) que afaste a incidência de determinado tributo ("decisão individual"), mas, posteriormente, o STF proferir decisão vinculante (ou seja, decisão que deve ser seguida pelos demais órgãos do Poder Judiciário [1]) entendendo pela constitucionalidade desse mesmo tributo ("decisão vinculante"), a decisão individual perderá automaticamente seus efeitos.

Frisa-se que, por escolha da maioria dos ninistros (seis votos a cinco), a decisão da Suprema Corte produz efeitos imediatos. Ou seja, segundo o estado atual do julgado [2], os impactos desta decisão não serão objeto de qualquer limitação temporal (modulação de efeitos), podendo o Fisco exigir tributos acobertados por anterior coisa julgada obtida individualmente, desde que respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

A comunidade jurídica tem se manifestado de forma veemente contra o posicionamento do STF, reiterando a necessidade de, no mínimo, serem modulados os efeitos desse novo entendimento da Corte Suprema, sobretudo em razão da insegurança jurídica criada pelo afastamento automático de decisões transitadas em julgado.

Naturalmente, concordamos com todos esses posicionamentos e esperamos que eles sejam reavaliados quando do julgamento dos embargos de declaração que certamente serão opostos em face do acórdão.

No entanto, reconhecendo algum grau de pessimismo destes autores com relação à alteração do entendimento fixado pelo STF, este artigo procura tratar de ponto que pode, ao menos, atenuar a insegurança jurídica criada quando do julgamento dos Temas de Repercussão Geral nos 881 e 885.

É fato que os precedentes advindos dos Tribunais Superiores possuem extrema relevância no sistema jurídico processual brasileiro. Na seara tributária não é diferente. Hoje, a esmagadora maioria das matérias tributárias com grande impacto entre os contribuintes e fisco tem sua solução dada ou pelo STF (em controle concentrado ou sob a sistemática da repercussão geral, quando a matéria é constitucional) ou pelo STJ (em sede de recursos repetitivos, quando a matéria é infraconstitucional). É o que a doutrina chama de sistema de precedentes.

Trata-se de medida que visa a solução de problemas voltados à efetividade, celeridade e sistematização do Poder Judiciário, princípios estes que o CPC/15 buscou homenagear desde a sua concepção [3]. Tal contexto, por exemplo, levou o próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a inserir em seu Regimento Interno dispositivos que assentam a necessidade de observância de julgados vinculantes dos Tribunais Superiores [4].

Portanto, se 1) o sistema de precedentes está implementado no Brasil e 2) as grandes matérias tributárias são como regra julgadas de forma vinculante pelo STJ ou pelo STF, podemos dizer que dificilmente teremos uma decisão individual transitada em julgado em sentido oposto ao entendimento vinculante do STF? Na teoria, sim. Na prática, não.

Isso porque, já houve casos em que o STF se pronunciou pela infraconstitucionalidade de determinada matéria tributária, de modo que o tema seria "definitivamente" julgado pelo STJ (em sede de recursos repetitivos). No entanto, posteriormente, o Supremo "mudou de ideia", contrariando seu próprio entendimento para definir que essa mesma matéria poderia sim ser analisada sob a ótica constitucional.

Esta foi, exemplificativamente, a situação da controvérsia acerca da cobrança de imposto de renda sobre juros incidentes na repetição de indébito tributário. O STF, por anos, decidiu pela infraconstitucionalidade da matéria. O STJ, por sua vez, entendeu, em sede de recursos repetitivos, legítima a incidência do IRPJ/CSLL na hipótese (Tema nº 505), e o STF, reconhecendo de forma superveniente a repercussão geral da matéria, declarou a inconstitucionalidade da cobrança quando do julgamento do Tema nº 962, cerca de oito anos após a conclusão dada pelo STJ.

Na hipótese do aludido julgado, o ministro Gilmar Mendes fez relevante ressalva em seu voto ao aduzir que "Esse proceder  ou seja, de se impor ao STF a reapreciação de constitucionalidade de temas por força de decisão de tribunal a quo — pode conduzir a um revolvimento completo de jurisprudência consolidada perante o Superior Tribunal de Justiça. Em acréscimo, estar-se-á a promover uma constante e completa revisitação de temas cuja infraconstitucionalidade fora julgada por composições anteriores deste Tribunal". Prossegue, rememorando o teor de seu voto no julgamento do RE 614.232 AgR-QO: "Creio que talvez esse episódio suscite e justifique a necessidade de pensarmos criticamente em algumas manifestações que fazemos em torno do caráter constitucional ou infraconstitucional de determinados temas. […] Será melhor que afirmemos claramente que, naquele momento, não há repercussão geral para a matéria constitucional, mas não afirmar a natureza infraconstitucional, porque depois nós vamos ter esse encontro marcado com a história, porque vamos transformar uma matéria que nós consideramos infraconstitucional em matéria constitucional".

Outro exemplo é o julgamento da incidência de contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias. Também respaldado pelo reconhecimento da infraconstitucionalidade do tema pelo STF, o STJ definiu de forma vinculante que a importância paga a tal título teria natureza indenizatória, afastando a incidência da contribuição previdenciária patronal (Tema nº 479). Todavia, cerca de seis anos após a conclusão do STJ, o Supremo reviu seu posicionamento para reconhecer a repercussão geral do tema (Tema nº 985), entendendo posteriormente pela constitucionalidade da exigência.

Portanto, se antes do julgamento dos Temas nºs 881 e 885 da Repercussão Geral, eventual mudança de entendimento do STF quanto à constitucionalidade ou não de determinada matéria, apesar de indesejável, não trazia grandes transtornos aos contribuintes (já que a coisa julgada era sempre respeitada), essa não é uma verdade no cenário atual.

Isso porque, a reapreciação da constitucionalidade de temas pelo STF pode fazer cessar efeitos de uma decisão transitada em julgado com base num julgamento vinculante do STJ (recurso repetitivo), cuja análise da matéria de fundo foi expressa e anteriormente afastada pelo STF, dada sua suposta infraconstitucionalidade.

Para tanto, basta que o STF entenda, posteriormente ao julgamento vinculante do STJ, que a matéria é constitucional, e decida de forma oposta ao que decidiu o STJ.

Dito de outro modo, é razoável admitir que, em situações futuras, contribuintes venham a obter decisão definitiva fundada em entendimento fixado sob a sistemática dos recursos repetitivos no STJ e vejam cessar sua coisa julgada, ante o julgamento superveniente em controle concentrado ou em sede de repercussão geral pelo STF, retomando-se a situação de exigibilidade do montante anteriormente considerado indevido e deixando o contribuinte à mercê de eventual modulação dos efeitos da decisão para não se sujeitar à cobrança retroativa dos valores que deixou de recolher.

Conclui-se, portanto, que se a segurança jurídica não foi prestigiada para fins de manutenção da coisa julgada tributária, que ao menos a Suprema Corte reconheça a importância de tratar com definitividade a análise da constitucionalidade de determinada matéria, sob pena de aumentar (ainda mais) a insegurança jurídica criada quando do julgamento dos Temas de Repercussão Geral nos 881 e 885.


[1] Artigo 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

[2] Certamente serão opostos embargos de declaração em face do acórdão, oportunidade em que o STF poderá modificar seu entendimento, sobretudo com relação à necessidade de modulação dos efeitos desse novo entendimento.

[3] Vide sua Exposição de Motivos: "Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo".

[4] Vide artigos 62, §1º, II, "a" e "b" e §2º, 67, §12, I, II e IV, e 74 §4º.

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