Opinião

Carf e ética fiscal: em busca de uma nova governança tributária

Autor

  • Marcelo Coimbra

    é graduado e mestre em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo). Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Colônia (ALE). Sócio do escritório FCR Advogados.

23 de fevereiro de 2023, 20h38

Com a recente edição da Medida Provisória MP 1.160/23, assiste-se ao ressurgimento da discussão sobre o voto de desempate no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). O novo governo propõe que este voto de desempate pertença novamente ao representante do Fisco, reintroduzindo o conceito de voto de qualidade. Os contribuintes, a seu turno, seguem defendendo a manutenção da atual legislação, que teria prestigiado in dubio pro contribuinte, ao determinar que, no caso de empate, o julgamento é resolvido a favor do contribuinte.

Este é um tema-chave e deve servir de referência para colocarmos o debate sobre tributação em um novo patamar. Já dizia um famoso jurista tributário alemão — Klaus Tipke — a Ciência do Direito Tributário é a Ciência da Justiça Fiscal. Assim, não é nem de um lado a Ciência da Arrecadação Fiscal, nem mesmo do outro a Ciência de Evitar Tributos. A ética fiscal deve permear relação entre Fisco e contribuinte.

A construção da justiça fiscal é uma jornada, que se inicia entre os cientistas do Direito Tributário e se encerra nas disputas fiscais, nas quais um terceiro independente em relação aos polos da relação jurídico-tributária — e, portanto, com legitimidade ética — vem a definir o que é justiça fiscal no caso concreto.

Para tanto, definir a estrutura, funções e composição desses órgãos de aplicação do Direito Tributário (como o Carf) é uma das tarefas mais relevantes da chamada governança tributária.

Considerando a complexidade do sistema tributário, bem como a falta de cultura ética fiscal, o papel dos órgãos que, ao final, definirão o que é a justiça fiscal passa a ser ainda mais central. Uma evidência disto é o grau de litigiosidade e a consequente falta de segurança jurídica para os dois lados da relação jurídico-tributária. Um ambiente ético é um ambiente mais seguro e previsível.

É preciso reposicionar assim esse debate em torno da composição do Carf. Os tribunais administrativos assumem uma função indispensável considerando a especialidade técnica dos temas tributários. Aplicando aqui o princípio da subsidiariedade, ao Poder Judiciário devem ficar reservados os casos que envolvem discussões de alta indagação jurídica (inconstitucionalidade da lei) ou mesmo no caso de erro das decisões do próprio Carf, tendo em visto o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Se partimos desta perspectiva da ética fiscal, a solução para esse debate em torno do voto desempate no Carf parece até óbvia e simples. Como qualquer órgão colegiado, a composição deve ser de número ímpar. Evita-se com isso a evidente artificialidade do voto duplo do presidente da turma.

Para tanto, quem participa do Carf não deve representar um lado, superando-se assim o conceito de paridade, segundo o qual as turmas de julgamento são formadas pelo mesmo número de conselheiros representantes dos contribuintes e representantes fazendários. Fazendo aqui um trocadilho com o mundo do futebol, imaginem se a Federação Paulista determinasse que, para julgar a final de um campeonato entre Palmeiras e Corinthians, fosse criado um tribunal com paridade de representantes do Palmeiras e do Corinthians….qual a chance de isso dar certo? Eu defenderia que a regra de desempate deveria ser a do in dubio pro palestra. Poderia me recorrer até ao Direito Romano para defender essa tese.

Em tempos de governança, vale o princípio segundo o qual quem tem algum potencial interesse deve-se abster de votar. Assim, por conceito, um conselheiro ao ser designado como representante de um dos polos da relação tributária, por mais probo que seja o conselheiro, sobre ele sempre recairá uma suspeita de conflito de interesse. As palavras carregam com si uma simbologia.

Que prevaleça a ética fiscal, ou seja, nem a primazia do interesse público arrecadatório, nem a primazia do interesse de elisão tributária, ambos legítimos, porém parciais. Acabar com o conceito de "conselheiros representantes", quer seja do Fisco, quer seja dos Contribuintes é o início de tudo. Devem estar lá "conselheiros representantes da justiça fiscal".

Que prevaleçam os princípios constitucionais da impessoalidade da Administração Pública e do devido processo legal. O processo administrativo foi erigido ao status de garantia constitucional e, como tal, submete-se ao princípio da imparcialidade.

Daí restaria a questão em torno de quem indicaria os membros do Carf. Defendo uma maior pluralidade de envolvidos neste processo, atribuindo-se a função a diversos órgãos e entidades da área acadêmica (do Direito e da contabilidade) e da sociedade civil (como entidades profissionais), ao poder legislativo e a outros órgãos públicos, como a CVM e Tribunal de Contas.

Pode-se até permitir a participação do Ministério da Fazenda e de entidades de contribuintes, mas usando de ferramentas como a lista tríplice, com eleição cruzada (por exemplo o Ministério da Fazenda indica três candidatos e as entidades representativas dos contribuintes escolhem um deles e vice-versa). Quanto mais plural for o processo, maior a chance de se atingir a imparcialidade. Um exemplo exitoso da importância desta pluralidade no processo de nomeação é a composição do festejado Comitê de Pronunciamento Contábeis (CPC), guardião da governança contábil brasileira.

Enfim, que a discussão em torno da composição do Carf sirva como divisor de águas para um novo paradigma para a relação entre fisco e contribuintes: que prevaleça a ética fiscal, com a busca da justiça fiscal por todos. Com isso, passa a ser fundamental a estruturação dos órgãos aplicadores do Direito Tributário segundo as melhores regras de governança.

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  • é graduado e mestre em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo). Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Colônia (ALE). Sócio do escritório FCR Advogados.

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