Justiça sob encomenda

Departamento de Justiça enfrenta o esquema de "judge-shopping" nos EUA

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22 de fevereiro de 2023, 8h21

Nos Estados Unidos, há 94 tribunais federais de primeira instância. Quatro deles, com 71 juízes, estão no Texas, com sedes nas regiões Norte, Sul, Leste e Oeste do estado. E no Texas estão dois tribunais de preferência dos conservadores-republicanos para mover ações politicamente motivadas, com certeza de uma decisão favorável. Um deles é o Tribunal Federal da Região Norte, com sede em Amarillo, onde atua o juiz Matthew Kacsmaryk — o defensor de preferência das causas republicanas.

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O tribunal federal número dois na escala de preferência dos conservadores-republicanos é o da Região Sul, onde trabalha o juiz Drew Tipton — ele e Kacsmaryk foram nomeados pelo ex-presidente Donald Trump. O juiz Reed O’Connor, nomeado por George Bush, é o terceiro na lista de preferidos dos republicanos, mas ele está no mesmo tribunal de Kacsmaryk, para quem todos os novos processos que chegam ao tribunal são distribuídos, desde setembro de 2022.

A maioria dos autores das ações são residentes do Texas, mas não da Região Norte. O procurador-geral do Texas, Ken Paxton, por exemplo, move normalmente suas ações para derrubar legislação de inspiração liberal-democrata e políticas do governo Biden em Amarillo, a 495 milhas (797 km) de Austin, a capital do Texas, onde funciona a Procuradoria-Geral do estado.

Republicanos de todo o país protocolam suas petições nesses dois tribunais, em busca de decisões favoráveis. Recentemente, foram protocoladas em Amarillo ações de autores residentes em Utah e em Tennessee (ambos a mais ou menos 1.600 km de distância).

Reação do governo federal
O Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA quer acabar com a festa — ou com esse fenômeno conhecido nos EUA como "judge-shopping", que é a prática de pesquisar na praça o juiz que mais provavelmente irá tomar uma decisão favorável ao autor da ação (uma terminologia derivada da expressão "window shopping", que significa pesquisa de compra). Enfim, é a justiça sob encomenda.

O DoJ protocolou uma petição justamente em um processo distribuído ao juiz Matthew Kacsmaryk, que os democratas consideram o mais propenso a "decidir com base em ideologia partidária do que na lei ou na prova". E que não tem qualquer constrangimento "em colocar precedentes de lado e substituí-los por posições ideológicas conservadoras".

Na petição, o DoJ pede a transferência do processo para outro tribunal, onde ele possa ser distribuído aleatoriamente a um entre vários juízes da corte. Os procuradores dos EUA fundamentam seu pedido na lei federal que regulamenta onde as ações contra autoridades federais devem ser movidas — e o local é onde o autor da ação reside.

Mas essa é uma exigência legal que pode ser contornada. Os interessados em uma disputa judicial, mesmo que residentes em outro estado, podem colocar um residente em Amarillo, por exemplo, como o principal autor da ação.

A legislação federal também determina que as ações devem ser movidas nos locais onde os autores das ações mantêm suas atividades principais. O local onde o estado do Texas mantém suas principais atividades é Austin, a capital, que se localiza na Região Oeste do estado — não na região Norte. Mas sempre há a possibilidade de autores de ações de outras regiões ou de outros estados criarem uma empresa fantasma, com sede em Amarillo.

O DoJ alega ainda que a lei permite que casos sejam relocados para distritos diferentes "por conveniência das partes e das testemunhas, no interesse da justiça". E apenas o interesse da justiça justifica a transferência dos processos, porque o “interesse do público em uma boa administração da justiça fica prejudicado, quando há um forte indício de ‘judge-shopping’ na proposição de uma ação”.

Além disso, o juiz escolhido nesse esquema de "judge-shopping" é "inerentemente suspeito, de acordo com a lei federal, o que permite ao DoJ contestar qualquer disputa contra autoridades federais que é levada para juízes partidários, como Kacsmaryk ou Tipton", dia a petição.

Advogados, de uma maneira geral, pensam mais de duas vezes, antes de pedir a esses juízes para transferir o caso para outra jurisdição ou que se declararem suspeitos, porque isso só tende a antagonizar um juiz perante o qual deverão atuar mais vezes.

Mas o DoJ, no entanto, não tem muito a perder por antagonizar juízes como Kacsmaryk ou Tipton, porque já perdem quase todas as causas, de qualquer forma.

Esquema bem-bolado
O esquema de "judge-shopping" do Texas é particularmente interessante para os conservadores-republicanos, pela forma com que se desenrola. Eles movem uma ação em Amarillo, que é distribuída ao juiz Kacsmaryk, e ganham. A parte vencida recorre.

O processo vai então para o Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região, considerada a mais conservadora do país. O tribunal tem 17 juízes, 12 dos quais são conservadores, nomeados por presidente republicanos. A probabilidade de uma decisão favorável é ala.

A parte vencida recorre à Suprema Corte, que tem uma maioria conservadora (são seis ministros conservadores e apenas três liberais). Nesse caso, há uma tendência de que a corte tome uma decisão favorável aos republicanos – embora não seja garantida, como nos dois tribunais inferiores.

A petição do DoJ argumenta, no entanto, que essa prática de "judge-shopping" mina a confiança a confiança pública na administração da justiça.

Pelo menos um ministro conservador, o presidente da Suprema Corte John Roberts, concorda com esse argumento. No relatório anual de 2021 da corte, Roberts mostrou-se constrangido com a prática de "judge-shopping", embora tenha feito a referência no contexto de contenciosos sobre patentes.

Os democratas esperam que o constrangimento de Roberts o leve a buscar um quinto voto, entre os conservadores da corte, para acabar — ou esvaziar — a prática de "judge-shopping" no país. Com informações do site Vox, The Guardian, Bloomberg Law e Jornal da ABA (American Bar Association).

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