Opinião

Abertura de cursos de medicina não deve sofrer limitação pelo Estado

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23 de fevereiro de 2023, 18h11

"Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

Enquanto direito de todos e dever do Estado, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde deve estar sempre presente nos programas e políticas de governo, como forma de cumprimento do texto constitucional e de garantia desse direito fundamental.

Nesse sentido, a abertura de novos cursos de medicina é um assunto que interessa a todos em um país cujo acesso a tratamentos de saúde ainda é precário.

Atualmente, particulares interessados em investir na área de educação médica precisam se socorrer no poder judiciário, haja vista que as vias tradicionais, aplicáveis aos demais cursos, foram fechadas para a formação de novos médicos, sob o argumento de que tal medida seria necessária para se garantir um ensino de qualidade, diante do suposto elevado número atual de cursos de medicina no país.

A Associação Médica Brasileira (AMB), em estudo denominado Demografia Médica 2018  O Perfil do Médico Brasileiro e a Desigualdade no Acesso à Assistência, aponta que em 2018 o Brasil contava com 452.801, o que representava uma razão de 2,18 médicos para cada mil habitantes.

O estudo da AMB aponta, ainda, que entre as regiões do país a Sudeste é aquela que possui maior razão de médicos por mil habitantes (2,81), contra apenas 1,16 médicos por mil habitantes na região Norte. Já entre os estados, o Distrito Federal tem a razão mais alta, com 4,35 médicos para cada mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro, com 3,55, enquanto o estado de Rondônia contava com apenas 1,52 médicos para cada mil habitantes.

Outro estudo, publicado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, com a participação do Conselho Federal de Medicina, apontou, em 2020, que embora tenha havido crescimento do número de médicos no país, a razão de médicos por mil habitantes era de apenas 2,4. Isso fazia o Brasil figurar entre os últimos países em uma lista de 44 nações, encontrando-se abaixo da média de 3,5 médicos por mil habitantes dos países selecionados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e atrás, ainda, de vizinhos da América Latina, como o Chile. A mesma publicação revela, também, que mesmo considerando a razão de médicos diplomados  recém-formados  por 100 mil habitantes nos anos de 2017, 2018 e 2019, o Brasil figura entre os dez últimos países da lista.

Ou seja, com base em dados recentes, mesmo com os esforços despendidos, inclusive com a criação do Programa Mais Médicos, nosso país ainda ocupa as últimas posições quando o tema é a quantidade de médicos formados anualmente para alcançar a universalização do acesso à saúde preconizada pela Constituição.

Por tais motivos, é indesejável o ímpeto governamental em impedir que a iniciativa privada, interessada em investir na formação de médicos, submeta-se ao crivo da autoridade competente para obtenção ou não da autorização para tanto, prejudicando o acesso da população a mais serviços, e restringindo aos estudantes  as possibilidades de se tornarem médicos se assim quiserem.

Além de relevante ao interesse público, o tema é polêmico
O assunto está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), em ação da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), que ingressou com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC nº 81), pedindo que o STF declare constitucional o artigo 3º da Lei dos Mais Médicos. O objetivo da Anup é impedir que as instituições interessadas possam protocolar diretamente no Ministério da Educação (MEC) o pedido de submissão ao processo de avaliação para oferta do referido curso.

Se assim entender a Suprema Corte, a única via para se buscar a autorização de novos cursos de medicina voltaria a ser, portanto, por meio de editais de chamamento público, de acordo com a Lei dos Mais Médicos. Ocorre, contudo, que como será visto adiante, nem mesmo esta via existe atualmente.

Também há uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 7187), de iniciativa do Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), que busca a declaração de inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 12.871/2012, especialmente no que tange a limitação da abertura de novos cursos superiores de medicina por meio de editais de chamamento público. Ambas as ações estão sendo julgadas em conjunto, tendo o ministro Gilmar Mendes como relator, e uma audiência pública já foi realizada.

Sabemos que a atividade de ensino é permitida pela Constituição para ser desenvolvida também por instituições particulares, mediante autorização e avaliação de qualidade do poder público competente. Essa autorização é concedida pelos entes vinculados ao MEC, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394 de 1996) e respectivos atos infralegais.

Em regra, a instituição interessada em submeter-se a avaliação de qualidade pelo poder público, abre, junto ao MEC, um processo administrativo, no qual serão avaliadas as propostas pedagógicas, estrutura física, corpo docente, capacidade financeira, entre outros requisitos, e, com base nessa análise, será decidido se a instituição estará autorizada ou não a fazer a oferta daquele curso.

Já para centros universitários e universidades, alguns cursos podem ser abertos por portaria da própria instituição, sem a necessidade de submissão ao crivo do MEC para o início das aulas, caso de ciências contábeis e administração, por exemplo. Contudo, alguns cursos específicos, mesmo para centros universitários e universidades, precisam de pedido de autorização prévio, é o caso de direito, medicina, odontologia, psicologia e enfermagem, conforme prevê o artigo 41 do Decreto 9.235 de 2017.

A partir de 2013, com a Lei 12.871, conhecida como Lei dos Mais Médicos, houve a controversa mudança no entendimento sobre os cursos de medicina. Com o início da vigência da referida lei, as instituições interessadas em ofertar tal curso superior não poderiam mais fazê-lo por meio do pedido de submissão ao processo de avaliação pelo MEC, tal como já acontecia e continuou a acontecer para os demais cursos. A partir da Lei dos Mais Médicos fora criada a figura do edital de chamamento público, por meio do qual as instituições interessadas concorreriam para a oferta do curso de Medicina nos municípios previamente selecionados pelas autoridades competentes. Dessa forma, o Estado passou a decidir em quais regiões do país poderia ser aberto novo curso de medicina, impedindo completamente, por conseguinte, a possibilidade das instituições privadas se submeterem ao processo de avaliação para oferta em quaisquer outras regiões.

Desde então, foram realizados apenas dois chamamentos públicos de instituições privadas interessadas em concorrer à autorização de oferta de novos cursos de medicina.

Porém, em 5 de abril de 2018, surgiu a Portaria 328 do MEC, conhecida no setor como "Portaria da Moratória", que suspendeu por cinco anos o protocolo de qualquer aumento de vaga e, também, de novos editais de chamamento público para autorização dos cursos de medicina.

A partir de então, na prática, nenhum curso de medicina poderia ser aberto no Brasil. Segundo entendimento então extraído do artigo 3º da Lei dos Mais Médicos, em nosso sentir, equivocado, não se poderia mais protocolar diretamente o pedido de submissão ao processo de autorização do curso no MEC, porque só poderiam ser abertos cursos por meio de editais de chamamento público. Por outro lado, a Portaria 328/2018 suspendeu todos os editais, não remanescendo, portanto, nenhuma alternativa para as instituições interessadas se submeterem ao processo de avaliação para autorização do curso.

O fechamento total da via de acesso ao rito de avaliação de novos interessados em ofertar o curso de medicina em muito se assemelha a uma reserva de mercado, que favorece àqueles poucos agentes privados que desenvolvem tal atividade, e facilita a criação de oligopólios com a chancela estatal. Em nosso entendimento, quaisquer reservas de mercado deveriam ser combatidas pelo Estado, e não fomentadas.

Justamente nessa linha de pensamento, alguns juízes e desembargadores passaram a reconhecer judicialmente o direito das instituições de ensino se submeterem ao processo administrativo de avaliação do pedido de abertura de novos cursos de medicina junto ao MEC, tal como já ocorre com os curso de direito, odontologia, psicologia e enfermagem. Na visão desses magistrados, é perfeitamente possível, e até mesmo desejável, que coexistam as duas vias de submissão dos interessados à análise de qualidade para oferta do curso de medicina, a saber: 1) pelo chamamento público, nos municípios onde for constatada pela autoridade competente a necessidade de formação e fixação de Mais Médicos; e 2) pelo rito ordinário, conforme já aplicado outrora normalmente ao curso de medicina, e ainda aplicável aos demais cursos.

O argumento daqueles que defendem a proibição de abertura de novos cursos de medicina é de que tal medida seria justificável para se ter mais controle sobre a qualidade dos médicos que atualmente são formados.

Entendemos que não é pela via do impedimento de acesso à novas instituições de ensino que se garantirá a qualidade na formação dos futuros médicos. A qualidade deve ser perseguida pelo exercício normal das funções de regulação e avaliação pelo poder público competente, tal como o é com os demais cursos superiores aqui já citados.

É sabido que a livre concorrência tem o condão de impulsionar os agentes para fora da zona de conforto, resultando em melhora na qualidade dos serviços e produtos, bem como em menores preços para a população.

A eventual existência de muitos médicos, em um futuro hipotético que se siga ao pleno cumprimento do disposto no artigo 209 da CF/1988  no que tange ao livre acesso da iniciativa privada a atividade de ensino  atendida, obviamente, à prévia autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, em nada prejudicará o direito da população ao direito estabelecido no artigo 196 da Carta Magna.

Sob o prisma da universalidade do acesso à saúde de forma igualitária, as consequências dessas limitações impostas pelos governos federais à formação médica trazem prejuízos incalculáveis à sociedade, sobretudo para a parcela mais carente e para as regiões menos desenvolvidas, inclusive violando a previsão constitucional de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado.

Embora muito se tenha avançado, não se pode afirmar que a saúde pública brasileira alcançou o patamar almejado pelo Constituinte de 1988. Tampouco se pode garantir que isso será alcançado mediante limitação do simples direito ao pedido de submissão das instituições privadas ao processo de avaliação para autorização pelo poder público competente.

É inegável que a educação, em qualquer nível (fundamental, médio ou superior), ou em qualquer área (medicina, direito, odontologia, enfermagem, administração, engenharia etc.), deve sempre perseguir o ensino de qualidade. No entanto, não nos parece razoável defender o raciocínio limitante de que o poder público não teria condições de regular, com o uso de medidas de avaliação e normatização adequadas, a qualidade dos cursos ofertados no país, de modo que tal controle teria que se fazer pela via do impedimento do acesso, e não pela via da eficiência, princípio caro à Administração Pública.

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