Opinião

Efeitos do vínculo trabalhista nos serviços por aplicativo

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16 de fevereiro de 2023, 9h04

A chegada do Uber ao Brasil, em maio de 2014, trouxe uma alternativa de transporte com qualidade e bons preços, além de segurança aos motoristas e passageiros proporcionada pelo acompanhamento das corridas no aplicativo e a imediata avaliação recíproca online.

Os turistas que chegaram para a Copa e Olimpíadas tiveram a oportunidade de usufruir de serviços iguais aos disponíveis nos países de origem, o que colaborou com a melhoria da imagem do país.

O sucesso do Uber estimulou o surgimento de centenas de outros aplicativos [1], que incluem desde transportes de comida em bicicletas até o frete de cargas por caminhões e carretas. Os aplicativos multiplicaram exponencialmente o número de motoristas atuando no setor, a produção de bens transportados e a arrecadação tributária, gerando uma longa cadeia de emprego e renda sem necessidade de investimentos públicos.

Além disso, os baixos preços do Uber e semelhantes demonstraram o quanto são desnecessários e concentradores de renda os benefícios fiscais atribuídos aos táxis. Compram carros sem pagar ICMS nem IPI, usufruem de isenção ou grande redução de IPVA na maioria dos estados, recebem em dinheiro e, por isso, quase não pagam IR, além de terem acesso exclusivo a diversos locais e vias rápidas. Tudo isso para servir à parcela mais abastada da população.

Os motoristas de aplicativos compram seus veículos pagando os tributos, recolhem o IPVA como os demais proprietários de veículos e recebem toda a sua remuneração via rede bancária, que é informada à Receita Federal e gera o pagamento integral do IR. As empresas pagam Pis/Cofins, sem possibilidade de omissão, uma vez que toda sua renda é repassada pelo sistema bancário gestor dos cartões de crédito e disponível para verificação pela RF.

Todo esse sistema multiplicador de riqueza é baseado no pagamento pelo exato valor do serviço prestado, sem qualquer acréscimo a ser repassado ao usuário, garantindo serviços bons e baratos. Proporcionou o surgimento e crescimento de pequenas empresas, que não têm condições de estruturar um serviço próprio de entrega de mercadorias, mas agora podem competir com as maiores.

Por isso, é preocupante a proposta de criar um vínculo trabalhista, seja por lei ou decisão judicial, entre as empresas de intermediação de serviços de transporte e os motoristas. Essa criação ofenderia a própria lógica da relação subordinada trabalhista, gerando insegurança em outros setores econômicos.

A distorção fica evidente quando se constata que os motoristas têm total liberdade para trabalhar se e quando quiserem, aceitar ou não as corridas e negociar com quantos aplicativos desejarem. Ou seja, não há subordinação, nem horário, nem salário, os três requisitos configuradores da relação trabalhista.

Esse vínculo artificial inviabilizaria imediatamente os serviços e destruiria a cadeia econômica deles dependente por três razões:

a) Os encargos trabalhistas brasileiros chegam a 50% sobre a remuneração dos empregados [2] (são os mais altos do mundo) e teriam que ser repassados aos consumidores, o que reduziria drasticamente o transporte de pessoas e o consumo dos bens transportados, gerando imediato desemprego em massa;

b) Além dos encargos legalmente previstos, as empresas teriam que estruturar um RH gigantesco para gerir centenas de milhares de motoristas localizados nos 27 estados e milhares de municípios, cobrando diariamente eficiência em cada transporte, verificando todas as justificativas para atraso ou falta, contabilizando acréscimos de remuneração em razão de feriados locais etc. Também teriam que custear uma imensa estrutura jurídica para fazer face a tantas ações trabalhistas quanto forem os motoristas insatisfeitos ou ambiciosos. Uma clara impossibilidade lógica;

c) O maior problema, contudo, é o padrão de remuneração mensal brasileiro, bem distinto do pagamento por hora dos países desenvolvidos, que é mais compatível com os serviços medidos por tempo e quilômetros rodados. Em tais países, o vínculo trabalhista importaria em um pequeno acréscimo de custo, sem o correspondente incremento da estrutura administrativa necessária ao controle, porque já existe o padrão de pagamento por trabalho medido.

Em qualquer país desenvolvido, os motoristas que não prestarem bons serviços, mesmo que tenham vínculo trabalhista, podem ser sumariamente desligados sem qualquer indenização. No Brasil, ao contrário, incide aviso prévio, multa sobre o FGTS, todas as horas extras que os motoristas conseguirem alegar, além de danos morais e gratificações.

Acresça-se que a Justiça Trabalhista brasileira, quase sempre hostil aos empresários, não aceitaria que as remunerações mensais variassem apenas em razão da produtividade, sem garantia de uma média remuneratória, porque isso caracterizaria redução salarial nos meses menos produtivos. O pagamento pela média importaria, na prática, em grande acréscimo aos valores totais devidos aos motoristas, inevitavelmente repassados aos usuários.

É nítida a inviabilidade da aplicação do engessado regime trabalhista brasileiro a uma atividade de contratação ágil e instantânea, remunerada pela produtividade.

A existência de vínculo trabalhista entre motoristas e empresas de aplicativos está em discussão na Seção de Dissídios Individuais do TST [3], uma vez que há entendimentos opostos de suas Turmas. O debate jurídico recebeu uma recente ingerência política em razão da proposta informal do Ministro do Trabalho de usar os Correios para substituir o Uber [4], demonstrando que não conhece nenhum dos dois serviços.

É sempre bom ter cuidado com ideias que parecem simples e bonitas, mas têm consequências desastrosas quando aplicadas porque não foram adequadamente analisados todos os seus aspectos.

A economia não é um jogo de Lego, que se resolve com a transferência de peças de um lado para outro. Os negócios dependem de expectativas de lucro e segurança jurídica, que não podem ser supridas (mas podem ser destruídas) pela intervenção estatal.

O vínculo trabalhista artificial entre motoristas e empresas derrubaria os dois pilares da atividade econômica, inviabilizando todo um modelo de negócios bem sucedido que proporciona a sobrevivência de milhões de famílias, além de agregar enorme insegurança à imagem do país.

 


[1] Em transporte individual urbano surgiram o Cabify (que já saiu do Brasil, o que demonstra o quanto é pequena a margem final de lucro), 99 (que já existia desde 2012, mas não era meio de pagamento), além de centenas de aplicativos locais. No setor de frete comercial, foram criados Truckpad, Fretebras, SontraCargo, Quero Frete, Busca Cargas, Brasil Frete, Pega Carga, Cargo X, entre muitos outros.

[2] Esse montante inclui as contribuições para o INSS e FGTS, 13° salário, ⅓ de gratificação de férias, alimentação e demais encargos como as contribuições para o Sistema S e salário educação. Ainda existem outros benefícios previstos em leis especiais e convenções coletivas.

[3] Os processos que geraram o procedimento de uniformização de jurisprudência são E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353-02.2017.5.01.0066.

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