Opinião

A anterioridade e o PIS/Cofins-receitas financeiras: a regra é clara?

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22 de fevereiro de 2023, 20h20

O cotidiano da advocacia tributária no Brasil certamente não é fácil. São diversos os tributos, as obrigações acessórias e, especialmente, as alterações legislativas que demandam estudo e levantam questionamentos dos contribuintes. O mais recente tema em debate envolve justamente transformações legislativas que alteraram as alíquotas do PIS/Cofins incidente sobre as receitas financeiras das pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa das referidas contribuições. O contexto das modificações é o seguinte:

No dia 30/12/2022, foi editado e publicado o Decreto nº 11.322/22 estabelecendo a alíquota do PIS/Pasep em 0,33% e da Cofins em 2%, determinando seus efeitos a partir de 1º de janeiro de 2023.

No dia 1/1/2023, foi editado o Decreto nº 11.374/2023, revogando o Decreto nº 11.322/22, de modo a restabelecer as alíquotas do PIS/Cofins para 4,65%. O Decreto nº 11.374/2023 foi publicado no Diário Oficial da União no dia 2/1/2023.

Diante de tal cenário, inúmeras controvérsias iniciaram-se, afinal: o ato normativo que majorou as alíquotas deve respeitar a anterioridade da noventena? Pode-se afirmar que foi gerada expectativa legítima no contribuinte? O novo decreto foi capaz de impedir os efeitos do decreto anterior? O decreto anterior é inconstitucional?

Essas questões deverão ser respondidas pelo STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Constitucionalidade ajuizadas pela Abimaq (ADI 7.342) e pela AGU (ADC 84), respectivamente.

O presente artigo tem como objetivo analisar os principais fundamentos apresentados pelos contribuintes e pela União Federal sobre essa temática, sem a pretensão de indicar qual é "o melhor fundamento" ou "quais são as respostas corretas".

A perspectiva do contribuinte.
Dentre o principal ponto de argumentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Abimaq (ADI 7.342), reside a possível afronta à regra da anterioridade nonagesimal. É imprescindível mencionar que o conteúdo de tal garantia reside no fato de que a lei tributária responsável por majorar a carga de um dado tributo deve ser conhecida pelos contribuintes com certa antecedência, tendo em vista sua conexão substancial com a mensurabilidade e a previsibilidade jurídica.

A determinação do princípio da anterioridade como garantia constitucional está insculpida no artigo 150, inciso III, alínea b da CR/88, vedando que os entes federados cobrem tributos no mesmo exercício financeiro em que houver sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou e antes de decorrido noventa dias da data da publicação da norma. Sendo assim, ao analisar a anterioridade como derivação do princípio da segurança jurídica, se verifica que se trata de um princípio com contornos lógicos de uma regra, conforme as lições de Humberto Ávila [1].

No caso em concreto, a Abimaq parte de uma perspectiva "formalista" do direito, defendendo que houve a redução das alíquotas de PIS/Cofins incidentes sobre as receitas financeiras com a publicação do Decreto nº 11.322/22 e uma posterior majoração da carga tributária com a edição do Decreto n° 11.374/2023.

Ou seja, no dia 1° de janeiro de 2023 (domingo) o ato administrativo que minorou as alíquotas estaria vigente e seria eficaz tecnicamente. Logo, a nova lei (lato sensu) que veio a majorar a carga dos tributos supracitados deveria respeitar o princípio da anterioridade em sua concretude.

A fundamentação apresentada na ADI da Abimaq implicitamente sustenta que a eficácia jurídica deve ser verificada apenas sobre o aspecto técnico, que está intimamente ligada à presença das condições técnico-normativas exigíveis para a aplicação de uma lei (lato sensu). Portanto, seguindo essa lógica, pouco importa se a norma jurídica teve eficácia social, compreendida no sentido de "satisfação" dos objetivos visados.

É nítido que sob a perspectiva da ADI 7.342, o Decreto nº 11.322/22 é (1) válido, pois o seu processo de formação ocorreu em conformidade com os requisitos do ordenamento, estava (2) vigente, já que houve a sua publicação e possui também (3) eficácia técnica, na medida em que sua aplicabilidade é possível. Nota-se que tal norma desempenha o que Tércio Sampaio Ferraz Júnior chama de função de programa, pois o decreto visa à realização de um certo objetivo, qual seja a redução das alíquotas do PIS/Cofins incidente sobre as receitas financeiras, executando um telos programático [2].

Em uma perspectiva jurisprudencial, o princípio da anterioridade é compreendido como cláusula pétrea (ADI 939, relator Sydney Sanches) e com feição de regra, que não admite exceções, além das já previstas hipóteses constitucionais.

Nesse sentido, quando do julgamento do RE 1.043.313 — Tema 939/RG, o STF fixou a tese de que a flexibilização da legalidade tributária é possível, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo.

Todavia, os ministros ressaltaram em seus votos que tal cenário não afasta a necessidade de observância do princípio da anterioridade nonagesimal, já que esse se consubstancia como uma garantia do contribuinte, logo não seria plausível vislumbrar um cenário em que a majoração de uma dada alíquota não iria ser submetida a tal regra.

No entanto, entendemos que o caso atual de majoração das alíquotas do PIS/Cofins-Receitas Financeiras é um tanto quanto complexo e pragmático e devido às suas peculiaridades a linha argumentativa dos ministros do STF pode sofrer certas alterações.

A perspectiva da União
Por sua vez, a União defende, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 49, que o Decreto nº 11.322/22 não produziu efeitos (plano da eficácia) e ainda que seria inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade (plano da validade), uma vez que a instituição do benefício fiscal seria um abuso do poder de desoneração tributária.

No que se refere a inconstitucionalidade do Decreto nº 11.322/22, que está no plano da validade da norma jurídica, a fundamentação da União é no sentido de que a "redução da carga tributária — a ser acomodada, evidentemente, pelo novo governo — denota ausência de transparência fiscal e o inequívoco objetivo de ingerência da política fiscal do governo que se iniciou no dia 1/1/2023, agravando o quadro de desequilíbrio das contas públicas".

Afinal, a redução pela metade das alíquotas do PIS/Cofins sobre receitas financeiras, às vésperas da posse do novo governo, impactou a expectativa de arrecadação da nova administração, impedindo-a inclusive de mapear essa informação durante o período de transição, o que, portanto, configura o "abuso do poder de desoneração tributária", exercido sem transparência, justificação adequada e de modo afrontoso aos deveres de cooperação que devem reger as relações institucionais de transição em um Estado democrático de Direito.

Partindo desse contexto, a União defende que o Decreto nº 11.322/22 é inconstitucional por violação ao princípio da proporcionalidade, que deve servir para o controle abstrato de constitucionalidade e "neutralizar abusos do Poder Público no exercício de suas funções". Segundo a União, o decreto ainda é inconstitucional, pois viola os princípios da administração pública (artigo 37 da CF/88), que impede o uso da máquina pública para atingir finalidades pessoais.

É inegável que a fundamentação possui lastro jurídico, sendo possível entender pela inconstitucionalidade do decreto diante do contexto em que foi editado, porém se trata de avaliação com alto grau de subjetivismo, de forma a ser necessária a ponderação de princípios, valores, tradições que naturalmente será distinta para cada operador do direito. Caso se conclua pela inconstitucionalidade do decreto, todas as questões vinculadas ao plano de eficácia das normas ficam prejudicadas e, portanto, não há que se falar em observância à regra da anterioridade.

Ao sustentar a ausência de produção de efeitos no plano jurídico, a União indica que o Decreto nº 11.374/2023 foi apto a sustar os efeitos do Decreto nº 11.322/22, pois o novo ato administrativo entrou em vigor na mesma data em que esse último deveria produzir efeitos. Vale mencionar que para a União "o marco temporal de vigência (30/12/2022) não tem qualquer serventia se a aptidão para produzir efeitos foi protraída no tempo".

Quanto a este ponto, são duas as questões: o decreto pode ser considerado publicado em 1º de janeiro ou deve ser considerada a publicação no Diário Oficial (2 de janeiro)? O Decreto nº 11.374/2023 impediu a produção de efeitos do Decreto nº 11.322/22?

Na ótica da jurisprudência, a primeira resposta seria sim.

O STF ao analisar a MP nº 812/94 que majorou o IR e a CSLL, impresso no Diário Oficial que foi disponibilizado para venda no guichê da Imprensa Oficial em Brasília às 20h do dia 31/12/94, fixou o entendimento que "a data de publicação da lei para sua entrada em vigor é o dia em que ela é posta à disposição do público ainda que isso ocorra à noite" (RE nº 250.021, DJe 30/6/2000, e RE nº 232.084, DJe 16/6/2000).

A Suprema Corte parece ter dado maior relevância a "publicitação" da medida provisória do que efetivamente ao ato de publicar no Diário Oficial. Assim, se o Decreto 11.374/23 foi disponibilizado no site do planalto no dia 1º de janeiro, foi dada a devida publicidade, portanto, nada impede seus efeitos no mesmo dia, em tese.

A segunda questão é mais polêmica e complexa, de modo que a doutrina e a jurisprudência não oferecem uma resposta clara. Até porque não se tem notícias de uma fórmula única e geral aplicável a todos os aspectos do conflito das leis no tempo, e sem dúvidas alguma o presente caso se trata de uma situação excepcionalíssima no ordenamento jurídico brasileiro.

A União na ADC se utilizou de argumentos pragmáticos como a ausência de expediente bancário, o fato de a apuração do PIS/Cofins ser mensal (não diária), o manifesto interesse do governo eleito para revogar o ato administrativo, dentre outros, para defender que o Decreto nº 11.322/22 não produziu efeitos.

Em resumo, a União entende que o contexto legislativo não implicou alteração na situação fática dos contribuintes, isto é, não teria ocorrido "solução de continuidade" (compreendida como a interrupção da relação jurídica até então vigente). Tampouco, haveria "justa expectativa" a manutenção das alíquotas reduzidas e "surpresa" por quando da revogação do Decreto nº 11.322/22, principalmente diante do contexto político e manifestações do governo eleito.

Nesse sentido, vale relembrar que no ano de 2002 o STF julgou duas ações diretas de inconstitucionalidade e decidiu, por unanimidade, que a prorrogação da exigência da CPMF pela EC 37/02 não tinha que observar à regra (ou princípio) da anterioridade (ADIs 2.666 e 2.673). Na ocasião, os ministros entenderam que não houve solução de continuidade, apesar de a emenda ter sido editada em 12 de junho de 2002 e a legislação prever a incidência da contribuição até 18 de junho de 2022.

Vale mencionar que o entendimento foi reproduzido em discussões semelhante em 2009 e 2010 nos julgamentos dos REs 566.032 e 584.100. Sendo que no RE 566.032, o ministro Gilmar Mendes entendeu que os contribuintes tinham mera "expectativa de diminuição de alíquota", e a Corte teria o entendimento de não reconhecer "direito adquirido a regime jurídico" (o que é passível de críticas diante do contexto fático).

Sendo assim, ainda que a jurisprudência indicada não seja completamente aplicável ao caso em concreto, entendemos que existe a possibilidade de sua aplicação de forma análoga para sustentar eventuais posições dos ministros do STF no sentido de não aplicação da anterioridade.

Como dito acima, o presente artigo não tem a pretensão de indicar qual é "o melhor fundamento", fato é que o presente caso possui especificidades passíveis de fundamentação para ambos os lados e certamente não será uma "aberração" jurídica entender ou não pela aplicação da anterioridade ou até mesmo declarar o Decreto nº 11.322/22 inconstitucional. O objetivo é demonstrar que a regra nesse caso pode não ser clara, tampouco é possível identificar uma "fórmula perfeita" que deve ser seguida.

No momento, querer "dar a resposta correta" sobre a questão nos parece pretensioso, desse modo espera-se que o STF, ao cumprir adequadamente sua função, analise as questões suscitadas com o cuidado que o tema necessita e dentro de um prazo razoável.


[1] A interpretação da regra da anterioridade deve ser feita tendo em vista a conexão substancial que deve ser coerentemente intensificada entre o comportamento a ser adotado pelo Poder Público (editar e publicar a lei no exercício anterior da cobrança do tributo) e os fins de previsibilidade e de mensurabilidade inerentes ao sobreprincípio da segurança jurídica numa concepção constitucionalmente adequada de Estado de Direito. (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo, 2012. p. 212)

[2] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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