Opinião

Claúsula pro solvendo nos contratos de factorings

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20 de fevereiro de 2023, 15h24

No contrato de factoring ou também chamado de Cessão de Direitos Creditórios feitos com uma empresa de fomento mercantil, o chamado faturizador (que é a empresa de fomento ou factoring) adquire títulos (normalmente duplicatas mercantis) mediante pagamento de quantia inferior (com desconto) mediante a cessão desses créditos.

O faturizador passa então a ser o detentor/proprietário dessas duplicatas, sendo que caberá a ele cobrá-las do sacado na data do vencimento.

Sobre o contrato de factoring, diz Carlos Roberto Gonçalves [1]:

Celebrando-o, o empresário desfruta da vantagem de transferir à empresa de factoring, ou seja, ao fator, o trabalho de controle dos vencimentos dos títulos, o acompanhamento da flutuação das taxas de juros, a adoção de medidas assecuratórias do direito creditício, o contato com os inadimplentes e até mesmo a cobrança judicial.

Distingue-se do desconto porque neste o cedente pode ser acionado pelo banco, em regresso, em caso de inadimplemento do devedor, no vencimento do título, uma vez que em tal contrato, como foi dito, a instituição financeira não garante o crédito, enquanto no factoring inexiste o direito de regresso porque a faturizadora garante o recebimento do valor ao faturizado. Desse modo, este não responde perante aquela em caso de inadimplemento da obrigação.

No mesmo sentido, o Código Civil, quando trata de cessão de crédito, estipula que o cedente não responde pelo sacado:

"Artigo 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor."

Vale ressaltar que ainda que contenha no contrato de cessão cláusula de coobrigação, chamada de pro solvendo, por se tratar de um contrato de adesão, a cláusula de coobrigação que é contrária ao artigo supracitado é totalmente nula, conforme o mesmo codex:

"Artigo 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio."

Consoante recente entendimento emanado pelo STJ, o contrato de faturização possui natureza diversa da cessão de créditos pura e simples, uma vez que é fator essencial do negócio a incerteza acerca do adimplemento do crédito cedido, nesse sentido:

"EMENTA RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO.CONTRATO DE FACTORING.
1. NEGATIVA DEPRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA.  NECESSIDADE DE OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS DEDECLARAÇÃO NA ORIGEM. RECONHECIMENTO.IMPOSIÇÃO DE MULTA. AFASTAMENTO.
2. CLÁUSULAQUE ESTABELECE A RESPONSABILIZAÇÃO DA FATURIZADA, NÃO APENAS PELA EXISTÊNCIA, MAS TAMBÉM PELA SOLVÊNCIA DOS CRÉDITOS CEDIDOS À FATURIZADORA, INCLUSIVE COM A EMISSÃO DE NOTAS PROMISSÓRIAS DESTINADAS A GARANTIR TAL OPERAÇÃO, A PRETEXTO DE ATENDIMENTO AO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE E APLICAÇÃODO ARTIGO 290 DO CÓDIGO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. VULNERAÇÃO DA PRÓPRIA NATUREZA DO CONTRATO DE FACTORING. RECONHECIMENTO
3. AVAL APOSTO NAS NOTAS PROMISSÓRIAS EMITIDAS PARA GARANTIR A INSOLVÊNCIA DOS CRÉDITOS CEDIDOS EM OPERAÇÃODE FACTORING. INSUBSISTÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 899, §2º, DO CÓDIGO CIVIL. 4. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (…) 2. O contrato de factoring não se subsume a uma simples cessão de crédito, contendo, em si, ainda, os serviços prestados pela faturizadora de gestão de créditos e de assunção dos riscos advindos da compra dos créditos da empresa faturizada. O risco advindo dessa operação de compra de direitos creditórios, consistente justamente na eventual inadimplência do devedor/sacado, constitui elemento essencial do contrato de factoring, não podendo ser transferido à faturizada/cedente, sob pena de desnaturar a operação de fomento mercantil em exame. 2.1 A natureza do contrato de factoring, diversamente do que se dá no contrato de cessão de crédito puro, não dá margem para que os contratantes, ainda que sob o signo da autonomia de vontades que regem os contratos em geral, estipulem a responsabilidade da cedente(faturizada) pela solvência do devedor/sacado. Por consectário, a ressalva constante no artigo 296 do Código Civil  in verbis: "Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor"  não tem nenhuma aplicação no contrato de factoring. 3. Ratificação do posicionamento prevalecente no âmbito desta Corte de Justiça, segundo o qual, no bojo do contrato de factoring, a faturizada/cedente não responde, em absoluto, pela insolvência dos créditos cedidos, afigurando-se nulos a disposição contratual nesse sentido e eventuais títulos de créditos emitidos com o fim de garantir a solvência dos créditos cedidos no bojo de operação de factoring, cujo risco é integral e exclusivo da faturizadora. Remanesce, contudo, a responsabilidade da faturizadora pela existência do crédito, ao tempo em que lhe cedeu (prosoluto). Divergência jurisprudencial afastada. 4. A obrigação assumida pelo avalista, responsabilizando-se solidariamente pela obrigação contida no título de crédito é, em regra, autônoma e independente daquela atribuída ao devedor principal. O avalista equipara-se ao avalizado, em obrigações. Sem descurar da autonomia da obrigação do avalista, assim estabelecida por lei, com relevante repercussão nas hipóteses em que há circulação do título, deve-se assegurar ao avalista a possibilidade de opor-se à cobrança, com esteio nos vícios que inquinam a própria relação originária (engendrada entre credor e o avalizado), quando, não havendo circulação do título, o próprio credor, imbuído de má-fé, é o responsável pela extinção, pela nulidade ou pela inexistência da obrigação do avalizado. 4.1 É de se reconhecer, para a hipótese retratada nos presentes autos, em que não há circulação do título, a insubsistência do aval aposto nas notas promissórias emitidas para garantir a insolvência dos créditos cedidos em operação de factoring. Afinal, em atenção à impossibilidade de a faturizada/cedente responder pela insolvência dos créditos cedidos, afigurando-se nula a disposição contratual nesse sentido, a comprometer a própria existência de eventuais títulos de créditos emitidos com o fim de garantir a operação de fomento mercantil, o aval ali inserido torna-se, de igual modo, insubsistente. 4.2 Esta conclusão, a um só tempo, obsta o enriquecimento indevido por parte da faturizadora, que sabe ou deveria saber não ser possível transferir o risco da operação de factoring que lhe pertence com exclusividade, e não compromete direitos de terceiros, já que não houve circulação dos títulos em comento. 5. Recurso especial parcialmente provido, apenas para afastar a multa imposta na origem. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.711.412 – MG (2017/0308177-2) RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE)."

Conforme explanado no início, num contrato de factoring, a contratante (factoring) realiza a aquisição de direitos creditórios. A atividade empresarial desta factoring é, quase que na totalidade das vezes, a aquisição de duplicatas mediante um desconto. Este desconto é a sua remuneração.

E se a duplicata não for paga? Esse é o risco do negócio.

Entretanto, com a cláusula pro solvendo que diz que o cedente, aquela que vende as duplicatas, responde pelo sacado pela integralidade da dívida. Em outras palavras, a factoring repassa ao vendedor das duplicatas o risco de sua atividade empresarial. Ela compra a dívida mediante uma comissão considerável, mas se não pagarem ela cobra de quem vendeu. 100% de aproveitamento e zero risco. Negócio da China.

Entretanto, a cláusula pro solvendo é considerada nula de pleno direito, conforme visto no aresto acima, recente e atualizado, pelo motivo simples: o risco da atividade de fomento mercantil é da factoring, tão somente, não podendo ela repassar o risco de sua atividade empresarial a terceiro.

Este entendimento não é só do STJ, como também de outros tribunais:

"APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE FACTORING. OPERAÇÃO DE DESCONTO BANCÁRIO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO EMBARGADO. PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DE REGULARIDADE DE CLÁUSULA QUE PREVÊ DIREITO DE REGRESSO. CLAUSULA 'PRO SOLVENDO'. NÃO CABIMENTO EM CONTRATOS DA ESPÉCIE. RAZÃO RECURSAL NÃO ACOLHIDA. ALEGAÇÃO DE NOVAÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. DISCUSSÃO DA DÍVIDA ORIGINÁRIA. INTELIGÊNCIA DO VERBETE SUMULAR Nº 286 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HONORÁRIOS RECURSAIS. FIXAÇÃO DE OFÍCIO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO". (TJ-SC – AC: 00017606420078240011 Brusque 0001760-64.2007.8.24.0011, relator: Altamiro de Oliveira, Data de Julgamento: 30/01/2018, Quarta Câmara de Direito Comercial).
"DIREITO CIVIL  APELAÇÃO CÍVEL  AÇÃO DE COBRANÇA DECORRENTE DE TÍTULOS INADIMPLIDOS  CHEQUES DEVOLVIDOS SEM SUFICIENTE PROVISÃO DE FUNDOS  SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA  INSURGÊNCIA  ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 9º E 10, DO CPC/2015  DESCABIMENTO  MÉRITO  CONTRATO DE 'FACTORING' – CESSÃO DE CRÉDITO 'PRO SOLVENDO' – NULIDADE DA CLÁUSULA – RISCO DO NEGÓCIO INERENTE À ATIVIDADE  REPONSABILIDADE DA FATURIZADA QUE SE LIMITA APENAS À EXISTENCIA DO CRÉDITO AO TEMPO DA CESSÃO 'PRO SOLUTO'  RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO – DECISÃO UNÂNIME.  A doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possuem entendimento de que nas relações civis de Cessão de crédito, envolvendo empresas de 'Factoring', a existência de cláusula indicando a modalidade “Pro Solvendo” é nula em razão do risco inerente à atividades mercantis de tais empresas – Recurso conhecido e desprovido". (TJ-SE – AC: 00194616020158250001, relator: Ruy Pinheiro da Silva, Data de Julgamento: 23/07/2019, 1ª CÂMARA CÍVEL).

"EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. GARANTIA EM OPERAÇÃO DE FACTORING. RECOMPRA. CLÁUSULA 'PRO SOLVENDO'. 1. Em se tratando de operações de factoring, a faturizadora assume riscos da compra dos títulos, em razão de ágio que recebe a título de remuneração pela operação, não tendo, em regra, direito de regresso em face da faturizada. 2. A empresa de fomento só poderia empreender a cobrança de títulos emitidos com vícios ou sem causa. No entanto, suas alegações denotam que a exigência decorreu da mera inadimplência dos sacados, e não por vícios nos títulos. 3. No contrato de factoring, há transferência do crédito e dos riscos a ele inerentes. A atribuição de responsabilidade pelo pagamento ao contratante, ainda que por meio de cláusula contratual, desvirtua a natureza e característica do negócio. Assim, sem vício nos títulos adquiridos, a confissão de dívida firmada entre as partes é nula. Execução extinta. 4. Recurso provido". (TJ-SP – AC: 10039125720208260011 SP 1003912-57.2020.8.26.0011, relator: Melo Colombi, Data de Julgamento: 18/09/2020, 14ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/09/2020).

"APELAÇÃO CÍVEL  CONTRATO DE FACTORING  CLÁUSULA PRO SOLVENDO  NULIDADE – EMISSÃO DE NOTA PROMISSÓRIA  NOVAÇÃO  IMPOSSIBILIDADE. — O contrato de factoring 'se consubstancia em cessão financeira ou na prestação de serviços em que uma parte  o cliente, aderente ou cedente – cede à outra  o factor, faturizador ou cessionário financeiro  os créditos ou direitos que possui perante terceiros (clientes do faturizado)  o devedor ou debitor  e contrata, de forma conjunta ou separadamente, a prestação de serviços (cobrança, administração, seleção de créditos), mediante o pagamento de uma remuneração, chamada tecnicamente de fator (comissão pela aquisição de serviços futuros ou pelos serviços contratados)' (SOARES, Marcelo Negri. Contrato de factoring, 2010, pág. 32, Ed. Saraiva)  É nula, no contrato de factoring, a chamada cláusula pro solvendo, que transfere ao faturizado o risco quanto ao recebimento dos valores representados pelos títulos de crédito repassados ao faturizador, não podendo ser pactuada contratualmente entre particulares. A assunção do risco não se enquadra no campo do direito disponível, mas trata-se de direito público, protetivo da coletividade, da sociedade como um todo, vedada no contrato de factoring a cláusula que atribui ao faturizador tal risco, ante à exclusão, em sua natureza jurídica, das operações bancárias  De acordo com o artigo 368, do Código Civil, as obrigações nulas não podem ser objeto de novação  Recurso não provido". (TJ-MG  AC: 10518100045740001 Poços de Caldas, relator: Veiga de Oliveira, Data de Julgamento: 16/03/2012, Câmaras Cíveis Isoladas / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/03/2012).

"APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE FACTORING. OPERAÇÃO DE DESCONTO BANCÁRIO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO EMBARGADO. PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DE REGULARIDADE DE CLÁUSULA QUE PREVÊ DIREITO DE REGRESSO. CLAUSULA 'PRO SOLVENDO'. NÃO CABIMENTO EM CONTRATOS DA ESPÉCIE. RAZÃO RECURSAL NÃO ACOLHIDA. ALEGAÇÃO DE NOVAÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO. CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. DISCUSSÃO DA DÍVIDA ORIGINÁRIA. INTELIGÊNCIA DO VERBETE SUMULAR Nº 286 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HONORÁRIOS RECURSAIS. FIXAÇÃO DE OFÍCIO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO". (TJ-SC  AC: 00017606420078240011 Brusque 0001760-64.2007.8.24.0011, relator: Altamiro de Oliveira, Data de Julgamento: 30/01/2018, Quarta Câmara de Direito Comercial).

Veja-se que o entendimento é uníssono e que, caso pesquisado em outros tribunais, o resultado é o mesmo, inclusive no STJ, de que a cláusula pro solvendo é nula de pleno direito. Isso porque, após a aquisição do direito creditório pela factoring, ela cobra as duplicatas como bem entender, não cabendo mais à vendedora/cedente das duplicatas qualquer tipo de coobrigação, ainda que tenha firmado termo de confissão de dívida, tendo em vista que o referido termo seria embasado em cláusula nula de pleno direito, sendo, portanto, também nulo.

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Fontes bibliográficas:

[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Vol III: contratos e atos unilaterais, p. 669.

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